Procurador de Justiça – Ministério Público
do Estado de Goiás
A sentença que aplica pena imediata (Lei 9.099/95,art.76-§4º)
não pode ser executada por falta de previsão legal. Seu descumprimento
acarreta as providências do art.77 da referida lei, ou seja, oferecimento
de denúncia ou requisição de diligências imprescindíveis,
em respeito ao Estado Democrático de Direito Brasileiro.
Eixo Ideológico da Lei 9.099/95: Direito Penal Mínimo
O Direito Penal Democrático caracteriza-se pela mínima intervenção
penal (subsidiariedade e fragmentariedade), com a máxima garantia
dos direitos fundamentais do cidadão (garantismo). Tendo por missão
a defesa dos direitos humanos, positivados na Constituição
Federal brasileira, na Declaração Universal dos Direitos
do Homem (1948) e instrumentos internacionais correlatos (em especial:
"Pacto
de San José de Costa Rica" - 1969).
Com base nesse paradigma foi elaborada a "Lei dos Juizados Especiais
Criminais". As medidas despenalizadoras (composição civil
extintiva da punibilidade, aplicação imediata de pena, exigência
de representação nas lesões corporais leves/culposas
e suspensão condicional do processo) são evidências
dessa opção ideológica: "MÍNIMA INTERVENÇÃO,
MÁXIMA GARANTIA". Importando em expressiva transformação
do panorama penal vigente no Brasil (STF, Pleno, rel. Min. Celso de Mello,
Inq. 1055/AM, j. 24/04/96, DJU 24/05/96 - Internet).
Aplicação Imediata de Pena: alternativa ao processo
penal como solução do conflito penal
Nessa perspectiva, pela primeira vez na história penal brasileira
é possível transacionar a persecução penal.
Antes de iniciada a ação penal, antes mesmo de qualquer investigação
prévia, o susposto "autor" do suposto "fato" e o Ministério
Público podem evitar o processo penal, mediante acordo em audiência
pública presidida por juiz de direito (art.76).
Com efeito, nesse novo modelo, o objetivo não é a efetivação
do "castigo" para dar credibilidade à coação
psicológica da pena cominada, mas a reparação dos
danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não
privativa de liberdade (art.62).
Assim, a transação penal não atende à doutrina
da coação psicológica (Feuerbach, 1775-1833), eixo
ideológico do Direito Penal intimidatório. Seu fundamento
não está na teoria segundo a qual a severidade da pena cominada
(e sua aplicação) é forma eficaz de combate à
criminalidade pela intimidação da coletividade.
Ao contrário, inspira-se na concepção de que o comportamento
criminoso não é exclusivamente uma opção do
sujeito, mas um fenômeno de causas variadas que a ameaça do
castigo pouco inibe. Fundamenta-se, também, na verificação
de que o sistema penal é seletivo e estigmatizante, reproduzindo
e aprofundando as desigualdades sociais.
Ampara-se, ainda, na constatação do caráter criminógeno
da prisão, na sua ineficácia como instrumento ressocializador,
além do seu alto custo social e financeiro.
Enfim, a transação penal ancora-se na idéia de que
o DIREITO PENAL/PRISÃO somente deve ser aplicado às situações
de reconhecida necessidade de segregação do indivíduo,
para se evitar um mal maior à sociedade.
Nessa concepção, na aplicação imediata de pena
inexiste acusação e, conseqüentemente, não há
processo penal. A denúncia somente será oferecida se não
ocorrer o acordo penal (art.77). Ademais, nem a opinio delicti foi
completamente formada. O termo circunstanciado é enviado ao Juizado
sem qualquer investigação prévia (art.69) e a eventual
necessidade de diligências imprescindíveis somente ocorre
na fase da denúncia (art.77). A possibilidade de arquivamento, como
requisito negativo (art.76) para a proposta de acordo penal, refere-se
à hipótese de evidente ocorrência e não ao prévio
convencimento ministerial da necessidade de instauração do
processo penal.
Portanto, se não existe acusação ou processo penal,
o autuado não reconhece sua culpa (sentido amplo) quando aceita
a proposta de aplicação imediata de pena. Sem admitir culpa
ou proclamar inocência, conforma-se com uma sanção
penal não privativa de liberdade (mais uma missão social,
do que castigo) para não ser acusado e processado criminalmente.
Nesse sentido, esclarece Rogério Schietti: "Intui-se, portanto,
que ambos os protagonistas dessa transação penal buscam,
com o acerto de vontades, evitar o processo. O Ministério
Público abdica da persecução penal, obviando a formulação
de denúncia e toda a atividade processual que decorreria do exercício
do ius acusationis; o Autuado também evita o processo...
preferindo sujeitar-se a uma pena que, em sendo cumprida, permitirá
a extinção da punibilidade" (Revista do TRF - 1ª
Região, vol. 8, nº 2, p.30 - sem grifo).
Em resumo, a transação penal é uma alternativa ao
processo penal e seus efeitos (inclusive a punição/castigo).
Solucionando a controvérsia penal consensualmente, sem o ingresso
dos envolvidos no sistema penal intimatório, necessariamente conflitivo.
Inexeqüibilidade da Pena Imediata: ausência de previsão
legal
Sem o devido processo legal, a sentença que aplica pena restritiva
de direitos ou multa, com base no art.76, não tem caráter
nem condenatório nem absolutório, mas simplesmente homologatório
da transação penal. Declarando uma situação
jurídica de conformidade penal bilateral. Não gerando reincidência,
registro criminal ou responsabilidade civil (art.76-§§ 4º
e 6º).
Logo, não sendo sentença condenatória, inaplicável
a execução penal prevista para aquela. Vale dizer, a sentença
homologatória de transação penal não pode ser
executada na forma dos arts.84-86 da Lei 9.099/95 ou do Código Penal
ou da Lei de Execução Penal porque não há identificação
das situações, sequer similitude entre elas.
Conforme o modelo garantista, no Estado Democrático Brasileiro não
é possível uma sentença penal condenatória
sem o devido processo legal (IGUALDADE DAS PARTES, CONTRADITÓRIO,
AMPLA DEFESA...), tornando certa a autoria e a materialidade do fato imputado.
Já a sentença penal homologatória é fruto de
consenso, de acordo entre Ministério Público e autuado, antes
da propositura da ação penal, sem julgamento do fato que
originou o termo circunstanciado.
Nem mesmo por analogia é possível a execução
de pena aplicada mediante acordo com fulcro naqueles dispositivos legais.
Além da ausência de semelhança, esse método
é proibido "in malan parte", no Direito Penal. Carlos Maximiliano
adverte: "... em se tratando de dispositivos que limitam a liberdade,
ou restringem quaisquer outros direitos, não se admite o uso da
analogia..." (Hermenêutica e Aplicação do Direito,
Forense, 16ª ed., p.213).
Por outro lado, mesmo que o legislador tivesse regulamentado expressamente
a hipótese, não poderia fazê-lo nos moldes da execução
penal. O que legitima na ordem democrática brasileira a aplicação
imediata de pena, ou melhor, aplicação imediata de uma missão
social é a consensualidade da medida e a impossibilidade de aplicação
de pena privativa de liberdade. Evitando-se, assim, o ingresso do autuado
no sistema penal intimidatório e suas deletérias conseqüências.
Sujeitar, portanto, o suposto "autor" do suposto "fato" a
um castigo, convertendo a pena imediata descumprida em prisão, ofende
ao postulado da "mínima intervenção, máxima
garantia", caracterizador do Direito Penal Mínimo (DIREITO PENAL
DEMOCRÁTICO) que inspirou a Lei 9.099/95. Restaurando iniqüidade
combatida desde o século XVIII, ou seja, a presunção
do crime punida como o próprio crime.
Conclusão: início da persecução penal
Assim, se o suspeito descumpre injustificadamente a pena imediata (não
efetiva a missão social acordada) não pode de imediato ser
preso, pela conversão da pena acordada em privativa de liberdade.
A condenação, ou o reconhecimento de culpa (lato senso),
não foi objeto do acordo. Sendo que a Lei 9.099/95, regulamentando
o art.98-I/CF, ao autorizar a solução consensuada expressamente
excluiu a possibilidade de prisão (arts.62 e 76).
Ademais, como a pena imediata não está vinculada à
pena cominada em abstrato é possível aplicação,
por exemplo, de restritiva de direitos quando o tipo comine somente multa.
E, pela conversão, o suspeito sofre pena mais grave daquele que,
não tendo direito à transação, foi condenado
através do devido processo legal. O que resulta em inominada iniqüidade.
Por fim, considerando que a extinção da punibilidade somente
ocorre com o cumprimento da pena acordada, o seu descumprimento injustificado
implica em rescisão do acordo penal.
Só restando ao Ministério Público iniciar a persecução
penal, na forma do art.77: oferecer denúncia ou requisitar diligências
indispensáveis. Promovendo o devido processo legal, em homenagem
aos direitos fundamentais do cidadão no Estado Democrático
de Direito Brasileiro.
Bibliografia
- Ada Pellegrini Grinover e outros. Juizados Especiais Criminais,
RT, 1995.
- Cezar Roberto Bitencourt. Juizados Especiais Criminais,
Livraria do Advogado, 1996.
- Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierandeli.
Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral, RT, 1997.
- Luiz Flávio Gomes. Suspensão Condicional
do Processo, RT, 1995.
- Raúl Cervini. Os Processos de Descriminalização,
RT, 1995.