"Foi há
muito tempo atrás,
Tempos que não voltam mais.
Eu, com a cabeça de menino,
corpo e asa de passarinho."
Conheci
Janires em 1979. Ele aparecia de vez em quando nas reuniões de
sexta-feira da mocidade de nossa Igreja em Copacabana, no Rio. Era
um tipo meio esquisito para os padrões vigentes de beleza e status:
magro, esguio, moreno, cabelos desgrenhados, usando um desbotado
macacão jeans. O sorriso inconfundível, os dentes muito brancos,
como que a dizer "você não me esconde nada", revelava a experiência
e o jogo de cintura dos seus tempos de boêmia, e dizia alguma coisa
diferente, muito forte, muito boa, algo realmente novo!
Trazia sempre uma música de louvor a Jesus, ou uma palavra, às vezes
dura, que nem os pastores ou os líderes daquele grupo se arvoravam a
dizer. Um sujeito diferente.
Ele vinha de São Paulo, e da mesma forma com que aparecia, sumia:
ficava um tempão sem aparecer. Carregava uma bolsa de couro cru, bem
surrada. Dentro dela uma Bíblia daquelas de capa mole, uma muda de
roupas e um monte de cópias em fitas cassete de um tal Rebanhão,
tipo feitas em estúdio de fundo de quintal, que faziam o maior
sucesso no meio da rapaziada.
A capa da fita, em papel cartão acetinado com a impressão em dourado
da silhueta de uma pastor com um cajado na mão e uma ovelha ao seu
lado, dizia tudo. Na aba menor os títulos: "Jesus, Filho do Homem",
"Baião", "Casinha", "Arco-Iris" eram uma pequena amostra da
genialidade do seu compositor.
A fita era absolutamente revolucionária. O repertório, eclético: uma
mistura original de rock rural, tendendo para o progressivo, com
canções bucólicas carregadas de fraseados poéticos.
Nessa época a MPB experimentava um movimento de renovação decorrente
da abertura política. A música de Janires revelava influências de Zé
Rodrix, Taiguara, Ivan Lins, 14 Bis, Raimundo Fagner, Gonzaguinha,
Mutantes, para não falar de Pink Floyd, Beatles, Genesis e tantos
outros que naturalmente influenciaram a nossa geração.
É importante falarmos do contexto cultural e musical que estávamos
vivendo, para nos situarmos no tempo e no espaço. Desde o início dos
anos setenta, algumas coisas começaram a mudar também nos meios
eclesiásticos.
Até então, nas igrejas cantavam-se os hinos dos hinários
tradicionais. O órgão e o piano eram os instrumentos permitidos. O
violão acabava de conquistar sua posição nos meios jovens. Guitarra,
baixo, sintetizador e bateria? Proibidos na grande maioria das
igrejas. Vencedores Por Cristo, Semente, Elo, Logos, Jovens da
Verdade e alguns outros grupos de expressão foram os embaixadores da
nova música evangélica, introduzindo com sabedoria e maestria uma
nova concepção musical.
Janires foi um dos mais importantes representantes da segunda fase
desta renovação musical. Falava das coisas comuns da vida. Ironizava
os políticos corruptos, os comerciais da TV, parodiava filmes e
novelas, falava das realidades, de sonhos, fracassos e frustrações,
do pecado e da miséria resultante, para apresentar, em fulgurante
contraste, a estonteante luz, a estupenda graça e a infinita paz de
Jesus Cristo, que transformou a sua vida, de um quase marginal e
presidiário, em um homem livre para viver a plenitude de uma vida
totalmente regenerada.
O Rebanhão era a cara do Janires. Começou ainda em São Paulo. A
primeira formação, tomara que eu não esqueça ninguém para não ser
injusto, tinha, entre outros, a Lurdinha, o Mike e o Carrá. Então
ele resolveu se mudar para o Rio. Acho que foi Jesus quem mandou.
Chegou com tudo o que ele tinha: a bolsa, uma mesa de som de 24
canais, um monte de caixas e amplificadores, e uma disposição
incrível de tocar e cantar Jesus Cristo onde quer que fosse.
Chegando ao Rio, fez logo seu primeiro discípulo: o Pedro Braconnot,
atual e incansável líder do Rebanhão, discípulo de Jesus Cristo. Um
dia ele e o Pedro foram assistir ao nosso humilde e esforçado
ensaio, e nos convidaram para acompanhá-los. Fomos, Kandel Rocha na
Bateria, André Marien na guitarra e eu, Paulinho Marotta, no baixo.
Assim nasceu a segunda formação do Rebanhão. Logo depois veio o
Carlinhos Félix com seu brilhantismo, para completar a formação.
Tocar no Rebanhão foi uma das mais fantásticas experiências da minha
vida. Janires era absolutamente inusitado! Todos tinham liberdade
para criar, e apesar de nossas muitas limitações, aconteciam coisas
interessantes. Essa música nos abriu espaços e muitas oportunidades
para pregar o Evangelho em praias, praças, teatros, rádios (não
posso esquecer do Paulo César Graça e Paz e da Radio Boas Novas em
Vila Isabel, no Rio, onde tudo começou), TV, jornais, coretos,
estações, e ruas desse Brasil afora. Muitas pessoas ouviram o
Evangelho da boca do Janires, e algumas delas tiveram suas vidas
transformadas pelo poder do Evangelho de Jesus Cristo.
Três anos depois, Janires sentiu-se direcionado a mudar para Belo
Horizonte, onde começou a servir na MPC, ao lado do Marcelo
Gualberto, do Carlinhos Veiga e tantos outros. Juntou-se à equipe
MPC e formou a Banda Azul, ao lado do Dudu Batera, Dudu Guitarra e
Moisés. É claro que essa separação foi dolorosa para nós, creio que
para ele também, uma vez que o Rebanhão foi criação sua e se
identificava tanto com ele.
Janires era fervorosamente apaixonado por Jesus. Ele tinha visto a
miséria de perto. Desde cedo aprendera a conviver com a
marginalidade em Brasília. Ganhava a vida como músico; logo se
envolveu com as drogas, e o tráfico acabou se tornando um meio de
vida. Preso em flagrante, talvez por ser primário, foi transferido
para o Desfio Jovem de Brasília, onde teve contato com o Evangelho
de Jesus Cristo. Lá, debaixo de muita oração e da disciplina e do
amor daquela equipe, comandada por uma serva de Deus, teve uma
experiência com Jesus. Ele não contava muitos detalhes dessa época,
mas que tinha um coração ainda muito duro e abandonou a fé e voltou
para as drogas. Algum tempo depois, agora já em São Paulo, ficou
internado no Desafio Jovem, onde finalmente rendeu-se aos pés do
Senhor Jesus. Sabia que ele não fizera nada de bom na vida para
merecer que alguém morresse por ele. Quando entendeu que o próprio
Filho de Deus morrera por gente como ele, não teve outro recurso que
não entregar-se com todas as suas forças a Jesus.
Desde então ele descobrira o amor de Jesus, e se apaixonara por Ele,
a ponto de dedicar a sua vida somente para Ele.
Janires era homem de oração. Sentia as dores dos que sofriam com as
drogas, com o abandono, com a miséria, com a falta de perspectiva.
Era lúcido e imparcial com os orgulhosos, os que se julgavam
superiores. De raciocínio claro, tinha sempre uma resposta objetiva,
às vezes mordaz, mas incrivelmente oportuna.
Tinha a sobriedade e a firmeza de caráter de um homem experiente, e
a vivacidade de quem tinha alguma coisa muito nova e boa pra contar.
Considerava-se totalmente dependente da graça de Deus. Dedicava
grande parte do seu tempo ao jejum, à oração e ao estudo da Bíblia.
Gastava tempo prostrado diante de Deus, intercedendo pelas pessoas
ao seu redor.
Janires não era um homem comum. Ele não se preocupava em casar,
constituir família, arrumar um bom emprego, comprar isso ou aquilo,
essas coisas que têm tanta importância para nós. Vivia do que
produzia. Sua música, seu artesanato: camisetas e impressos em
silk-screen. Frequentemente recebia ofertas, às vezes muito boas,
mas sempre achava alguém que precisasse mais do que ele daquele
dinheiro. Assim como recebia, dava generosamente.
Uma vez, dentro do ônibus, um policial revistando os passageiros,
mandou que abrisse a bolsa. Ele aproveitando a oportunidade, falou
para o guarda e para os outros passageiros da única arma que ele
carregava, que tinha transformado a sua vida: a sua Bíblia. Outra
vez fingiu-se de louco, gritando "Jesus, Jesus!" para afugentar
marginais que importunavam duas moças em Copacabana. Não tinha medo
da "barra pesada". Falava de Jesus para qualquer um, em qualquer
lugar. Não perdia oportunidades para contar que Jesus tinha
transformado a sua vida.
Janires foi inicialmente rejeitado e até odiado pelas lideranças
eclesiásticas que viam nele uma aparente ameaça, por ser tão
diferente do comum, mas ganhou o respeito e admiração de todos os
que puderam conhecê-lo de perto, por causa da autenticidade de seus
atos e de sua fé genuína em Jesus Cristo, e dos frutos que produziu.
Circulava livremente por todas as vertentes denominacionais, desde a
tradicional, até a mais renovada, e tinha grande simpatia dos grupos
católicos carismáticos. Janires valorizava a unidade da igreja,
respeitando as diferenças e peculiaridades de cada grupo. Por isso
ganhou o respeito e a simpatia de muitos.
Tinha um impressionante domínio do público. Falava para quarenta mil
pessoas com a mesma facilidade com que apresentava Jesus em um
diálogo pessoal. Todas as suas apresentações seguiam uma lógica. A
seqüência das músicas que cantava era concluída com uma prédica
inteligente, poderosa e inspirada, totalmente bíblica, cheia de
analogias culturais e temporais que prendiam a atenção dos ouvintes
para o ponto central: a confrontação com a realidade de Jesus
Cristo!
Em janeiro de 1988, foi chamado pelo Senhor Jesus para a Glória, em
um trágico acidente, quando voltava do Rio para Belo Horizonte. De
bens materiais não deixou muita coisa, além da velha bolsa e do
violão Ovation. Mas um imenso legado, de vidas transformadas pelo
seu testemunho e pelo seu exemplo, e pelas mudanças que imprimiu na
história da música evangélica contemporânea.
Eu, que escrevo estas palavras, tive o privilégio de conviver
durante cinco anos com o Janires. Posso dizer que ele, pelo seu
jeito de viver e ver a vida, influenciou tremendamente a formação da
minha fé, da minha atual escala de valores, da minha concepção do
mundo e do Reino de Deus. Digo isso, não para exaltar a memória de
um homem, mas para que Jesus Cristo seja glorificado!
Paulo Marotta
[email protected]
FONTE:
www.valterjunior.com.br
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