Boletim Mensal * Ano V * Janeiro de 2007 * Número 46

           

   FADO TAMBÉM É CULTURA

     Alfredo Antunes

 

    Amigos. Faço hoje uma pausa, para fazer uma “Saúde!”.
    Sim, uma “saúde” (embora atrasada) a todos os Compadres, pelo Ano Novo que começa! Mas faço-o com o vinho do Fado, e não com aquelas reservas que por aí andam, bem guardadas em garrafeiras climatizadas.
    E a título de brincadeira e amizade, vou dedicar esta crônica, e esta “Saúde!” ao nosso Compadre Ivo Amaral. Melhor: nele, saúdo, de coração, a todos os membros desta Academia!
    Disse eu, na minha primeira crônica, que não falaria de vinho, pois isso “já o fazia – e sabiamente – o nosso Compadre Ivo Amaral”. Pois bem, na sua última “Coluna”, o nosso querido Ivo me agradece, mas insinua que talvez eu estivesse brincando quando empreguei a palavra “sabiamente”. Diz ele: “...mas não perdôo o gracejo que soltou ao dizer que falo de vinho com bastante propriedade...”. Você, Ivo, não tem nada que me perdoar, porque eu não pequei! (E olhe que de pecado entendo eu!). Eu falei sério! Com sinceridade! É que para se falar dum assunto, não é preciso ser-se, necessariamente, técnico. Há um “saber de experiência feito”, a que se refere Camões. E o seu saber sobre vinhos vem muito da sã curiosidade e do amor que você revela, ao repartir conosco as suas experiências. Acredite, Ivo. Eu não sou acadêmico do “saber”; mas aceito sê-lo, da simplicidade e da sinceridade. A sua “Coluna” agrada-me sobremaneira, por três razões: seu conhecimento (sem tecnicismos); sua sensibilidade e clareza (coisa rara nestes campos) e seu entusiasmo e simpatia. Continue, Amigo!
    Mas, voltando ao meu campo – o Fado - meu caro Ivo, aí sim, sou, infelizmente, obrigado a afastar-me de você! Entenda-me! É que o vinho do Fado não é o vinho que você descreve. O vinho do Fado não tem rótulos nem reservas; é, sempre, o “vinho da Casa”. Não tem “taninos”, “corpo” ou “varietais”. E se algum “buquê” possui, deve ser um cheirinho a bolor do pipo mal lavado! O vinho do Fado (e refiro-me, sobretudo, aos castiços ambientes da fadistagem do Séc. XIX) era o carrascão (se não, a água-pé ou a sangria). Nesses ambientes, vinho ruim e Fado eram inseparáveis.Quase sempre esse “veneno”, que era o Fado, cantava-se altas horas, em gingas arruaceiras, e com a cabeça cheia de vinho: “Pois dar de beber à dor é o melhor/ Já dizia a Mariquinhas”.E bem cantava, no século passado, o velho Fernando Farinha: “O fado assim, meus senhores/C’o vinho da pipa a correr/O fado assim malcriado, avinhado, é que é fado a valer”. E olhe que não era servido em garrafa de cristal Bacarat. Era em jarras de barro vidrado, de Barcelos, mesmo!
    Quando Cabral chegou ao Brasil, trazia centenas de pipas do vinho alentejano “Pêra Manca”, para lastrear as naus. Cada marinheiro tinha direito a dois litros e meio diários (quase 3 garrafas e meia, de hoje), para irem agüentando as agruras da viagem e, quem sabe, soltarem com mais espontaneidade os seus lamentos fadistas. (Atenção! Com 3 ½ garrafas de “Pêra Manca” – 14,5% - eu cantava até Ópera!). Estes mesmos vinhos voltavam a Portugal, na mesma função de lastrear as caravelas. Ficaram conhecidos como “os vinhos-trona-viagem”. Dizem os colecionadores (certamente não fadistas da antiga Mouraria...) que são verdadeiras preciosidades!
Mas onde quero chegar, caro Ivo, é à associação do vinho com o Fado. Já Samuel Maia, nos idos de 1800, designara o Fado como: “a canção do vinho”. E o fado “Tendinha” (entre centenas de exemplos), cantado pela já lendária Hermínia Silva, em 1932, é bem um fiel retrato desta relação: vinho-fado. Vejamos: “Junto ao Arco do Bandeira/ Há uma loja – a Tendinha/ De aspecto rasca e banal/ Na história da bebedeira/ Aquela casa velhinha/É um padrão imortal./ Velha Tendinha / És o templo da pinguinha/ Dos dois brancos / Da gimbrinha/ Dos boêmios e do Pimpão./ Noutros tempos os fadistas/ Vinham já‘grossos’ das Hortas/ P’ro seu balcão caturrar/ E os fidalgos e os artistas/ Vinham pr’ali, horas mortas/ Ouvir o fado e cantar”.(Compadres: a “Tendinha”ainda lá está, no mesmo lugar, no Rossio, entre a Rua do Ouro e a Rua Augusta, e é um símbolo da velha Lisboa da fadistagem. Não deixem de ir lá, tomar dois brancos, de pé, ao balcão. Não tem onde sentar. É entrar e sair; igual que há 200 anos. Mas cuidem de não ficar “grossos”, e dar mau exemplo,como os boêmios fadistas de outrora!).
    Dizer que numa casa portuguesa fica bem “pão e vinho sobre a mesa” (canção composta expressamente para a Amália cantar em Moçambique, em 1949 – e que, hoje, é mais conhecida no mundo do que galo de Barcelos), é chover no molhado. Mas caracterizar o vinho fadista, talvez ajude a ilustrar a natureza daquele cantar.
    É que o Fado é popular.
    Nasceu de ser-se português e (na sua mais folclórica visualização posterior) das gentes marginais que se julgavam perseguidas pela desdita e má sorte.
    E olhem que “rufião” e “desterrado” não celebram sua má sina com um “Grand Cru”, seja ele um “Petrus” ou um “Barca Velha”...Por isso, meu querido Ivo Amaral, os nossos vinhos não se dão! Não se encontram! Não sentam à mesma mesa! Aqui, bem podíamos invocar aquele dramático fado, de A. Freitas, que a Amália Rodrigues tão admiravelmente cantava: “Somos dois fados desencontrados/...Tu tens um fado e eu tenho outro/ Triste fado temos nós!”.
    Mas não vamos deixar a coisa ficar por isso!
    Convido você a vir, qualquer dia, à minha casa. Juntaremos o seu vinho com o meu fado.

    A nossa tertúlia ficará (como diz o fado “Antigamente”, a propósito da Mouraria de hoje): “mais limpa e mais séria”, mas bem menos fadista!
    Será bom, apesar de tudo!
    Está feito o convite. A você, Ivo, e a todos os Compadres. “Saúde”! Feliz Ano Novo!


 

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