Editor: Wolfram da Cunha Ramos  
Da impossibilidade de aplicação da Lei 9271/96 aos processos pendentes.
 
 
Ubiratan Cazetta  - Procurador da República no Estado do Pará e Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Pará.
 
 
A Lei 9271/96, inserida num contexto de atualização das normas processuais penais, atendendo às ponderações doutrinárias de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JUNIOR e JOSÉ FREDERICO MARQUES, acabou por abolir do sistema processual brasileiro "a figura da revelia decorrente da citação editalícia, desde que o acusado não venha a constituir defensor nos autos, permanecendo entretanto essa sanção processual decorrente da contumácia, para os demais casos disciplinados na lei instrumental".
 
Já se sustentou, com acerto, que a inovação teve por objetivo "contribuir para o efetivo exercício do contraditório e da ampla defesa no processo penal, e evitar o desgaste natural dos operadores do Direito em certos processos, cujos resultados práticos (imposição da sanção penal) não eram alcançados, à vista da contumácia do acusado, sem prejuízo da contribuição para uma apuração mais eficaz das infrações relacionadas à criminalidade organizada."
 
Assim, ao tempo em que excluiu a revelia decorrente da citação ficta, cuidou o legislador, ainda, de sustar a fluência do prazo prescricional, impedindo que o fortalecimento da garantia ao contraditório se convertesse em meio de subtração à aplicação da regra penal.
 
Todavia, se é fato que "a lei processual penal não é retroativa, pois não está regulando o fato criminoso anterior a ela, regido pelos princípios de aplicação da lei penal, mas os atos processuais a partir do momento em que ela passa a viger", forçoso será, também, reconhecer que a suspensão do prazo prescricional apresenta-se como prejudicial ao réu, uma vez que altera a disciplina aplicável a uma das causas extintivas da punibilidade, sendo, por isso, verdadeira lex gravior, cuja incidência aos fatos típicos cometidos antes de 17 de junho de 1996 afronta o disposto no artigo 5º, XL, da Lei Fundamental da República.
 
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL já teve oportunidade de assentar que:
 
"IRRETROATIVIDADE ABSOLUTA DA LEX GRAVIOR - VEDAÇÃO INCIDENTE SOBRE NORMAS PENAIS DE CARÁTER MATERIAL.
 
- A cláusula constitucional inscrita no art. 5º, XL, da Carta Política - que consagra o princípio da irretroatividade da lex gravior - incide, no âmbito de sua aplicabilidade, unicamente, sobre as normas de direito penal material, que, no plano da tipificação, ou no da definição das penas aplicáveis, ou no da disciplinação do seu modo de execução, ou, ainda, no do reconhecimento das causas extintivas de punibilidade, agravem a situação jurídico-penal do indiciado, do réu ou do condenado. Doutrina." (negrito no original - itálico nosso)
 
Sem corroborar as duras críticas formuladas por ALBERTO SILVA FRANCO, é inegável reconhecer "o relacionamento existente entre o direito penal e o processo penal. Há entre um e outro "uma verdadeira relação de mútua complementariedade funcional, podendo mesmo dizer-se relação de interdependência ou implicação biunívoca: o processo penal - tal como qualquer processo - pressupõe o direito penal, e o direito penal - diferentemente do que acontece com os ramos do direito não sancionatório - só se concretiza através do processo. O processo penal é, em rigor, o modus operandi do direito penal" (Taipa de Carvalho, Sucessão das Leis Penais, p. 212, 1990)."
 
A complementariedade apontada por TAIPA DE CARVALHO, quando aliada ao princípio da indisponibilidade da ação (que retira do Ministério Público o "poder de dispor do conteúdo material do processo"), impede que se aceite a cisão do conteúdo da Lei 9271/96 para permitir a imediata aplicação da parcela processual da norma, resguardando-se a sua parte material para os fatos típicos ocorridos a partir do término da vacatio legis prevista no artigo 2º da própria Lei.
 
Esta técnica de aplicação da lei, pretensamente escudada no direito intertemporal, além de ofender a lógica interna da regra jurídica posta, acarretaria a possibilidade de o Ministério Público, expandindo a mitigação do princípio da obrigatoriedade prevista no inciso I do artigo 98 da Carta Política, deixar prescrever inúmeras ações penais já em andamento.
 
Ora, se o sentido teleológico da regra está centrado no binômio "efetividade do resultado do processo - fortalecimento do contraditório", cogitar-se da suspensão do feito, sem a conseqüente suspensão do curso do prazo prescricional, privilegiaria o réu em detrimento do Estado, contrariando o que pretendeu não o legislador e, sim, a norma.
 
As novas disposições do Estatuto de Rito, na estrutura preconizada pela Lei 9271/96, compõem um todo harmônico, constituído tanto por regras de direito penal (suspensão da prescrição), quanto de direito processual penal (suspensão do processo), e não podem ser separadas em partes autônomas, sem prejuízo de sua organicidade.
 
Este, aliás, o posicionamento de DAMÁSIO E. DE JESUS, entendendo que "não se aplica a Lei nº 9271/96 aos processos penais cujas infrações foram praticadas antes de 17 de junho de 1996 por ser prejudicial ao réu. A Lei não pode, pois, ter efeito retroativo, quer em sua parte processual (suspensão do processo), quer em sua porção de direito material (suspensão do prazo prescricional)." ANTONIO SCARANCE FERNANDES, por sua vez, embora inclinado a entender ser a nova regra mais benéfica ao réu (por evitar a prolação de um decreto condenatório e os efeitos da reincidência), concorda que "não se pode cindir a Lei, que contém normas interdependentes."
 
Necessário reconhecer que, ao contrário do que afirma EDUARDO ARAÚJO DA SILVA ao concluir sua manifestação, acarretando a Lei 9271/96, na parte em que alterou a redação dos artigos 366 e 368 do Código de Processo Penal, prejuízo ao réu e não sendo possível a divisão da norma para sua aplicação parcial, impõe-se a conclusão de que o novo dispositivo somente poderá ser aplicado aos fatos típicos ocorridos a partir do dia 17 de junho de 1996 (inclusive), sob pena de ofensa ao artigo 5º, XL, da Constituição Federal.
 
Esta, aliás, a posição do Supremo Tribunal Federal, como permite concluir a informação veiculada no Informativo STF nº 63, encartado no Diário da Justiça, Seção 1, de 19 de março de 1997, assim redigida:
 
"Suspensão da Prescrição e do Processo Penal.
 
A Lei 9271/96, que deu nova redação ao art. 366, caput, do CPP ("Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, ..."), sendo mais gravosa para o réu, não se aplica aos crimes cometidos antes do início de sua vigência, submetendo-se à regra da irretroatividade da lei penal (CF, art. 5º XL). À vista disso, e afirmando a indissociabilidade do sobrestamento do processo e da suspensão da prescrição dispostos na referida lei, a Turma indeferiu habeas corpus impetrado contra o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, afastando a pretensão de aplicação "intermediária" do art. 336 do CPP, com a qual se requeria fosse conferida ao paciente a retroatividade da parte benéfica (suspensão do processo), e a irretroatividade da parte a ele prejudicial (suspensão da prescrição). HC 74.695-SP, rel. Min. Carlos Velloso, 11.3.97." (STF - 2ª Turma - grifamos - itálico e sublinhado no original)
 
Com maior razão, esta conclusão de inaplicabilidade se ajusta àquelas hipóteses em que o decreto de revelia tenha sido proferido antes do início da vigência da Lei 9271/96, já que, aplicada a parêmia tempus regit actum, é necessário reconhecer que o ato processual perfeito, atendidos os rigores do regime anterior, não pode ser atingido por lei posterior.
 
Precisa, aqui, a lição de EDUARDO ARAÚJO DA SILVA, ao aduzir que "regulando a nova lei matéria de natureza processual, ainda que parcialmente, não pode retroagir para rescindir atos processuais regularmente praticados, antes de sua vigência. Assim, a revelia validamente decretada sob a vigência da lei anterior, acompanhada de seus efeitos (regular marcha do processo e desnecessidade de intimação ou notificação para os atos ulteriores), não pode ser suprimida pela nova lei, sob pena de infringir a disposição intertemporal disciplinada no art. 2º do CPP ("a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior")" .
 
RESUMO: A Lei nº 9271/96, que alterou o tratamento conferido pelo Código de Processo Penal às conseqüências decorrentes da citação por edital, criando hipótese de suspensão do processo e do curso da prescrição enquanto durar o não comparecimento do réu (pessoal ou por procurador constituído), apresenta grave problema de conflito de leis no tempo. Composta a regra de porção material e parcela processual, dependentes entre si, e acarretando a suspensão do prazo de prescrição um gravame à situação do réu, o novo dispositivo somente será aplicável aos processos decorrentes de fato típico ocorrido a partir de 17 de junho de 1996 (inclusive), termo final da vacatio legis.


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