O CHIMARRÃO E OS GAÚCHOS


Cerremos as pálpebras e tentemos trazer ao mundo da imaginação a figura de um gaúcho. Logo hão de surgir os contornos de um cavaleiro imponente, vestes coloridas, montado num corcel fogoso, olhos postos no sem-fim da planura. E nos criaremos então um embaraço: um gaúcho autêntico, se lhe tiramos o complemento indispensável? Como afastar do campeiro do sul o seu “pingo” escarceador, sem o risco de ferir-lhe a autenticidade?

Aqueçamos a água da chicolateira ao calor do fogo-de-chão, retiremos um pouco de erva-mate do saquinho resguardado no fundo da mala-de-garupa, e alcancemos ao gaúcho a cuia do chimarrão.

Mais do que o próprio “pingo”, o mate-amargo constitui a principal característica do crioulo rio-grandense. O gaúcho poderá deixar o pago, em busca do traiçoeiro brilho das cidades; poderá substituir o mugido melancólico da tropa pela ensurdecedora azáfama das fábricas; Tudo poderá evoluir, transmudando a vida pitoresca dos pampas. Mas sempre haverá o chimarrão, alimentando as tradições gaúchas, recordando as arrancadas do passado, levando de boca em boca a seiva pátria.

Na zona rio-grandense em que vive o gaúcho propriamente dito, toda a vida da querência - as lidas do campo, as tropeadas e pousos os amores singelos e os ódios - tudo isso é regado pelos sorvos da erva-mate. E, numa estância, o dia sempre se inicia com o “amargo”...

Na verdade, ainda dormiam os campos nos braços da noite , quando o peão caseiro abrindo com as alpargatas dois caminhos no orvalho esbranquiçado, se dirigira ao galpão, para reavivar o fogo esmaecido. E quando a peonada levantou, ao apontarem as barras do dia, o primeiro aperto de mão foi à cuia do mate-amargo. Muitas vezes, somente horas mais tarde, já cumpridas as primeiras tarefas, é que os gaúchos hão de voltar “as casas”; a mesa, então, estará preparada para o café, pois há muito as chinocas da estância haviam saído da mangueira com o leite da brasina espumando nas vasilhas.

Os campeiros alcançam o prêmio das canseiras do dia, em torno do fogo com a cuia a passar de mão em mão, vão recordando as façanhas do rodeio, a rodada do Jango, do pealo de cucharra que o Neco largou prá cima do tourito pampa fazendo-o cantar o lombo de encontro ao solo após a caravolta completa. O gaúcho, geralmente calado todo o dia, já que a lida com o gado lhe toma toda a atenção, se transforma no estabanado contador de aventuras quando sente a quentura do mate acariciar-lhe a garganta. Todo o seu silêncio se queima, então, nas brasas, e já se ouvem os casos, contraponteados por “gargalhadas de galpão” tonitroantes, transbordantes de vida e de alegria.

Na roda do amargo, mais do que nunca, o gaúcho sente agitar-se a sua alma abarbarada. Aquecido pelo calor das brasas, ressurge o gênio das coxilhas. Naquele convívio íntimo dos homens, abrem-se os corações no relato das emoções sentidas. E as histórias de amor desfilam, entremeadas dos episódios guerreiros, abrilhantadas pelas trovas de improviso ao compasso das violas. E os homens riem, felizes. O corpo sacode, na gargalhada gostosa, e a água quente, derramando da cuia, escalda as mãos do gaúcho, dando ensejo a novas gargalhadas, mais gostosas ainda. O chimarrão vai selando amizades, vai enovelando as almas simples dos homens do campo, vai aquecendo ao fogo-de-chão o espírito humanitário e cavalheiresco da gente pampeana.

Se, entre os homens de uma mesma fazenda, o mate muito contribui para firmar-se o espírito de solidariedade, não menos digna é a sua tarefa de simbolizar a hospitalidade gaúcha.

Chegai a uma propriedade rural do Rio Grande. Mal a cachorrada, cansada de latir, fica gemendo ao redor do forasteiro, já alguém, percebendo a visita, gritará o “Apeie-se e passe”. A porta da casa se abre de par em par, e julgareis ouvir das paredes que “este rancho é seu”. O primeiro cuidado dos bons donos da casa será, então, brindar o viandante com um amargo recém cevadoabre de par em par, e julgareis ouvir das paredes que “este rancho é seu”. Os “causos” se estenderão pela tarde afora, e ninguém afirmaria que aquela amizade se iniciara há pouco. E quando o sol, alongando a sombra das figueiras, afirmar que já é hora de partir, ainda ouvireis, significando “fique mais um pouco”, “dê-nos por mais tempo a alegria de sua presença”, a tradicional frase gaúcha:

- Tome mais um mate...

Vemos o mate acompanhando todos os passos da gauchada, nas horas de tédio ou de alegria, nos dias felizes ou desditosos, no rancho ou no campo aberto, será o chimarrão o mais fiel companheiro do gaúcho. Para acalmar a canseira, nada melhor do que ele. Nem nada melhor do que uma cuia de mate para “sentar o bóia”, quando o churrasco ficou “pesando” no estômago. E, tirando nó-nas-tripas ou doença complicada, dessas de chamar médico, qualquer mal se entrega a uns goles de erva-mate.

E assim, toda a vida do gaúcho é pontilhada pelos sorvos do amargo. A primeira vez que ele prova o mate - há tanto tempo, era então um pinguinho de gente! - foi num dia em que a peonada partira para o campo, e deixara a cuia abandonada ao lado dos tições, ainda com a cevadura utilizada há pouco. A erva estava lavada, a água fria, e até um pouco de cinza se intrometera na boca da bomba. Mas como aquele mate era gostoso! Pagara a pena provar!... Depois, foi a mamãe bondosa que - soprando na bomba para não queimá-lo - lhe deu um pouco de mate doce, gostoso como suco de guabiroba madura. E uma noite - já com corpo de gente e entonado como os “grandes” - lhes alcançaram a cuia na roda da peonada. Desde aí, para o resto da existência, o gaúcho terá por complemento inseparável a erva-mate. E quando um dia, pela primeira vez ele sentir a proximidade da morte, há de surgir-lhe à mente tudo o que de bom irá perder. O pingo, o rancho, a mulher e a criançada, a ponta de gado, o cusco oveiro companheiro de mil tropeadas, a cuia flor-de-porongo...


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