RTBlau/DataBlau - Textos especiais

O perigo dos anabolizantes

Dada a utilidade pública do assunto, segue o texto original com as retrancas e a manchete publicadas em meados de maio/2002 (há algumas notas em itálico em meio ao texto, à guisa de atualização e esclarecimento - não fazem parte do texto original):

"Bomba" mata!

Rogério Torquato

Repórter de Esportes

Vamos à cena: um rapazinho, digamos, vai para uma academia dessas da vida para ficar com aquele corpo escultural com músculos bem definidos, "saradão". Com alguns dias ou semanas, chega para o pai ou mãe com a idéia de tomar uma "bomba" (coisas do tipo uns comprimidos, um injeçãozinha, um suplemento alimentar "natural", recomendado por algum professor ou mesmo algum colega), para ficar com aqueles músculos de dar inveja até no Johnny Bravo... É melhor ficar de olho e tirar da cabeça de quem for essa idéia, porque essa "bomba" mata e tem nome e sobrenome - esteróide anabolizante

O nome não é estranho. Não é aquele troço que volta e meia aparece em alguns exames anti-doping de destacados atletas (inclusive olímipicos) mundo afora? Exatamente. Mais conhecidos simplesmente por anabolizantes, são hormônios sintéticos com efeitos anabólicos e esteróides semelhantes à testosterona, produzida naturalmente pelo corpo humano - principalmente pelos homens; as mulheres também produzem testosterona, mas em quantidades bem menores.

Esteróides o quê?

Os esteróides anabolizantes começaram a ser utilizados na Segunda Guerra Mundial, para aumentar a massa muscular e dar uma melhor aparência aos presos dos campos de concentração alemães, praticamente só carne-e-osso; tais hormônios sintéticos passaram a ser desenvolvidos para valer na década de 1950.

 Roberto Vital, médico, durante as Paraolimpíadas de Sydney. Foto Rogério Torquato, outubro/2000
Roberto Vital, médico, durante as Paraolimpíadas de Sydney. Foto Rogério Torquato, outubro/2000

Hoje, os anabolizantes têm uso restrito na área médica. "Às vezes se indica para, por exemplo, crianças com alteração no crescimento (doença conhecida como nanismo), falta de produção do hormônio, alguns casos de câncer e até osteoporose", comentou o médico Roberto Vital, que cuida da saúde dos atletas do ABC e foi o responsável pelos cuidados médicos dos atletas paradesportivos brasileiros nas Paraolimpíadas de Sydney (Austrália), há quase dois anos.

Os tão falados benefícios, basicamente, são o aumento da massa e da força muscular e o aumento da hemoglobina (os glóbulos vermelhos do sangue que contribuem na oxigenação do corpo) - estes dois efeitos são os mais visados por quem quer ficar "sarado" em pouquíssimo tempo, e também interessam a alguns atletas de alto nível mundo afora.

Só que, para começo de conversa, não adianta forçar. "Há o limite do organismo, como por exemplo a herança genética, que determina o padrão dos músculos da pessoa. Para desenvolver os músculos requer um certo tempo, e não é com apenas um mês de academia que isso vai acontecer; é algo que requer tempo, a médio e longo prazo. Se a pessoa, por exemplo, é magra e isso é de família, não dá para se tomar um Incrível Hulk. Aí, no intuito de ficar 'sarado' - é um fato, não adianta esconder nem negar, está ai - o sujeito acaba sendo induzido ao uso de anabolizantes. Mas quem fala, seja os colegas, seja algum professor, ou quem for, geralmente não diz os problemas que os anabolizantes causam".

Podres poderes

A fim de alcançar o efeito desejado rapidamente, o indivíduo costuma partir para a superdosagem. Eis o perigo, mais comum do que se pensa. "A dose recomendada, por exemplo, é 'xis' e o sujeito usa dez 'xis' ou mais. Mas como tempo surgem os efeitos colaterais, às vezes cinco ou dez anos depois - alguns são reversíveis, mas outros não", explica Vital, lembrando que isso depende do tempo de uso e da quantidade. "A pessoa fica bonita e forte por fora, mas fraca e podre por dentro".

Efeitos colaterais? Sim, e não são poucos. O uso excessivo e prolongado leva, nos homens, a uma atrofia dos testículos e do pênis (o "saco" e o "pinto" por assim dizer, encolhem e enfraquecem) (desculpem-me pelos termos!), e à esterilidade (que pode ser irreversível), a voz afina e há um crescimento dos seios; nas mulheres, a voz engrossa (o que muitas vezes é irreversível), os pêlos crescem e o clítoris (ou clitóris, fica a critério) aumenta.

Acha muito? Isso não é nada, a relação de efeitos começou agora. Tanto em homens quanto em mulheres ocorre calvície precoce (na mulher, a calvície costuma ser irreversível) e espinhas no rosto; o uso continuado de anabolizantes pode comprometer e inclusive parar o crescimento do indivíduo (uma pessoa que poderia ter, digamos, 1,70 m; poderia ficar com 1,50 ou pouco menos).

Osso e juízo soltos

E é porque ainda não se comentou sobre as lesões músculo-tendínicas. É o quê? Traduzindo: os músculos são "colados" aos ossos através dos tendões. "(Com os anabolizantes,) os músculos aumentam, mas os tendões não acompanham esse aumento; numa situação de esforço, pode acontecer do tendão não suportar e ocorrer uma ruptura por arrancarnento", comenta Vital. Resumindo: osso para um lado, músculo descolado para o outro, e uma dor insuportável.

Só para lembrar, foi numa dessas que o halterofilista russo Kaarlo Ikarigasniemi, ouro no levantamento de peso nas Olimpíadas de 1968 ficou paralítico pelo resto da vida: "bombado" todo, ao levantar uma barra de 160 quilos, teve um rompimento desses nas costas - e a barra caiu-lhe sobre a nuca, quebrando-lhe uma das vértebras...

Outro efeito malévolo é a irritação frequente e crescente - a pessoa vai ficando cada vez mais agressiva e perde o controle (o pior é que em muitos casos este comportamento anti-social é irreversível).

O risco real de morte fulminante

Tem mais, muito mais. Outros efeitos desses hormônios são edemas (retenção de líquidos nos tecidos), suor abundante, pele extremamente oleosa (nas mulheres), danos irreversíveis ao feto em caso de gestação, dores nos ossos, febre reumática, fortes dores de cabeça, fadiga e cãimbras, insônia profunda, náuseas e vômitos frequentes por vezes com sangue -, amarelamento (e em casos mais graves escurecimento) da pele, amarelamento dos olhos (sinal de possível hepatite), perda de peso, problemas no coração, sangramento no nariz, queimação e dor ao urinar, alterações no funcionamento do intestino (fortes dores e sangramento), do fígado (incidência de hepatite e cirrose) e dos rins (sobrecarga, surgimento de tumores e de cálculos com até 2 cm de diâmetro), ocorrência de câncer, alterações cardíacas, hipertensão (a pressão arterial vai às alturas mesmo)...

A essa altura do campeonato você já deve estar pensando "...agora só falta a morte como efeito". Não falta, não: a morte fulminante também está incluída como um dos efeitos dos esteróides anabolizantes. "O individuo está ali, bonzinho; de repente, tem um 'troço' no meio da rua e, de um instante para o outro, está morto", resume vital. Aliás, todos os efeitos colaterais citados até aqui são cientificamente comprovados.

Por que isso tudo acontece? Sendo o esteróide anabolizante um hormônio, quando se aplica uma quantidade extra de esteróide no organismo, o corpo fica com excesso de hormônios e aos poucos vai parando a produção interna dos hormônios correspondentes - o que desequilibra todo o sistema hormonal, gerando toda sorte de efeitos e problemas. Qualquer livro de Ciências de sétima série primária explica isto, ainda que de forma geral.

Alguns esportes são bem mais visados

Existem esportes que são mais visados que outros quando o assunto é anabolizantes. O mais lembrado, de cara, é o levantamento de peso - e aqui, nem atleta paradesportivo escapa: praticamente toda a equipe da Bulgária foi apanhada no exame anti-doping nas Paraolimpíadas da Austrália, há quase dois anos, deixando médicos de várias delegações e o próprio Comitê Paraolímpico Internacional extremamente preocupados.

Mas há outros, como o atletismo tem a reincidência recente de Fabiane Pereira, que vai ser analisada pelo IAAF (a entidade máxima do atletismo internacional), e outros casos como os de Sanderlei Parrela e do cubano Javier Sotomayor. (Era esta a situação destes atletas no início de março/2002; em dezembro/2002, a IAAF divulgou o resultado da análise de Fabiane, banindo-a do esporte - e, infelizmente, ela foi a primeira atleta do Brasil a receber tal punição)

Também podem ser citados o futebol americano (o tal "rugby", que não tem nada a ver com o nosso futebol, conhecido nos Estados Unidos por "soccer") e o beisebol. "Nos Estados Unidos, ano passado, morreram quatro atletas de morte súbita, todos devido a anabolizantes", lembrou Vital - e, curioso, lá não há tanto controle como em outros países; o importante é que se vença, independente de como se faz isso. "Agora é que nos Estados Unidos está começando a ser feito algum controle"

Há ainda que considerar a natação - e aí nem precisa forçar muito a mente para lembrar de uma das atletas da Holanda nas Olimpíadas de Sydney: as características eram muito nítidas, queixo largo, pernas compridas, músculos destacados e bem definidos para todos os lados, e voz grossa, quase de homem.

Nada natural

E aquela história do coleguinha sugerir "aquele" suplemento vitamínico, que diz que é natural, deixa o individuo "ligadão" e tal-e-coisa? Melhor pensar pelo menos duas vezes. "Não existe suplemento 'natural'; isso é uma coisa perigosa. Por exemplo, alguns complexos vitamínicos importados têm anabolizantes na fórmula, mas na hora de se fazer a tradução, os nomes dos anabolizantes não são colocados - justamente o mais importante. A pessoa nem sabe que está tomando (um suplemento com anabolizante) - você acaba tomando algo que pode trazer beneficio e malefício..."

E é porque desde maio de 2000 existe uma Medida Provisória obrigando que, nas bulas de remédios considerados "doping" (e anabolizante é "doping"!), conste a frase "esse medicamento contém substância considerada doping no esporte".

Artigo Doze

Quem pensa que esse problema acontece somente em academia está muito enganado: hoje em dia, até na Internet os anabolizantes estão disponíveis - e, quase certo em se tratando da Grande Rede e da velocidade que as coisas acontecem nela, já deve ter gente por aí fazendo compra virtual, até via e-mail (será o e-Bomba?). Isso também deixa os médicos e pais de cabelos em pé.

"É coisa que deveria ser combatida com mais rigor. Hoje, pode-se comparar o anabolizante até mesmo como uma droga", considerou Vital. No final de 2001 foi realizado um Congresso Anti-Doping no Rio de Janeiro, e foi proposto algo parecido com a hoje lei de Entorpecentes (o manjado "Artigo 12") para os anabolizantes: quem fosse pego, deveria ser enquadrado como "traficante". "Era bom que fosse lei..."

Falando em leis, existe há quase quatro anos uma lei que não permite que se vendam anabolizantes (e alguns derivados) em farmácias, a não ser com receita de controle especial em duas vias um esquema semelhante ao dos remédios controlados (os populares "remédios para doidos"). Quem quiser conferir, são a Portaria 344 do Ministério da Saúde (de 12.05.1998) e a Lei Federal 9.965 (de 27.04.2000).

Mas, se no Brasil, o sujeito consegue comprar remédio de dor de cabeça na farmácia da esquina sem receita?... Isso quando o individuo não alopra: tem gente que consegue anabolizante até em farmácia veterinária (como aconteceu há algumas semanas no Jóquei Clube do Rio de Janeiro, com matéria exibida na TV e tudo)(isso foi entre o fim de fevereiro e o início de março/2002, uma reportagem de domingo na TV Globo que deu o que falar na época). Imagine aí, o sujeito tomando hormônio para equino em dose para cavalo a fim de ficar esbelta... isso acontece com os humanos, mas nem jumento é tão burro.

Doping

A própria Vigilância Sanitária também está preocupada, assim como a Secretaria Nacional Anti-Drogas. "Isso é um problema seríssimo!", alerta Vital. "Até hoje não há estatísticas (conhecidas) no Brasil sobre este assunto; mas nos Estados Unidos, cerca de 80% das pessoas entre 12 e 30 anos em academias já experimentaram alguma espécie de anabolizante. Os pais, professores sérios e as sociedades de medicina esportiva estão tentando combater isso".

No mundo esportivo, só para lembrar, existem as normas e o controle anti-doping (com exames de urina e, mais recentemente, exames de sangue), com penas severas que vão desde uma advertência até o banimento do atleta da modalidade esportiva que pratica (lembra do canadense Ben Johnson, há uns 10 anos atrás no atletismo? Pois é, ele foi banido por ter sido pego mais de uma vez no anti-doping). "Hoje já se preconiza isso com os conselhos estaduais de esporte" - no Rio Grande do Norte, algo sobre o assunto deve ser posto a público no mês que vem.

De toda forma, o assunto assusta. "Hoje, o indivíduo tem, digamos, 15 anos e com bastante saúde. Começa a usar anabolizantes com frequência. Daqui a uns cinco ou dez anos estará inútil, fica doente mesmo e muitas vezes de forma irreversível, sem retorno", fecha Vital.

Ninguém vai querer ver o colega, o parente próximo, o conhecido ou mesmo o próprio filho, com seus vinte e poucos anos (ou mais, ou menos), inutilizado ou imobilizado para o resto da vida - ou, pior, com aqueles músculos de dar inveja mas mortinho da silva num caixão de defunto - por causa de umas injeções cavalares, uns comprimidos estranhos ou um suplemento aloprado ou algo parecido, "recomendado" sabe-se-lá-por-quem, só porque queria ficar mais esbelto ou mais bonito. Ou vai?

Publicado em O Poti, 24.03.2002, Caderno de Esportes, página 6
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