São Paulo, segunda-feira, 22 de junho de 2009
Salvador
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Ivo viu a arma
Por mais que a
população brasileira, de tanto conviver com a violência, direta e indiretamente,
ache que já viu de tudo e considere-se incapaz de se surpreender com o que quer
que seja, basta um vídeo caseiro de um ladrão-sequestrador brincando com filho e
sobrinha, de 4 e 3 anos, para escancarar que este é um país de telespectadores
inocentes que só sabem dizer ‘que horror!’ e ‘ohs!’ diante de cenas prováveis.
Há mais de uma semana, todas as emissoras de televisão repetem imagens caseiras
filmadas pela mulher do seqüestrador catarinense Rafael de Borba, 28 anos (preso
na última terça-feira), brincando de ensinar as crianças da casa a assaltar uma
boneca com coronhadas e ameaças de morte. Ora, qual a razão do espanto?
Não é norma pedagógica que a alfabetização e os processos educativos, sejam de
crianças ou adultos, serão tão mais bem sucedidos quanto mais se aproximarem da
realidade em que estes vivem? Só mesmo a classe média brasileira e a turma que
se recusa a crer na hostilidade do mundo para achar que crianças no ambiente
doméstico de assaltantes, assassinos, seqüestradores, traficantes e que tais
costumam brincar com papai de encenar o Castelo Ratimbum, os
Teletubbies ou assistir um daqueles incontáveis volumes da série Xuxa
para Baixinhos. E não venham desejar que o conceito de educação seja
compartilhado com a mesma acepção entre os pais de classe média, os pais
trabalhadores honestos e os pais que vivem da marginalidade.
CAMAREIRA
INSUSPEITA -
Ironias e realismos à parte, é fato que criança adora brincar da profissão do
pai e da mãe. Se filho de médico brinca de hospital, por que raios alguém há de
imaginar que um seqüestrador que vive de achacar pessoas apontando-lhes uma arma
e submetendo-as a atos cruéis, vez ou outra não trará para seu repertório
familiar, sob a versão ‘brincadeirinha’, um revólver aqui e uma coronhada acolá
contra a bonequinha da filha comprada com o dinheiro arrecadado com seu
‘trabalho’? Diante dos ohs! emitidos do Oiapoque ao Chuí perante as cenas de
Borba, uma das informações mais relevantes do episódio sequer foi registrada
pela maioria dos telespectadores. O que levou à aparição da fita, a chegada das
imagens à Polícia, foi o fato do protagonista delas e seu bando terem
seqüestrado uma mãe e uma criança de três anos, em um quarto de hotel no litoral
catarinense, mantidas sob violência até o pagamento do resgate.
Os detalhes do seqüestro comprovam que ‘tá tudo dominado’ e qualquer
comportamento comum pode decretar nossa condição de vítima da violência. Um
funcionário de um grande estaleiro, com a mulher e o filho, hospedou-se em um
hotel onde a mulher de Borba era camareira. Arrumando o quarto, viu o cartão de
visitas do hóspede e deduziu tratava-se de empresário rico, um seqüestrável em
potencial. Daí para o marido partir para o ato, foi questão de horas. Portanto,
será que tão chocante quanto a cena de um indivíduo que vive do crime brincando
de ladrão e vítima com suas crianças, não é a certeza de saber que cada um de
nós é uma vítima em potencial de um eventual seqüestro, até em um quarto de
hotel de uma cidadezinha do interior do país? Que sob qualquer camareira
loiríssima com cara de Scartlet Johanson mal diagramada e tida como insuspeita
de trabalhadora prestativa pode estar escondido um plano de violência que nunca
se sabe como vai acabar? Ah, e se essa camareira não encarnasse o protótipo da
loura nórdica catarinense e fosse uma negra, seu protagonismo no episódio
certamente teria rendido muito mais deduções nas mesas de jantar das boas
famílias.
PAULO FREIRE
- Se Rafael fosse esperto e letrado, talvezz não fosse seqüestrador nem brincasse
de ensinar crianças a arrancar dinheiro de bonecas mediante coronhadas de
revólver de brinquedo e onomatopéicas expressões do tipo ‘bum, bum, bum’. Mas
poderia argumentar que nada mais está fazendo senão seguir o método Paulo
Freire, ou seja, usando a própria realidade dele e dos pimpolhos para ‘educá-los
para a vida’. Sim, a vida de quem, seja por que razão for, ingressa na
marginalidade, é o exercício cotidiano e real daquele comportamento ensinado às
crianças no vídeo sob a forma de brincadeira (de muito mau gosto para quem vive
do lado de cá do mundo).
Se o método Paulo Freire derrubou por terra a lengalenga de que criança ou
adulto aprende alguma coisa com frases inócuas de cartilha como ‘Ivo viu a uva’,
repetidas por gente que nunca conheceu um Ivo e muito menos viu uma uva, Borba
escancarou para um Brasil que, ao invés de se crer em duendes improváveis, é
melhor reforçar a crença nos jegues reais. Cada um adapta à vida os métodos
pedagógicos que pode. É bom registrar na cartilha pedagógica nacional que,
enquanto uma série de outras circunstâncias estruturais não mudam, cada vez
menos se verá na TV ivos vendo uvas inexistentes. O método Paulo Freire, que
prega a incorporação do universo vocabular dos alunos às práticas didáticas,
quando, e se, aplicado à violência brasileira, torna ordenatória uma assertiva
inquestionável: Ivo viu a arma.
[email protected]
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Malu Fontes
é
jornalista, doutora em Comunicação e Cultura, professora da
Facom-UFBA
e colunista do Jornal A Tarde, de Salvador, na Bahia.
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