Vladimir Safatle Revista Opção Lacaniana
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O circuito fetichista do desejo e seus restos

O desejo é uma metonímia. Eis uma proposição que parece absolutamente evidente para um lacaniano. Nós conhecemos bem a figura deste desejo inominável, desta pura negatividade cujo destino seria o perpétuo deslizar pela cadeia significante, tal qual uma metonímia interminável. Mas gostaria de insistir nesta proposição predicativa aparentemente simples e já sabida. Até porque, é sempre sob a etiqueta de um já sabido que o não-saber se apresenta.

O desejo é uma metonímia : o que isto quer dizer exatamente ?

Vamos primeiro começar por aquilo que isto não quer dizer. Não se trata aqui de afirmar, por exemplo, que o desejo seria representado através de uma forma metonímica, como se existisse um conteúdo objetal primeiro escondido por trás das figurações da forma. Na verdade, a idéia central é que o desejo não passa de uma metonímia. Como sabemos após a diferenciação freudiana entre conteúdo manifesto, conteúdo latente e trabalho do sonho, o verdadeiro objeto do desejo inconsciente é o próprio trabalho de deslocamento significante. Da mesma forma que o verdadeiro objeto de desejo de um fetichista não se reduz exatamente a um par de belos seios ou de longas pernas. Antes, ele é o trabalho perverso de transfigurar a mulher em uma parte destacada de seu corpo. Pois o fetiche � que, como veremos, é a matriz constitutiva de todo objeto causa do desejo � não é simplesmente a imagem de uma parte capaz de apresentar o Todo de maneira imediata e não-castrada. Melhor seria afirmar que ele é a imagem da dissolução do Todo em uma de suas partes.

Mas a fim de apreendermos exatamente quais são as conseqüências de tal proposição é necessário começar pelo começo. Vamos pois começar soletrando o abecedário lacaniano.

Ninguém mais desconhece o papel desempenhado pela metáfora e pela metonímia nas considerações lacanianas sobre a noção de estrutura. Mas muitas vezes esquecemos como o essencial da articulação de Lacan só aparece ao expormos a relação de complementaridade que sustenta estes dois processos. É a partir de tal exposição que poderemos apreender a verdadeira dinâmica do circuito do desejo e de seus restos. Para tanto, vale a pena analisarmos com mais calma a estrutura lacaniana.

Para construir uma estrutura, sabemos que três fatores são necessários. Aqui, nós podemos fazer ressoar uma certa formalização colocada em circulação por Badiou1 :

  • Uma multiplicidade qualquer, ou seja, alguma Coisa para ser estruturada e cujo estatuto é pressuposto por retroação. Pois a partir do momento em que pomos uma estrutura, nós pressupomos a anterioridade de uma multiplicidade inconsistente que é condição para a ação da estrutura.
  • Uma regra capaz de estabelecer as condições de passagem de um elemento a outro e que, desta maneira, transforme uma multiplicidade qualquer em um conjunto articulado de elementos múltiplos. A ação da regra consistirá no ato de passagem de uma multiplicidade inconsistente a uma multiplicidade consistente.
  • Um fundamento para a regra; seja ele uma metaestrutura2, seja uma designação ostensiva de uma referência naturalizada3. Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior da estrutura. De um lado, ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que não pode ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede então um lugar-Outro4 no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. De onde se segue que toda estrutura tem um elemento que a nega.

 

Vemos que, no final das contas, precisamos apenas de dois procedimentos para construir uma estrutura: um de articulação interna e outro de fundamentação externa. A metonímia fará o primeiro trabalho e a metáfora fará o segundo. Ou ainda, o desejo fará o primeiro e a função do sujeito fará o segundo.

O desejo é a regra de passagem de um significante a outro. Uma passagem que obedece à contiguidade espaço-temporal da metonímia. Pois tal figura de linguagem : � é o efeito tornado possível graças ao fato der que não há significação que não remeta a uma outra significação"5. A fórmula tem o mérito de lembrar que a metonímia produz um certo efeito de significação através da articulação com o contexto, e não graças à correspondência a uma referência naturalizada. Nesta nadificação da referência a um objeto natural, a metonímia provoca, de um só golpe, duas conseqüências diferentes mas complementares. De um lado, ao fazer com que um significante se apoie sempre em outro significante, ela costura o tecido de uma linguagem que se veste a si mesma. Uma linguagem que não foi produzida para se moldar ao corpo de um substrato pré-discursivo. Desta forma, ela produz um Todo consistente que, como veremos, só pode ser da ordem do imaginário.

Aqui, vale a pena um aparte. É do papel desempenhado pela metonímia na produção do Todo consistente que vem a primazia lacaniana da metonímia sobre a metáfora. E, se tal primazia está bem presente no dito famoso do Pai Ubu : � Viva a Polônia, porque sem a Polônia não haveria poloneses �, é porque ele nos lembra que, sem a instauração prévia do conjunto-Todo, seria impossível nomear seus elementos.

Mas é necessário sublinhar que há um preço a pagar pela produção deste conjunto-Todo. Um preço caro, diga-se de passagem. Pois o trabalho de costurar um significante no outro transforma-se em um trabalho infinito. É fácil perceber que, a partir do momento em que a significação é sempre enviada ao significante-outro, entra-se em um deslizamento indefinido do sentido que infinitiza a barra que separa significante e significado. Moral da história : a consistência imaginária produzida pela operação metonímica é correlativa a perpetuação desta falta-a-ser que encontramos na altura da barra. A metonímia instaura a dimensão da ausência do nome próprio da Coisa. Nome que só será produzido pela palavra plena metafórica. Eis a razão que leva Lacan a afirmar que : � o desejo é a metonímia da falta-a-ser �6. A fim de ilustrar, basta lembrarmos do artigo princeps de Jakobsen sobre as afasias e, em especial, dos casos de pacientes com o gênero de afasia que afeta o funcionamento do eixo metafórico da língua. Todos eles têm a tendência a omitir o sujeito sintático e se sentem impedidos de enunciar proposições predicativas do tipo A=B e A=A. Quer dizer, eles simplesmente não são capazes de nomear o objeto visado ; fato que os atira no interior de um discurso infinito ruim que gira indefinidamente em torno da impossibilidade de nomeação da Coisa.

O problema é que, na cartografia conceitual lacaniana, a nomeação do ser da Coisa, operacionalizada pela palavra plena, é sempre um equívoco, o que a histérica sabe bem. Afinal, podemos interpretar a questão histérica como uma questão nominalista do tipo : � o que é um nome ? �, � Por que este Outro me chama de sua mulher ? �, em suma, � o que faz de uma nomeação uma nomeação ? �. Questão problemática já que, para este aluno de Kojève chamado Lacan, o nome é o assassinato da Coisa. Não há relação de adequação que possa garantir a nomeação. Em outras palavras, para Lacan, o ato de nomeação não pode obedecer aos pressupostos de uma teoria correspondencialista da verdade que postule a existência de uma espécie de substrato pré-discursivo apresentado pelo significante. A estratégia realista de designação ostensiva não terá lugar no pensamento lacaniano. Daí se segue a definição da Coisa como : "aquilo que do Real padece de significante". Ela é o que só aparece na estrutura como faltante.

Nota sobre a Coisa

Aqui, precisamos desenvolver melhor a noção lacaniana de Coisa a fim de apreender a especificidade do seu conceito de metáfora. Podemos começar afirmando que a Coisa guarda uma identidade lógica com a referida multiplicidade inconsistente pressuposta pelo aparecimento da estrutura. Como foi dito anteriormente, todo processo de simbolização pressupõe e põe um excesso. Mas de onde vêm tal excesso ? Ele vem da lógica mesma do processo. Se colocamos a questão do para-aquém da estrutura, nós recebemos como única resposta possível : � Antes da estrutura havia qualquer Coisa indeterminada que agora aparece como faltante �. Eis porque Lacan afirma que : � no nível das Vorstellungen, a Coisa não é nada, mas literalmente não é � ela se distingue como ausente, como estrangeira �7. Não se trata da falta de um objeto determinado mas, antes, de pura falta daquilo que não é determinável. Até porque, a determinação já é uma ação da estrutura e não pode ser anterior ao seu aparecimento. O paradoxo é que a pura falta aparece como excesso, como aquilo que não pode ser estruturado. Por esta razão, a Coisa marca o lugar do impossível em Lacan. Ela indica uma certa operação de sacrifício pressuposta pelo aparecimento do sistema simbólico.

� A palavra é o assassinato da Coisa �, dizia Kojève para sublinhar a existência de um descentramento presente em todo ato de nomeação. Nomear é descentrar o ser da Coisa de seu hic e nunc, de seu suporte natural, a fim de fazê-la passar à universalidade do conceito. Nós podemos enfim definir a nomeação metafórica como uma certa operação de recalcamento da Coisa. Fato que Lacan nos afirma ao falar do : � efeito de condensação enquanto que ele parte do recalcamento e faz o retorno do impossível, concebido como o limite de onde se instaura a categoria do real pelo simbolismo �8. Quer dizer, a metáfora é um recalcamento que, ao mesmo tempo, faz o retorno da Coisa como o limite à operação de simbolização. Ela atualiza uma ausência que abre no sistema simbólico a exposição do limite de seu dispositivo de designação nominal. Ë por isto que a palavra plena lacaniana será sempre uma impostura. Atrás da mulher do : � você é minha mulher �, haverá sempre este nada, este vazio cujo ato contínuo de não se deixar inscrever impede a estabilização do pacto simbólico.

Por outro lado, se lembrarmos que, para Lacan, o nome do ser da Coisa é a pulsão enquanto desejo no seu caráter fundamental de desejo puro inominável, vamos perceber que permanece em aberto o problema da apresentação nominal do desejo no interior da estrutura.

Tal problema estará bem enunciado por Lacan na afirmação famosa : � Que o desejo seja articulado, é justamente por isto que ele não é articulável �9. Quer dizer, como o desejo é a regra de articulação dos significantes, ele não pode, devido a uma impossibilidade lógica, ser articulável na dimensão significante. Mas há uma saída deste círculo vicioso. O que não é articulável no simbólico pode ser objetificado no imaginário. Eis o preço pago para produzir a consistência do Todo. A estrutura deverá contar com ao menos um elemento que não seja um significante articulável. Tal elemento será, ao mesmo tempo, a objetificação imaginária da regra e a objetificação imaginária da impossibilidade de um fundamento para a regra. Quer dizer, ele será uma ilusão no sentido marxista do termo. Um semblante ideológico que, por ter a indestrutibilidade de um semblante, é absolutamente necessário para o funcionamento do sistema. Eis porque toda consistência é da ordem do imaginário.

Para dizer de outra forma, como Lacan impede a duplicação da estrutura (� não há metalinguagem �, � não há Outro do Outro �) ele abre um lugar vazio no seu interior. Um lugar que pode ser visto como resposta à questão : � qual é o fundamento de um sistema mezzo-psicótico, que refere-se apenas a si mesmo, tal como o universo simbólico lacaniano ? �. Como sabemos, a resposta é : � não há �. De onde se segue a necessidade de produzir alguma coisa que esteja no lugar deste fundamento que não há. Alguma coisa que venha cobrir a ausência desta Coisa que não pode ser apresentada pela estrutura. Algo que tem nome no dicionário lacaniano. Trata-se do objeto petit a : este que Lacan chamará de objeto causa do desejo10. É na dimensão fantasmática do objeto petit a que a regra, ou no nosso caso, que o desejo se apresenta em toda a sua contingência e em toda a sua essencialidade de falta-a-ser inapreensível. Pois o objeto petit a, longe de ser apenas uma imagem congelada, é a imagem da negatividade do desejo se petrificando na inércia de uma determinação concreta que, em si mesmo, é absolutamente contingente.

O gozo perverso

Mas, para melhor expor tal ponto, será necessário fazer um curto-circuito e ir na direção da estrutura lancaniana da perversão. A razão para este procedimento é simples : trata-se de insistir na noção de metonímia enquanto deslocamento perverso. Pois : �a função da perversão do sujeito é uma função metonímica �11. É a partir daí que poderemos apreender todo o rigor lógico que encontramos na proposição lacaniana sobre : � este fenômeno fundamental que podemos chamar de radical perversão dos desejos humanos �12.

Quando afirmamos que o desejo é estruturado de maneira perversa, estamos no fundo dizendo duas coisas diferentes : uma mais evidente que a outra. O primeiro sentido da afirmação faz apelo à distinção fundamental entre as noções de necessidade e de um desejo cortado de toda aderência natural prévia. O outro sentido será uma conseqüência de ordem lógica que articulará a diferença entre o desejo alienado, preso em uma espécie de falso-gozo auto-erótico, e o que poderemos chamar de desejo verdadeiro.

Sabemos que há, em Lacan, uma certa deformação perversa das necessidade pelo desejo que faz eco ao dualismo ontológico de Kojève e à relação entre natureza e cultura em Lévi-Strauss. Pois a enunciação do desejo � esta passagem da necessidade pelo significante � faz sempre ressoar uma Outra Coisa à distância. Se o desejo pode ser a regra é porque a regra é o desvio. Basta lembrar que, ao tentar chamar o desejo pelo nome : � o sujeito não satisfaz simplesmente um desejo, ele goza por desejar �13. Para além da relação de objeto, haverá sempre o gozo do desejo enquanto desejo. Proposição que tem o sentido de afirmar a existência de um gozo próprio da metonímia, do puro deslocamento significante.

Mas se a perversão é fundada sobre o prazer do uso do significante é porque, no fantasma perverso : � o significante em estado puro se sustenta sem a relação intersubjetiva, esvaziado de seu sujeito �14. No fantasma perverso, este gozo do puro deslocamento significante se objetifica, se reifica (ele aparece sem a relação intersubjetiva) na imagem de um objeto inerte e opaco : o objeto petit a.

Aqui, já podemos colocar uma questão central : se seguirmos todo este raciocínio, como poderemos fazer a diferenciação entre desejo alienado e aquilo que Lacan chama no Seminário V de desejo verdadeiro ? Ou ainda, como diferenciar sublimação e perversão ?

Vamos começar pela seguinte hipótese : a perversão é o nome de um certo processo de trabalho que tem por finalidade produzir um objeto absolutamente particular chamado fetiche. Desde Freud , sabemos que o fetiche é um objeto produzido para defender o sujeito da angústia da castração. Uma castração percebida incidindo primeiramente sobre a mulher ou, mais precisamente, sobre o primeiro Outro que se apresenta ao sujeito : o Outro materno. Percepção que, graças a uma reflexividade própria à constituição do sujeito, recebe o valor de uma ameaça de castração contra si mesmo. Podemos pois afirmar que o procedimento perverso consiste na rejeição (Verleugnung) da castração através da produção de um objeto fetiche que impede a apresentação da falta no Outro correlativa à spaltung do sujeito. Afinal, graças a sua identificação com o fetiche, o sujeito se objetifica através da objetificação de seu desejo e permite a produção de uma consistência imaginária do Outro. Aqui, devemos lembrar como o sujeito rejeita, pelas vias objetificadoras do fantasma perverso, sua divisão e sua característica de falta-a-ser. Por isto que encontramos Lacan a afirmar que a estrutura da perversão : �  é propriamente falando um efeito inverso da fantasia. É o sujeito que se determina a si mesmo como objeto, em seu encontro com a divisão da subjetividade �15.

O interessante é que, se na dimensão significante o desejo sempre desliza, na engenharia imaginária do fetiche ele parece finalmente encontrar sua presentificação. O que prova que o fetiche é o nome do desejo. É por esta razão que, quando o fetiche se dissolve, não resta outra coisa que a angústia de um desejo que tem cheiro de morte. Prova disto é o que diz Lacan a respeito da destruição, pela mulher de Gide, das cartas que este lhe havia endereçado : � ela deixou uma falha aberta no seu ser �. Ou ainda, ela desvelou a estrutura do ser como falta-a-ser. De onde se segue a constatação de que a verdadeira função destas cartas-fetiches era dissimular tal lugar vazio. O gozo proporcionado pela produção de tais cartas só pode ser então uma imagem de gozo que só se sustentava graças à rejeição da castração. Uma imagem de gozo capaz de dissimular a impossibilidade do gozo. Pois a perversão : � na medida em que acentua a função do desejo no homem (�) institui a dominância, no lugar privilegiado do gozo, do objeto a do fantasma que substitui o A barrado �16

Mas como a perversão produz o fetiche responsável pela dissimulação da impossibilidade do gozo ? Aqui, o melhor a fazer é deixar a palavra ao próprio Lacan : � Esta função fetiche só é concebível na dimensão significante da metonímia �17. A função fetiche do objeto não é outra coisa que a exposição de seu caráter metonímico. Mas isto não quer dizer simplesmente que o fetiche é uma parte que tenta apresentar o Todo. É necessário ir mais longe e afirmar que o fetiche é a imagem daquilo que não se apresenta no deslocamento significante, ou seja, o próprio deslocamento, o trabalho do desejo. Ele é a fixação perversa deste momento no qual a mulher vai se transformando em pernas, boca. Ele é a imagem mesma do movimento congelado em um momento de suspensão. Aqui, a noção de fixação perversa deve ser compreendida como um certo procedimento de objetificação do movimento de deslocamento significante.

Podemos, então, dar a seguinte fórmula : o objeto fetiche é este elemento que deve ser contado para dar consistência ao conjunto-Todo. Um sistema simbólico qualquer será sempre fundado por um fetiche que estará no lugar de uma clivagem advinda da ausência de um fundamento exterior para a regra. De fato, todo sistema simbólico é fundamentado por um Totem cuja função é dissimular o impossível marcado pelo tabu. Nós podemos mesmo dizer que a castração é o nome desta operação de marcar o fundamento com o selo da falta. Aceitar a castração significaria, neste sentido, reconhecer a impossibilidade do Todo, do Um e da auto-identidade imediata. E se toda regra produz, tal qual uma espécie de sombra, um elemento fetiche que preenche o impossível de sua fundamentação exterior deveremos, então, sublinhar que tal elemento será responsável por uma certa auto-identidade imaginária ($ <> a).

O objeto sublime é um fetiche sem resto

Desta forma, chegamos à questão central deste artigo : como passar deste desejo fascinado pela sua própria imagem à sublimação capaz de fazer com que o sujeito se confronte com o inquietante estranhamento (unheimlich) de uma experiência de descentramento ? Minha resposta seria : não há como se passar do fetiche ao objeto sublime. Pois este objeto elevado à dignidade da Coisa � definição lacaniana para a sublimação � não é outra coisa que um certo gênero de fetiche. É por esta razão que Lacan insiste na presença de uma certa supervalorização do objeto (uberschätzung) na sublimação. Pensemos, por exemplo, em Antígona : o paradigma ético lacaniano. A beleza de seu gesto (e por que não dizer : a beleza perversa de seu gesto) consistiu em desejar a parte a despeito do Todo. Quer dizer, seu irmão à polis. Ao desejar a parte ela expôs a consistência imaginária da polis à destruição. Este amor era um amor sublime, e não um amor fetichista, porque o objeto, longe de dissimular a clivagem do Todo social da polis, transformou-se na afirmação desta clivagem. Através sua ligação ao irmão, Antígona revelou um amor pelo descentramento, amor pela falha. É aí que podemos identificar um gozo do impossível. Gozo de um Real que aparece como falha. Gozo absolutamente distinto desta imagem de gozo produzida pela fetiche

Aqui, devemos fazer eco a uma certa formulação que encontramos em Freud : � é na construção do próprio fetiche que encontrou acesso tanto a denegação quanto a afirmação da castração �18. Fórmula absolutamente fantástica devido ao seu caráter dialético. No fetiche, encontra-se acesso tanto o denegação quanto a afirmação. E, talvez, não se ultrapasse o fetiche porque, como sabem todos os dialéticos involuntários, o fetiche já é sua própria negação. De uma certa forma, ele já é a exposição de sua própria impossibilidade já que é apresentação determinada desta impotência do sistema que sempre será um Universal não-Todo. De onde vem a fórmula : o objeto sublime é um fetiche sem resto, ou seja, acrescido do momento de sua própria auto-negação.

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1 BADIOU, Alain; L'être et l'événement, pp.161-167. O esquema de Badiou é diferente deste conjunto de três fatores aqui apresentados. De fato, ele não parte de uma questão do tipo : � quais são os fatores exigíveis por uma estrutura ? �, mas: � quais são os fatores exigíveis por uma ontologia do infinito ? �. Quer dizer, se aceitamos a infinitude do ser e se aceitamos também a identidade entre ser e natureza teremos que pensar as condições para a infinitude da apresentação. Tais condições passam por um método de exaustão da finitude que será equivalente a uma síntese dos procedimentos de apresentação da multiplicidade. De onde se segue que sua questão resolve-se em uma classificação dos fatores de configuração de uma estrutura. Badiou nos apresenta quatro : a) uma multiplicidade apresentada ; b)uma regra ; c) um limite para a regra ; d)uma segunda multiplicidade que será, ao mesmo tempo, o lugar de articulação da regra e aquilo que aparece em posição de limite à mesma. Esta segunda multiplicidade será nomeada Outro e pode também ser pensado como uma metaestrutura. Por razões de praticidade, eu sintetizei os fatores c) e d) em um só.
2 Jacques Alain-Miller chamará tal metaestrutura, em um articgo célebre, de estrutura estruturante que se coloca como condição de existência de uma estrutura estruturada pela regra (cf. MILLER, Jacques-Alain; Matemas I, 11).
3 Esta será a estratégia realista por excelência. Ela consiste em afirmar que a regra fundamenta-se na sua similaridade ao real. Quer dizer, a estrutura teria uma certa correspondência com um mundo independente da nossa linguagem,.
4 Aqui se coloca também o problema do fundamento deste lugar-Outro, o que poderia nos levar a uma exaustão ao infinito. Mas, como sabemos após Lacan: "Não há Outro do Outro". O que quer dizer: há um vazio no lugar do fundamento. Retomarei esta questão a fim de demonstrar como o fetiche é o objeto que vem exatamente dissimular este vazio.
5 LACAN, Jacques; Ecrits, 622
6 LACAN, Jacques; Ecrits, 623
7 LACAN, Jacques; Seminário VII, 78
8 LACAN, Jacques, Radiophonie, pag. 69
9 Lacan, Jacques, Ecrits, pag. 804
10 Aqui vale uma ressalva . Como nos lembra Zizek: "o objeto petit a enquanto semblante é um engano no sentido lacaniano; não porque ele seria um substituto enganador do real, mas precisamente porque ele dá a impressão que haveria, atrás dele, algum real substancial: ele engana em se colocando como sombra de um real subjacente" (ZIZEK, Slavoj; Subversions du sujet, 44). Em outras palavras, é a posição do objeto petit a que pressupõe a Coisa.
11 LACAN, Jacques; Séminaire IV, 148
12 LACAN, Jacques; Séminaire V, 76
13 LACAN, Jacques, Séminaire V, 313
14 LACAN, Jacques, Seminaire IV, 120
15 LACAN, Jacques, Seminaire XI, 168
16 LACAN, Jacques, Ecrits, 823
17 LACAN, Jacques, Seminaire V, 70
18 FREUD, Sigmund, Fétichisme, 130

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