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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

LABORATÓRIO DE PESQUISAS EM EDUCAÇÃO

EVENTO: "EDUCAÇÃO E NOVO MILÊNIO"

CATEGORIA: COMUNICAÇÃO

TEMA: OSCILAÇÕES NA ESCRITA DE MONTEIRO LOBATO: ESCRITURA OU ESCREVÊNCIA?

AUTORA: NEIDE DAS GRAÇAS DE SOUZA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Foi defendida e aprovada em Agosto de 1999. (Financiamento da Capes)

Área de concentração: Literatura Brasileira

Linha de Pesquisa: Literatura e Psicanálise

Orientadora: Profa. Dra. Ana Maria Clark Peres

RESUMO

A investigação em torno da escrita de Monteiro Lobato foi norteada, sobretudo, por algumas teorizações de Roland Barthes (em que o diálogo com a psicanálise torna-se profícuo), mais especificamente, por seus conceitos de escritura e escrevência. A partir desse instrumental teórico, buscou-se reler as obras Viagem ao céu (1932), Memórias da Emília (1936), Dom Quixote das crianças (1936), O Pica-Pau Amarelo (1939) e A reforma da natureza (1941), apontando-se oscilações na escrita do autor, que ora tende à escritura, ora à escrevência. Considerando que, tradicionalmente, privilegiam-se leituras voltadas para a exaltação e idealização de sua personalidade e de seus feitos enquanto intelectual "revolucionário", bem como para a importância dos conteúdos ideológicos de suas obras na formação das crianças, o destaque do movimento oscilatório na escrita de Lobato propicia um novo olhar crítico sobre sua produção literária.

 

 

 

 

 

Para iniciar, gostaria de situar os ouvintes no tema principal desta dissertação, esclarecendo, sucintamente, seus objetivos centrais, bem como apresentando algumas de suas conclusões. O título deste estudo traz uma pergunta: Oscilações na escrita de Monteiro Lobato: escritura ou escrevência? Trabalhei, pois, com alguns livros da literatura infantil do autor, priorizando a sua escrita e levantando questões sobre ela. Cinco obras foram contempladas na minha dissertação: A reforma da natureza (1944); Memórias da Emília (1936); Viagem ao céu (1932); O Pica-pau Amarelo (1939); Dom Quixote das crianças (1936).

Detectei, inicialmente, que tocar no nome de Lobato é algo diverso de mencionar apenas um autor; é falar de uma personalidade memorável e, de certa forma, idealizada, uma espécie de personagem, não só para leitores diversos, mas também para alguns críticos literários, que o consideram o expoente máximo e inquestionável da literatura infantil brasileira e um intelectual progressista e revolucionário. É verdade que as contribuições de Lobato para o desenvolvimento da literatura, como também para a modernização geral do país são inegáveis e bastante mencionadas em estudos diversos, mas seria sua escrita para crianças sempre revolucionária?

Tratar da obra de um autor "tão admirado" mas que, paradoxalmente, não é mais tão lido como anteriormente, foi aceitar um desafio. A situação me parece semelhante à de algumas praças públicas em que estão erigidos monumentos em homenagem a personalidades imprescindíveis na história daquele povo. As pessoas passam diante de uma estátua de alguma "autoridade" importante, por exemplo, e reafirmam a si mesmas que devem estar diante de alguém muito famoso, ao lerem a plaquinha (logo abaixo, com os dizeres sobre o mesmo). Entretanto, muitas vezes, os feitos nobres, ou a obra do homenageado em questão, permanecem desconhecidos da maioria dos transeuntes. Assim me parece ter ficado boa parte da literatura do inventor do "Sítio do Pica-pau Amarelo".

Aceitar o desafio de trabalhar com as oscilações na escrita de um autor tão festejado foi possível pela via da sedução exercida por parte de sua própria ficção, ou seja pelos "amavios" da sua literatura. É daí que surgiu a fundamentação teórica a partir de alguns textos de Roland Barthes em que aparece uma interlocução com a Psicanálise. Valendo-me, ainda, de alguns aspectos pontuais da obra de Freud, Lacan, também de Blanchot, Benjamim, além de outros, sustentei a posição de que há uma diversidade na escrita de Lobato, ou seja, que ela não se faz a mesma todo o tempo.

Haveria fragmentos em sua obra bastante relevantes, por tangenciarem a prática da escritura nos termos (barthesianos): teatro da linguagem ou revolução da linguagem. Apontei, ainda, que o Lobato escritor seria também escrevente, que, freqüentemente, sua escrita é primordialmente transitiva, ou seja, tem uma mensagem explícita endereçada ao público de sua época, com função educativa premente.

Há que se considerar seu contexto histórico e a validade de seus textos idealizadores de novas estruturas sociais, ainda que meu olhar se volte para suas narrativas.

No clássico ensaio de Benjamim, "O Narrador", ele afirma que a arte de narrar está em "vias de extinção". Já, nessa época, em 1936, chama atenção para esta questão. Cito Benjamim:

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.

 

Suas palavras são bastante atuais, frente a enormidade de informações que enfrentamos todos os dias, e as histórias surpreendentes, a meu ver, são as que sobressaem no campo literário.

No autor brasileiro, busquei apontar as histórias surpreendentes – escritura? – em meio às explicações – escrevência? – nos livros que já citei. Assim, ficam evidenciadas as oscilações do escritor e escrevente Lobato, embora elas não possam ser assim tão facilmente delimitadas.

Os principais objetivos da pesquisa podem, assim, ser evidenciados pelas seguintes questões:

1. A obra infantil de Monteiro Lobato, reunida sob dezessete títulos pela editora Brasiliense, pode ser considerada homogênea? Lobato teria praticado a mesma escrita entre 1917 e 1944, período ao longo do qual seus textos "para" crianças foram produzidos?

2. Optando por me deter nessa escrita (sem, contudo, descontextualizá-la), numa perspectiva distinta da até então adotada, levanto outras questões: encontraríamos na escrita lobatiana traços revolucionários constantes? Como conceber essa revolução?

3. Teria o autor rompido com o didatismo vigente na literatura endereçada à infância, já que é considerado o grande nome brasileiro nesse setor?

4. A sua concepção de criança – e, por extensão, de Literatura Infantil – seria, de fato, radicalmente inovadora, como se supõe com freqüência? Quais seriam as marcas de sua linguagem literária infantil?

Em princípio, creio ser possível afirmar que sua literatura infanto-juvenil não constitui um texto único, como será visto no decorrer desta apresentação, mas consiste numa diversidade de textos, em que se detectam oscilações, linguagens diferentes. Pretendo tratá-la em seus aspectos escriturais, sem buscar uma correspondência direta entre "personalidade revolucionária" e "escrita revolucionária".

A escrita com pretensão didática é, no meu entender, aquela que busca sempre a tentativa de solução de um conflito ou uma reconciliação – escrita encobridora, escrevência – em que o sujeito (narrador e/ou personagem) tentaria se mostrar sem falta diante do Outro. Procura-se obturar a falta, envolver o leitor com uma série de explicações, que variam de assunto (gramática, aritmética, geografia, história, etc.), mas que servem ao ensinamento, à complementação de informações, à formação (formatação?) das crianças. Tal maneira de tentar preencher o vazio resultaria numa escrita descritiva, repleta de imagens exageradas, adjetivos recorrentes, aumentativos, longos diálogos de perguntas e respostas detalhadas e "expressivas", que não querem deixar furos, ao se referirem ao mundo e suas leis. É a voz do escrevente, ocupado em tudo dizer e ensinar, a partir de suas pré-ocupações sócio-políticas.

A escritura, por sua vez, também aparece na escritura lobatiana, como já foi dito, apontando para um revolver constante e lúdico, para uma revolução que difere da transformação vinculada diretamente ao plano da realidade, capaz de instaurar e fixar uma nova ordem social ou política.

Barthes, ao tratar das relações entre literatura e Real, assim afirma:

Eu dizia há pouco, a respeito do saber, que a literatura é categoricamente realista, na medida em que ela sempre tem o real por objeto de desejo; e direi agora, sem me contradizer, porque emprego a palavra em sua acepção familiar, que ela é também obstinadamente: irrealista; ela acredita sensato o desejo do impossível.

 

Creio que toda escritura apresenta essa característica, apontada por Barthes, de acreditar sensato o desejo do impossível: a partir do vazio, brinca, joga com a linguagem, propondo novas ordens (pela via da ficção), que jamais se fixam, não alcançam uma plenitude e geram novas escrituras.

Leyla Perrone-Moisés elucida um pouco mais esse vínculo entre a literatura e o Real:

Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala), a literatura nasce da vivência da falta e da aspiração à completude. Essa completude, a literatura não nos pode dar. O que ela nos pode dar, isso sim é uma forma de conhecimento que satisfaz: não uma verdade abstrata e dada, mas uma verdade corporificada e em obra.

No trançado de histórias de Lobato, se a voz do escrevente se faz ouvir com freqüência, escutamos também a voz do escritor, que se mistura à primeira e ecoa em uma linguagem de caráter intransitivo, que abre espaço para indagações, reflexões, convidando-nos a entrar na sua ficção, no seu jogo. Esvaída de pretensões objetivas, essa fala não se fecha nem se desatualiza. Surgindo sem ser em função do preenchimento de uma falta, funciona, repito, a partir dela.

Em A reforma da natureza (1944), a meu ver predomina a escrevência (com, evidentemente, excertos que sinalizam para um processo de escritura). Essa obra, que se divide em duas partes, tem como protagonistas principais as personagens Emília e Visconde. Na primeira parte uma série de objetos, plantas e animais sofrem alterações ordenadas por Emília: pássaro, vaca, borboletas, moscas, pulgas, pernilongos, cadeira, livros, etc. Ela está acompanhada de uma amiga, enquanto as demais personagens estavam ausentes, reformando a Europa, aconselhando os líderes políticos em questões referentes à guerra e paz. No retorno de Dona Benta ao sítio, as estranhas reformas são quase todas desaprovadas e as coisas devem voltar a ser como eram . Fica explícito o inconformismo particular do autor em relação a ordem normal das coisas, e sua escrita é eminentemente descritiva. Sucessivos diálogos encerram modificações estranhas, realizadas de modo incompreensível e igualmente remodificadas. Na segunda parte, as reformas são operacionalizadas em animais, de modo mais criativo, e a trama envolve elementos do discurso científico permeado pela ficção. Dessa maneira há um certo segredo, compartilhado por Visconde e Emília, detonador de uma narrativa mais "surpreendente". A obra é bastante temática, supostamente revolucionária, e traz algumas demonstrações de cruzamento de discursos diferentes, como o que se deu mais ao final do texto, entre ficção e ciência pela via literária.

Já em Memórias da Emília (1936) busquei apresentar o predomínio do processo de escritura uma vez que a multiplicidade das possibilidades de linguagem aparece encenada. Na escrita de memórias, realizada, curiosamente, a quatro mãos, em meio aos conflitos incessantes entre Emília e Visconde, há rica demonstração da "trapaça salutar da linguagem", como nos diz Barthes, ou se preferirmos a literatura. Na conturbada escrita das memórias, marcada por indecisões, rupturas, o autor parece-me ter atingido uma sofisticada narrativa em que uma história engendra outras, ficções dentro da ficção, onde o próprio desafio da escrita surge figurado. A escrita como suposta realização dos desejos da Emília, uma vez que ela narra o que gostaria que tivesse acontecido, é colocada ao lado da obrigação de escrever vivenciada pelo Visconde, seu escriba, seu escravo, às vezes rebelde. (Me pergunto se essa recorrente relação de submissão do Visconde com relação à Emília não seria uma forma de apresentar a magia da literatura frente a impotência do discurso da ciência) Também nessa mesma obra há uma espécie de continuidade de uma ficção iniciada em outra obra, Viagem ao céu, de 1932 – a "Estória do Anjinho de asa quebrada" – permeada por narrativas teatrais, cinematográficas. Essa pequena "estória", sobretudo, evidencia os jogos com as palavras, ou a dança dos significantes. Nos diálogos entre Emília e Flor nas Alturas fica demonstrada as impossibilidades da comunicação, e o eterno risco do ensinamento.

(...) E as pimentas usam um ardor que queima a língua da gente.

– Então têm fogo dentro? Fogo é que queima (...)

– Ah, anjinho! Você vai custar a compreender os segredos da língua humana. Este ‘queima’ é outro caso. Queimar é uma arte que só o fogo faz, mas quando uma coisa arde na língua nós dizemos que queima.

– Mas queima mesmo?

– Não queima, mas nós dizemos assim. Um ácido que pingamos na pele nós também dizemos que queima. Uma loja que está em liquidação nós dizemos que está ‘queimando’ as suas mercadorias. No brinquedo de esconde escondem quando o que está com os olhos vendados chega perto do escondido, nós dizemos que está ‘queimando’.

– Então... então... então... – dizia o anjinho – a trapalhada deve ser medonha...

– Eu já estive no País da Gramática, onde todos os habitantes são palavras. E um dia hei de contar por miúdo como a gramática lida com elas e consegue dar ordem ao pensamento.

– Dar ordem não é mandar uma pessoa fazer uma coisa?

– É e não é. Às vezes é, outras vezes não é. (...)

– E como a gente sabe quando é dum jeito ou de outro?

– Pelo sentido.

– E que é sentido?

– Emília desanimou. Não há nada mais difícil que ensinar anjinhos.

E por falar em Viagem ao céu (1932), é justamente nessa obra que, no meu entender, o autor é logrado pela sua própria narrativa. Se ela, ao que tudo indica, tinha o objetivo de trazer informações astronômicas para as crianças, creio que sua riqueza maior está na ludicidade com a qual a ficção surge, a partir dos próprios furos de um saber científico, e na interface dos diversos saberes. Desta forma, mais uma vez, penso que o ensinamento, ou a escrevência, é suplantada pela ficção, com traços de uma escritura. Cito um exemplo:

Vendo-se logrado, o dragão desferiu um urro medonho, ao mesmo tempo que jatos de fogo espirraram de seus olhos.

Nem de propósito. São Jorge, que estava cochilando longe dali, ouviu o estranho urro, pulou no cavalo e veio de galope.

Assim que o viu chegar, o dragão baixou a cabeça com grande humildade e foi tratando de recolher-se à sua cratera.

– Já, já para toca, seu malandro! – gritou São Jorge sacudindo no ar a lança.

Depois, vendo por ali aquela boneca, abriu a boca, espantadíssimo.

 

Uma boneca que possui um museu de coisas raras e "cata" estrelas para ampliá-lo, ou que confecciona estrelas, modificando-lhes o formato: "rosquinhas de massa cósmica" ou "estrelas emilianas"... Uma menina que pula entre corpos celestes, ou um menino que ajunta "cometas engraçadinhos"... Um anjo desmaiado que é encontrado por Emília, em plena "Via Látea"... Toda essa viagem fantástica torna-se possível quando o autor perde de vista a correspondência entre seus ideais políticos e sua escrita. Não há mais uma preocupação em incutir idéias ou veicular mensagens. O texto abre-se para a ficção, fora dos jogos do poder.

O narrador deixa, por algumas páginas, as descrições astronômicas com dados numéricos, que vinham acompanhando o texto, e se envereda mais e mais pela ficção, numa linguagem elaborada, bem humorada, distanciada do didatismo, linguagem essa que pode tocar tanto crianças como adultos. Veja-se, por exemplo, o seguinte diálogo:

– E lá nesse sítio a gente pode voar? perguntou ele [o anjo].

– Eu gosto muito de voar.

– Pode, como não? – respondeu Emília. – Os Patos de lá voam, os gaviões, os marrecos e até as galinhas d’angola. Os passarinhos todos voam. O tempo voa. As borboletas, as abelhas, as içás - tudo voa que é uma beleza!...

– São anjos também, esses patos, gaviões e galinhas d’angola? (...)

– Não são anjos, não, meu amor. Os anjos que há lá são só os de procissão, isto é, crianças com asas de pato nas costas. Fingimento. E há também os "anjinhos" defuntos. As crianças que morrem viram "anjinhos" - Mas em vez de voar, vão para os cemitérios em caixões cheios de flores. Anjo de verdade, dos "legímacos", você vai ser o primeiro.

Nos equívocos da conversa entre a boneca e o anjo, o discurso científico declina, ao se converter "toda explicação em espetáculo". Coisas fantásticas do céu são apresentadas junto a coisas simples da terra. Respostas que nada explicam, brinquedo de palavras, rotação dos sentidos... escritura.

Dom Quixote das crianças (1936) e O Pica-pau amarelo (1939), além de serem demonstrativos de trabalhos de tradução e recriação, mantêm em trânsito os processos de escritura e escrevência. Se há um predomínio da escrevência, não são raros os vislumbres da escritura.

A primeira obra, Dom Quixote, é bom exemplo de tradução intralingual e demonstra o esforço do autor de trazer ao público infantil um clássico. Mesmo se há restrições por ser destinado às crianças (explicadas de maneira metalingüística), o texto aproxima-se do original e apresenta uma espécie de diálogo entre as personagens de Cervantes e as de Lobato, diálogo em que é levado aos extremos em O Pica-pau Amarelo – o sítio de Dona Benta, um mundo de verdade e de mentira.

Paradoxalmente, a escrita de Lobato se apresenta freqüentemente bastante complexa, pois ele transpõe um clássico literário para sua obra de ficção, confundindo várias manifestações literárias: texto canônico europeu para adultos, criações da literatura infantil brasileira, relatos populares. Se, por um lado, a tradução portuguesa de Dom Quixote vai sendo selecionada, recortada, simplificada, por outro, vai sendo acrescida, reinventada na ficção lobatiana. Raramente, aparecerão aspas ou citações do texto tomado como original, embora se busque, muitas vezes, uma fidelidade a ele.

A história finaliza com o resumo da vida de Dom Quixote até seu fracasso no episódio do "Cavaleiro da Branca Lua" e sua doença e morte, no capítulo XXIX. Lobato cita a inscrição tumular:

"Aqui jaz o fidalgo raro

Que a tanto extremo chegou

De valente, que o preclaro

Seu nome eterno ficou."

Emília se retira para não ouvir sobre a morte de Dom Quixote:

Por várias vezes Narizinho tentou contar a Emília a morte do cavaleiro da Mancha. Emília tapava os ouvidos.

– Morreu, nada! – dizia ela. – Como morreu, se Dom Quixote é imortal?

Dona Benta ouvia aquilo e ficava pensativa...

A boneca "lê" Dom Quixote, que lê histórias de Cavalaria – leitores de ficção. Lobato traduz Castilho e Azevedo, que traduzem Cervantes... Lobato tradutor, imitador, professor, fingidor. Lobato escrevente e escritor.

Em O Pica-pau amarelo as personagens de tradições culturais diferentes, literaturas diversas, orientais e ocidentais, clássicas e folclóricas, são reunidas e recriadas com certa ironia. A narrativa sofre quebra em sua circularidade e surgem novos traços de escritura. Enfim, o autor, em vários momentos, enseja a escritura. Cito, pois, desse último livro, só para exemplificar essa tendência, um diálogo entre o Visconde e a Quimera:

 

Sim, ele estava diante da terrível Quimera que fora o pavor da Antigüidade – mas já inofensiva, sem dentes, sem fogo, sem pêlos – caduca. E o Visconde sentiu um grande dó daquela decadência. Coitada! Quando lhe pediu fogo, ela, com o maior esforço, só pôde dar fumacinhas...

- É curioso esse fenômeno de sair fumaça das suas entranhas – disse ele. – Parece contrário a todas as leis da fisiologia.

- Que é fisiologia? perguntou a Quimera. - A rainha deste reino?

O Visconde riu-se com superioridade de sábio.

- Fisiologia é ciência que estuda o funcionamento do corpo de animais.

- Mas eu não sou animal – disse a Quimera – , apesar da minha aparência de leão, cabra e serpente.

- Que é então?

- Sou uma fábula grega, como você me parece uma fábula moderna.

O Visconde ficou admiradíssimo da resposta. A Quimera não estava tão caduca como ele pensou. Raciocinava e muito bem...

 

Apesar de ter assinalado traços que apontam para a prática da escritura, constato que nesta obra a voz do escrevente predominantemente majoritária até, ecoe nos longos e explicativos epsisódios, bem menos "surpreendentes" (numa referência minha a Benjamim).

Espero que esta pesquisa seja uma contribuição aos estudos lobatianos e sirva, talvez, para a ampliação da crítica literária no que se refere aos textos predestinados à infância, bem como às próprias pré-concepções de criança que estão subjacentes aos mesmos. Também, nesse sentido, demarquei oscilações na escrita de Lobato. Há algum espaço para um conceito de criança que se aproxima da psicanalítica – criança perverso-polimorfa –, entretanto, predominam em suas narrativas (explicitamente ou não) concepções mais tradicionalmente aceitas, como era de se esperar.

Gostaria de ressaltar que ao focalizar a complexa questão da escritura, na acepção barthesiana do termo, não pretendi reduzi-la aos pontos destacados no meu trabalho. O que busquei enfocar foi, apenas, alguns traços que me permitiram vislumbrar essa prática, que está aberta a outros tipos de entendimento.

Ao focalizar aspectos que giram em torno de uma "revolução permanente da linguagem", compreendo que essa é tangenciada nos textos lobatianos quando ele toma distância dos jogos de poder e promove incursões pelos jogos com a língua, deslocando saberes de ordens diversas, trapaceando com o leitor, confundindo-o e transcendendo a necessidade de expressão e o uso da literatura como veículo de comunicação. Em trechos de Memórias da Emília e de Viagem ao céu, por exemplo, foram demonstradas a ultrapassagem de uma escrita como vínculo de necessidade em relação à História e a afirmação de um vínculo de liberdade com a linguagem, nos meandros do sonho, que não é, indubitavelmente, alienação, mas como nos indica Freud, a realização (disfarçada) de um desejo.

Se grande parte das obras de Monteiro Lobato – permeadas pela transitividade, impregnadas do pensamento direto do autor, de afirmações incontestáveis, tentativas de solução para a ambigüidade do mundo ou para os paradoxos da realidade – se constitui como escrevência, há que se considerar, igualmente, o aparecimento da escritura.

Ao falar do trabalho do oleiro, que, ao mesmo tempo que cria as bordas do vaso, cria o vazio central, Lacan alude ao trabalho do artista, nesse caso, do escritor, que cria a partir do vazio e o reproduz incessantemente, na impossibilidade de preenchê-lo. Lacan afirma, ainda, que a função da linguagem não é informar, mas evocar.

No meu entender, a escrita de Lobato torna-se inventiva, inovadora, justamente quando promove ambigüidades, deixa furos para a interpretação dos leitores, fracassa na pretensão de transmitir informações científicas, revolve, faz girar antigos saberes, provocando novas ordens e conferindo a algumas partes dos textos um sabor advindo dessa rotação de saberes.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Tema da pergunta

Significado e caracterizaçãODa infância – conceituação geral.

Sensações e sentimentos associados à Infância

Atividades prediletas

Atividades detestáveis

Escolha de um animal - fantasias

Relações interpessoais.

RESPOS-

TAS

 

*DEVERES X DIREITOS – 9

 

* CRIANÇA SEMELHANTE AO ADULTO - 7

 

* É QUEM ENSINA - 1

* É QUEM APRENDE - 4

* INTELIGENTE - 2

 

* CURIOSIDADE – 2

 

* EDUCADO -1

 

* BAGUNCEIRO - 1

 

* GENTE – 1

 

* OBEDIÊNCIA – 1

 

* CRIANÇA PROJETADA PARA O FUTURO – 2

 

*SENTIMEN-TOS POSITIVOS – 40

 

*LIBERDADE – 11

 

*SENTIMEN-TOS NEGATIVOS – 3

* NÃO SEI – 4.

 

*BRINCAR – 40

 

* ESTUDAR- 16

 

* CORRER /PULAR/ DESENHAR/ PASSEAR - 4

 

*DORMIR/

DIVERTIR/

MATEMÁTICA/CIÊNCIA/

LER/AMAR/

ASSISTIR TV /

ARTES – 2

 

* NADAR/

GEOGRAFIA/

HISTÓRIA/ COMER/

COMPRAS/

VIAJAR/

DANÇAR/

DEVER DE CASA/

CANTAR/

IR AO SHOPPING -1

 

* BRIGAR - 10

 

* FUTEBOL - 3

 

* PALAVRÃO/

MALDADE/

TAREFA DOMÉSTICA – 2 .

*JOGO DE MONTAR/ MATEMÁTICA/

APONTAR O DEDO NO ROSTO/

ESPIRRAR ÁGUA NO ROSTO/

APANHAR/

FICAR NA RUA

VELHO CADUCO/

IR À CIDADE

SER XINGADO

CASTIGO/

COMER MUITO

MENTIRA/

VERDURAS/

SOLIDÃO - 1

 

*AVES – 9

 

*LEÃO – 5

 

*COELHO – 3

 

* MACACO –

2

 

*TARTARU-GA – 2

 

*BORBOLE-TA – 2

 

*GOLFINHO/

COALA/

TATU

GATO/URSO

RAPOSA/

TIGRE/

COBRA – 1

 

*CRIANÇAS – IRMÃO, PRIMO, COLEGA – 27

 

*ADULTO/, PAIS – 4

 

*SOZINHO –1 .

 

 

Reflexões Sobre a Infância: Relato de um projeto de estudo acadêmico na área de Psicologia I – Infância, 1º semestre de 1998.

Neide das Graças de Souza.

 

 

...Precisava conseguir ter presente por um lado a realidade informe e demente da convivência humana, que só gera monstruosidades e desastres, e por outro lado um modelo de organismo social perfeito, desenhado com linhas nitidamente traçadas, retas e círculos e elipses, paralelogramos de forças, diagramas com abscissas e ordenadas.

Italo Calvino

 

 

Palavras-chave: Relato de atividade – Criança – Autopercepção – Entrevistas – Escuta – Educação.

 

resumo

O projeto visou elucidar a percepção que a criança tem de si mesma. Na medida em que as leituras teóricas da disciplina Psicologia I – Infância aconteciam (Ariès, Freud, Piaget, etc.), foram realizadas entrevistas no intuito de abordar o pensamento da criança sobre si mesma, considerando as evidentes marcas da nossa cultura presentes nesse discurso. O roteiro das entrevistas foi elaborado junto às alunas do curso de Pedagogia (Unicentro Newton Paiva), em sala de aula, tendo em vista a provocação teórica. Um entendimento em torno das idéias que a criança tem de si mesma promove um diálogo com as teorias e assim, possibilita novas relações entre adulto e criança. A prática educativa carece, no meu entender, de seriedade e estudo, uma vez que se subestima, por vezes, a capacidade de reflexão da criança. Tal estudo, inicial, é uma contribuição para as pesquisas que visam o enriquecimento das relações entre adulto e criança nos processos educacionais, sejam eles pais ou professores.

 

 

 

Introdução

 

No primeiro semestre de 1998, lecionando a disciplina Psicologia I – Infância, propus ao grupo de alunas do curso de pedagogia um trabalho de entrevista com crianças na tentativa de focalizar a autopercepção. Eram dois os objetivos principais: provocar interesse pela leitura teórica, cotejando-a com amostras da realidade e dar às pedagogas em formação a oportunidade de "escutarem" crianças. Elaboramos, portanto, um pequeno projeto, reproduzido logo abaixo, que foi sendo realizado na medida em que as discussões teóricas eram encaminhadas.

Diversas teorias que estudam a criança têm em seu ponto de partida nos pressupostos do adulto, ou seja, naquilo que o adulto pensa e espera dela. Por vezes, por mais que se busque observar, objetivamente, o comportamento das crianças, sabemos que existem preconceitos histórico-culturais que nos obrigam a ver a criança deste ou daquele modo. Na busca de aproximações maiores do entendimento da criança, de uma maneira diferenciada, partindo de sua autopercepção, da forma como ela pode entender a própria concepção do "infantil" e de sua inserção nos contextos sociais, foi elaborado um questionário de entrevistas.

Este trabalho apresenta, portanto, o relato da experiência, algumas implicações teóricas fomentadoras do projeto, a síntese das respostas de trinta e cinco crianças, reorganizadas, além de algumas reflexões possíveis emergentes naquele momento. As circunstâncias delimitadoras como a de uma disciplina teórica, com duração de um semestre, levaram a esta curta elaboração. Entretanto, permanece a possibilidade da reformulação do projeto para que se torne uma pesquisa, com rigor e a amplitude que a temática exige.

 

 

 

 

2. PROJETO INICIAL DE TRABALHO

 

Justificativa: Vários estudiosos investigam as atividades infantis sob as orientações variadas, de maneira que está subjacente aos diversos estudos teóricos que focalizam a psicologia infantil, algum tipo de concepção de criança. De maneira diversa e complementar, este projeto propõe um estudo inicial das possíveis percepções elaboradas pelas crianças a cerca de si mesmas, da identidade infantil e também em torno da própria concepção do que é ser "criança" na nossa cultura, evidentemente. Este entendimento pode favorecer as relações adulto-criança no que se refere às práticas educacionais mais coerentes com uma certa realidade da criança e com a capacidade de construção do saber.

 

OBJETIVOS:

 

* Conhecer algumas concepções utilizadas pela criança para caracterizar a infância.

* Estudar a idéia que a criança faz de si própria, sua autopercepção

* Relacionar as concepções surgidas das entrevistas com aquelas advindas de modelos teóricos: Freud, Piaget, mais especificamente.

 

Procedimentos: Leituras teóricas; elaboração; delimitação do grupo de entrevistandos, observação e entrevistas; solicitação de feitura de um desenho; compilação de dados da entrevista; síntese dos dados e conclusão.

 

Roteiro da entrevista: realizado pelas alunas do curso, em sala de aula, na forma em que as mesmas foram preparadas no sentido de proporcionar a fala da criança, após ter deixado claro o motivo da entrevista: um trabalho acadêmico em que é importante a participação da criança. Assim sendo, o assunto poderia se desenvolver fora da ordem do roteiro, e as perguntas deveriam ser acompanhadas de expressões que visam o seu melhor entendimento (Ex. Por quê?; Como assim? Etc.) para cada entrevistado. Eis, portanto, o roteiro desenvolvido:

 

O que é ser criança, para você?

Como você se sente sendo uma criança?

O que você mais gosta de fazer (suas atividades prediletas)? Por quê?

Do que você não gosta? Por quê?

Se você fosse um bicho, qual gostaria de ser? Por quê?

Do que mais gosta de brincar? Com quem?

 

3. Implicações Teóricas:

 

O historiador francês, Ariès, demostrou como a forma de a criança ser percebida foi sendo construída ao longo da história. Segundo ele, a particularização do sentimento da infância surge na Europa, de forma gradativa, a partir da idade Moderna. Seus estudos se baseiam em relatos, cartas, obras de arte, literatura, documentos históricos.

É difícil para nós, que hoje temos todo um universo particularizado da infância, pensar que este tratamento especial seria resultado de transformações culturais. Hoje temos uma série de serviços e produtos destinados às crianças: escolas, brinquedos, roupas, lojas, programas de TV, parques, música, literatura, etc. Também multiplicaram-se as teorias, nas mais diversas áreas da ciência, que tratam da criança e que "nas entrelinhas" trazem uma pré-concepção da criança.

Piaget estrutura sua pesquisa a partir das observações minuciosas com as crianças – seu método clínico. Assim, ele "descobre" a criança que é construtora de conhecimento, que pensa, hipotetiza, experimenta. Reelabora a questão do erro, considera-o numa perspectiva dinâmica, uma forma especial de buscar solução para os desafios cognitivos no processo de Equilibração. Ora, há muitos adultos e mesmo educadores que irão partir de uma perspectiva muito diferente: "— as crianças não sabem!" Entretanto, Piaget apresenta em seus trabalhos, no meu entender, a idéia de que a criança é dotada de um saber mutante, bem como o adulto, o pesquisador, pois seu foco era o sujeito epistêmico.

No senso comum, depara-se com a costumeira suposição de que as crianças têm respostas engraçadas, reações curiosas, são admiravelmente espertas porém incapazes porque demostram ser, para a maioria das pessoas, ignorantes ou dependentes. Com Piaget, deparamos, por um lado, com a idéia de que o pensamento infantil é diferenciado do modo de pensar do adulto (teriam Esquemas distintos), pois este vai sofrendo evoluções conforme o universo interativo. Por outro lado, ele trata do sujeito epistêmico, logo as barreiras entre crianças e adultos, nesta leitura, seriam menores.

A criança, para a Psicanálise freudiana pode ser entendida a partir da concepção "Perverso polimorfa", expressão difícil de ser aceita, uma vez que está na "contramão" do pensamento corrente. Atribuições como mentira, maldade, sexualidade, onipotência – implícita na concepção da criança "Perverso polimorfa", diferem dos atributos normalmente concebidos com relação às mesmas: ingenuidade, inocência (assexualidade), que comporiam uma imagem angelical da criança. Freud não teria tratado diretamente com crianças, suas inferências partem do trabalho com o discurso dos adultos dos quais tratava. A Psicanálise, de certa maneira, rompe com uma clássica visão de senso comum: criança pura versus adulto impuro. A concepção do ser humano sendo regido pela sexualidade, pelo inconsciente, quando levada até as últimas conseqüências, modifica determinadas concepções já enraizadas, seja da criança ou do adulto.

Interessada em desenvolver melhor essas teorias (sucintamente mencionadas neste relato), na referida disciplina, propus este estudo inicial, empreendendo um trabalho de tentativa de observação e diálogo com a criança. Tal evidência permite, então, na verdade, levantar alguns dados, como se verá a seguir, além de fazer girar as concepções correntes, provocando "novos" olhares.

 

4. Processo e resultado das entrevistas

 

Foram entrevistadas trinta e cinco crianças, de quatro a dez anos, do contexto social e econômico médio, em caráter informal, após preparação básica, das alunas de pedagogia, em sala de aula. As criança foram bastante receptivas às entrevistas bem como o convite de retratar uma "criança" em desenho, procedimento solicitado como parte da entrevista.

A organização da entrevista, bem como a compilação de dados foram realizadas, coletivamente, não sem dificuldades, pelo mesmo grupo, com minha orientação. Buscou-se uma organização sintética, em categorias redefinidas após o conhecimento do material das entrevistas. Assim foi possível uma avaliação quantitativa, a partir da qual elaborei algumas reflexões, de caráter elucidativo no que se refere às concepções infantis veiculadas. O pequeno escopo e demais circunstâncias de trabalho não permitem falar em conclusões definitivas, mas, apenas, em reflexões que podem ser úteis ao estudo e às práticas educacionais.

Seguindo a análise quantitativa no quadro de compilação das respostas (veja anexo I), o leitor poderá acompanhar a análise qualitativa que se segue.

 

Conceituação geral de criança

 

A partir do significado e caracterização de "infância", verificamos que um grupo de nove crianças diferenciou a criança do adulto usando termos que se referiam a "deveres e direitos", demostrando, talvez, o caráter político-econômico-social das instâncias adulto e criança. Elas se referiam com freqüência à obrigação do trabalho numa referência à diferenciação com o adulto. Tal visão tende a se aproximar à dos próprios adultos de classe média, pois a criança deste grupo, ao que me parece, tem o dever estudar e não o de trabalhar (tal pensamento não se estende às classes menos favorecidas, pois, comumente, o trabalho de menores das classes baixas, mesmo sendo proibido, não causa tanto impacto social, sendo, até mesmo, apreciado).

Surgiram, curiosamente, em segundo lugar, 7 respostas que indicam a semelhança da criança com o adulto e apenas uma resposta no que se refere a nenhuma diferença entre ambos.

Foram dadas 4 respostas indicando a criança como "quem aprende" contra apenas uma resposta lembrando a criança como sendo "quem ensina." Tais termos apareceram em entrevistas distintas sem intervenção das entrevistadoras. "Inteligência", "Curiosidade" foram características apontadas, cada uma delas 2 vezes. "Criança também é gente", foi a fala bastante significativa de uma criança. É de se notar que, por vezes a criança é tratada como objeto ou animal. Os outros significantes também são relevantes, ainda que paradoxais: "educado, obediente" versus "bagunceiro".

A idéia de a criança não como ser que é, e sim como ser de devir, apareceu 2 vezes. Quase todas as atividades educativas levam em conta a pessoa futura e não o ser presente. Logo, as próprias crianças lembram esse aspecto.

 

sensações/sentimentos relacionados ao ser criança.

 

A infância foi associada a sentimentos positivos, 40 vezes, como por exemplo "alegria, bondade, felicidade."(fig. 1) Também foram lembrados 3 aspectos associados ao sofrimento: morte (perda de pessoas queridas); dependência; maus tratos (apanhar do adulto). Imediatamente, discrepância entre estes números (40X3) aponta para um certo mito da "infância feliz" que parece acompanhar a sociedade. Há uma negação dos problemas vividos na infância, embora eles apareçam na deflagração de crises familiares, escolares e, até mesmo, sociais.

Se se observam os programas de TV "infantis", por exemplo, notar-se-á a presença de crianças sempre sorridentes, em auditórios com atividades, quase sempre, alienantes. Alienadas de fatos sociais, algumas crianças (e também adultos) alienam-se de si mesmos e, por vezes, têm dificuldades para expressar sentimentos, de maneira mais elaborada. Não se pode, contudo, afirmar com segurança qual a origem de tantos sentimentos positivos associados à infância. As idéias contrárias a uma "infância feliz", mesmo em menor número, são extremamente significativas, até mesmo pela clareza da argumentação proferida por aqueles entrevistados.

Apareceram, ainda nessa questão 4 indicações: "não sei", exclusivamente neste item. Os entrevistados podem não ter compreendido bem a questão ou, ainda, expressar-se no que diz respeito aos sentimentos pode não ser tão fácil assim. Aliás, perceber um "não saber-se" pode ser um passo no caminho de saber algo sobre si, uma saber sempre incompleto.

 

 

 

atividades

 

O "brincar" apareceu 40 vezes como atividade predileta, seguido por numerosos verbos: "estudar" (6); "desenhar (4); "amar" (2); além de muitos outros. Ver TV apareceu 2 vezes, apenas. É claro que brincar é algo também socialmente determinado, mas há algo genuíno nestas respostas confirmadas por tantos estudiosos. Há que se considerar as outras atividades similares que confirmam esta preferência: "divertir", "passear", "nadar", "viajar", "cantar", etc. Estas atividades seriam confirmações da teoria piagetiana no que se refere à importância da ação, como a base da produção do saber, sobre si mesmo e sobre o mundo?

Qual é o espaço concedido por educadores e escolas para o brincar e as atividades anteriormente mencionadas? Parece que muito ainda precisa ser feito para se perceber a dimensão da ação na vida da criança e, por que não dizer, na do adulto.

Não muito diferentemente do adulto as crianças elegem com 10 respostas o "brigar" como sendo atividade mais detestável, seguido de "palavrão", "maldade", "tarefa doméstica" e "jogo de montar". Essas respostas, mesmo aparecendo uma vez, cada uma, são significativas por se referirem a situações particulares, reveladoras de reflexão; outras referem-se aparentemente a reproduções aprendidas. A solidão (pavor da humanidade?!) foi lembrada por uma criança como aquilo de que ela menos gostava.

 

escolha de um animal

 

Tal item surgiu como sugestão de uma das alunas de Pedagogia e foi aceito pelas demais. O animal pode se constituir em uma modalidade de representação do desejo e, portanto, fez parte da entrevista. Aves, golfinho, macaco parecem ser associados à idéia geral de liberdade, conforme comentários das próprias crianças; leão estaria associado ao desejo de poder, além de vários outros que não foram comentados por elas, constituindo-se em lacunas nos processos de entrevistas.

A liberdade é mencionada diversas vezes, na caracterização geral de infância, na fantasia associada à imagem de um animal. Contudo, a idéia de liberdade aparece de maneira contraditória, no decorrer das entrevistas: por um lado, a criança teria menos responsabilidades e ficaria livre para brincar, por exemplo; por outro, surge o incômodo de estar sempre cerceada pelo adulto. As possíveis indicações referentes ao desejo de liberdade seriam pistas para pais e educadores?

 

relaçoes interpessoais

 

As crianças apontaram, como preferência, a companhia de semelhantes: 27 preferem brincar com outras crianças; 4 lembram os pais; apenas uma prefere brincar sozinha. Os teóricos interacionistas, como sabemos, lembram a importância da interação com o grupo de iguais nos processos de desenvolvimento e aprendizagem. Também os processos sócio-afetivos são estudados a partir dos inter-relacionamentos.

 

desenho

 

Mediante solicitação, as crianças desenharam com prazer e dedicação. Longe de um pretensão de se fazer diagnóstico, o desenho seria, neste caso, uma forma de apreciação da representação icônica, da criança, por ela mesma. Infelizmente não foi possível, junto das alunas de Pedagogia, uma análise das propriedades dos desenhos. Realço que as cenas apresentam a idéia do movimento, uma vez que aparecem muitas crianças brincando, cenas de ação (fig. 2,3,4). Foi percebida a evolução do grafismo (desenhos de crianças menores, mais simplificados, das maiores, mais complexos). As crianças tendem a desenhar figuras do próprio sexo, embora haja alguns casos em que aparecem um menino e uma menina (fig. 5), no mesmo desenho. É curiosos observar, ainda em caráter geral, a presença de brinquedos e animais de estimação. Há algumas crianças que parecem ter desenhado figuras de outras idades (bebê, jovem, e até idosos – fig. 6,7,8, respectivamente)... Como as entrevistadoras não exploraram o desenho junto com os seus autores, uma vez que teriam de ter outro tipo de instrumental teórico, não se pode fazer muitas inferências a este respeito.

 

 

 

considerações finais

 

O conjunto de informações obtidas nas entrevistas se presta à verificação de que a autopercepção da criança serve à visualização de vários aspectos das teorias estudadas bem como para a reflexão em torno das práticas educacionais e que não se deve, portanto, subestimar sua participação efetiva nos processos de decisão.

Se se considera o sujeito epistêmico, em Piaget, no que diz respeito aos processos de Adaptação, veremos que há semelhanças entre o modo de construir saber no adulto e na criança. As diferenças estariam na diversidade de Esquemas de pensamento e ação. Daí haveria uma aproximação entre educador e criança mediante os desafios nos processos de investigação, de pesquisa.

A Psicanálise, partindo do paradigma do inconsciente (ou seja, de argumentação completamente distinta da anterior) propicia a reinvenção das concepções de criança e de infância. A criança associada à perversão, no sentido freudiano (perverso-polimorfa), bem como a infância como passado pré-histórico de cada um propiciam, no meu entender, queda nas barreiras tão costumeiramente levantadas entre adultos e crianças, sobretudo se levarmos em consideração o campo do desejo.

O assunto aqui abordado apresenta-se, pois, como um provocador de questões em torno da infância, de como ela pode ser entre-vista. O estudo revelou-se bastante rico se considerarmos sua temática, a qualidade do diálogo que se estabeleceu entre educadoras-crianças-teorias. Há quer e considerar entretanto, como um trabalho que requer novas investigações, mais cuidadosas, bem como novas leituras, pois tal material aponta, ao meu ver, para a possibilidade de uma pesquisa fecunda em nova oportunidade.

 

5. agradecimentos

 

Às alunas do curso de Pedagogia que participaram do projeto, ao departamento de Educação (FAHL – Prado) do Unicentro Newton Paiva, às crianças que se colocaram disponíveis nas entrevistas, e à Rafael Romano, pelo trabalho com as imagens.

 

6. bibliografia consultada

 

ARIÈS, Philippe. História social da família e da criança. Trad. Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

FREUD, Sigmund. Trois esssais sur la théorie sexuelle. Trad. Philippe koeppel. 6a ed. Paris: Gallimard, 1987.

LERNER, Léa. Criança também é gente. Rio de Janeiro: Bloch, 1980.

PERES, Ana Maria Clark. O infantil na literatura: uma questão de estilo. Belo Horizonte: Miguilim, 1999.

PIAGET, Jean. Psicologia da inteligência. Trad. Egléa de Alencar. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura S.A., 1961.

_______ Epistemologia genética. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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