Capítulo 1 - A Noite Eterna
...Coisa estranha, louca e estranha. Você é a rosa
mais bonita com que nunca sonhei. Meu nome é Shiori Minamino, eu...
estudava flores, como você, mas nunca achei nada parecido. Nem sei
por que tenho tanta vontade de sorrir quando olho para você... Eu
não pertenço a este mundo, eu sei que já notou. Está
me olhando como se soubesse a diferença entre nós melhor
do que eu...Eu não sei como cheguei aqui, e nem o caminho de volta,
se quisesse voltar.
Eu sempre sonhei em conseguir fazer você. Não você, exatamente, mas alguém como você. (Vocês são um pouco parecidos, no final das contas, já que as flores que os originaram eram parecidas também...)
Eu tinha um marido, nós trabalhávamos numa estufa parecida com esta, não tivemos filhos (Eu não pude, a natureza não quis). Sim, claro que eu os queria, e ele também, mas ele morreu... Eu não queria que os seus sonhos morressem com ele, eu me senti muito só e ao mesmo tempo cheia de coragem de tentar aquilo que só funcionaria na teoria. Eu testei com ratos, mas eles eram fracos, eu quase desisti quando tive de incinerar as aberrações que criei. Um dia, eu cheguei a usar meu próprio sangue para fechar a cadeia de DNA dele. É daquele que veio antes de você que estou falando. Ele nasceu de um bulbo parecido com o seu (Ele era estranho, apesar de Ter sangue humano, eu não o sentia, ao contrário de você com o seu sangue de demônio...) e, por Inari, quando ele desabrochou, o perfume era tão forte e penetrante que impregnou tudo ao redor e podia ser sentido por quase toda a cidade (Ela era muito grande, quase maior que esta floresta ao redor da estufa). Ele não viveu mais do que uma noite. Ele nasceu para desabrochar em seguida. Não, você ainda não desabrochou. Você é um botão ainda. Não sei quando vai ser, é impossível dizer. Ele e você são plantas, cada um tem seu ciclo e não se pode prever nada quanto aos híbridos, se vão viver uma noite ou mil anos, se vão ser monstros ou... apenas flores... É difícil você entender, a sua memória não voltou ainda, não sei quem você era antes de ser esta rosa...
Do que eu estava falando mesmo? Ah, sim... Na madrugada em que o híbrido morreu, eu estava na estufa, chorando meu fracasso e me sentindo muito idiota, querendo brincar... Querendo brincar de Deus... Não há outra forma de explicar o que eu e meu marido sonhamos por tanto tempo. Nesse momento, eu escutei que alguma coisa se aproximava de mim e eu vi um homem bastante alto, com uma capa preta sobre a cabeça, assim, e sobre o resto do corpo, um tanto estranho, eu achei que fosse alguma espécie de pervertido (Isso era muito comum em cidades grandes como aquela...). Ele estava sempre com os olhos fechados e foi muito educado. O corpo do meu primeiro híbrido se transformou em um amontoado de raízes negras no chão da estufa. Eu havia visto cada momento da agonia dele, sufocado, trêmulo, aquilo me deixo quase louca, sentindo o vazio ao redor, o peso de Ter uma morte manchando as minhas mãos.
Ele me disse que o perfume da minha rosa foi sentido a um mundo de distância, e o havia despertado, encantado, não sei as palavras que usou ao certo, isso foi há quase dois anos atrás. Ah, desculpe... Hã, dois invernos, entende?... Ele me perguntou se eu era capaz de fazer aquilo de novo. Eu estava em desespero, eu queria trazê-lo de volta, eu disse que sim e ele me disse que me daria tudo que eu precisasse para fazer isso. Mas que eu deveria ir com ele, para um lugar muito distante, que não poderia querer voltar para o Nigenkai (É assim que ele fala de meu mundo...), pois não havia caminho de volta. Eu não tinha nada a perder, não tive mais ninguém no mundo além de meu marido e do sonho de Ter conseguido levar adiante minha experiência. Eu aceitei e em um instante eu me vi já aqui, nesta estufa, ele dizendo que não viria sempre saber de meu trabalho, pedindo que eu sempre fizesse o melhor e evitasse sair para a floresta ao redor (Realmente muito perigosa...). Minha única pergunta foi o que eu iria usar, se não conhecia nenhuma das plantas do Makai (Ele disse que este mundo se chama assim...) . Ele simplesmente me deu uma rosa. Foi um bom começo. Ela era muito diferente das rosas do meu mundo, era demoníaca, vermelho rubi, feito o seu cabelo é agora. Rosa selvagem, ele disse. Mas não era tudo, mas eu nem precisei pedir, no outro dia, ele voltou com o principal, o que fêz você ser assim, Ter esta forma, você e os seus irmãos, nos outros bulbos. Ele veio com uma coisa na mão, parecia uma mecha de cabelo, mas eu não tenho certeza, era sedoso demais para ser humano, por exemplo, e a cor... não havia visto nada deste jeito, liso, um pouco cinza, um pouco lilás, prateado, cintilante. Perguntou se eu poderia fazer dalí uma rosa mais bela ainda que a primeira. Eu disse que talvez, mas eu ainda acredito que d
Do tal cabelo, eu tirei o que precisava, DNA, RNA, tudo para fazer, tentar de novo, vocês, as rosas e ...
...Eu acho que deu certo, não é?
A rosa ficou olhando para a mulher que agora tinha nome. Shiori endireitou o corpo na cadeira ao lado da banheira onde a rosa estava, sua pele novamente viçosa após absorver muita água. Metade da fome que sentia e da extrema sensibilidade haviam ido embora. Aquela sensação era boa. Sua mente já se preenchia com tudo o que Shiori contara, depois de vê-lo abrir os olhos de seu desmaio, mas, como ela disse, ele não entendia muitas coisas...
"Você é minha mãe, então...!"
"Por que?!!" - Ela ficou surpresa e a rosa pela primeira vez teve vontade de sorrir vendo os olhos arregalados dela.
"Você me criou. Acabou de dizer..."
"Ah, é verdade. Acho que sou, de alguma forma."
"E eu sou uma rosa?..."
"Sim e não. É pelo fato de ter nascido de uma, mas tem sangue de demônio, suas células principais vêm daquela mecha de cabelo de Youkai, pode-se tirar DNA de um fio somente, até!"
"Eu sou o demônio dono do cabelo? Eu sou ele? Você o conheceu?"
"Eu conheci muita gente desde que cheguei aqui, cientistas como eu, curiosos para me ver, a ningen que trabalha para o Rei, mas só vi uma vez o youkai que era o dono daquela mecha. Mas você não é ele, a princípio. Talvez tenha as lembranças da vida dele, ou parte delas, quando sua memória voltar, porém, não é ele. Você é uma encomenda, como os outros, de Yomi. Eu acho, nem deveria falar isso agora, eu... "
Shiori sentiu o rosto corar e o desviou do olhar verde e curioso da rosa. Lembrou-se de que não poderia chamá-lo assim para sempre, que ele precisava de um nome, mas... queria creditar que ainda fosse cedo para ocupar sua mente recém desperta com tantas coisas, e elas eram muitas, várias. Queria dizer tantas coisas para a criança em um corpo esguio de adolescente, que devagar se levantou da banheira e se envolvendo na túnica , como Shiori havia feito, antes, sabendo que aquela era a forma correta, embora nunca se lembrasse quando fizera isso a última vez. O tecido era macio, dava uma sensação de conforto... Ele também queria falar muitas coisas, sabia que palavras usar, saber do que Shiori disse que não podia falar.
"Eu estou com sono. Queria dormir, lá fora..."
"Claro. Vai ser melhor para você, quando o Sol nascer. O ar aqui dentro não circula muito bem, vê?" - Fêz um gesto amplo, andando a seu lado, mostrando a casa simples em que morava. - "Se quiser entrar, eu vou deixar a porta somente encostada, está bem?"
"Hmmm... Obrigado."- Shiori estremeceu de novo ouvindo aquilo. Talvez suas lembranças voltassem antes do que pensava, ele já demonstrava ter lembranças de como ser educado...! - "Eu... será que eu poderia... Você permite?"
"O que?"
"Que eu a chame de mãe?"
Shiori tremeu, da cabeça aos pés, sabendo que cometeria o pior erro de toda sua vida, algo que na sua condição, trabalhando naquele projeto, só tornaria as coisas piores do que realmente seriam, em breve. Mas, antes de aquela rosa ter nascido em seu jardim, ela florescia dentro dos seus sonhos. Para o inferno, pensou, pois de alguma forma, estou nele...
"Eu vou adorar que me chame assim. Por favor, faça-o ..."
A rosa sorriu pela primeira vez, e Shiori viu como ele saltava pela janela, como se fosse a coisa mais fácil do mundo, simples e cotidiana, indo parar num dos galhos mais altos, na divisão do tronco principal em três, da árvore de perto da casa, aninhando-se alí, no meio, abraçando as pernas e adormecendo lentamente, quase todo escondido pela confusão de folhas ao seu redor, nos galhos em torno. Ela respirou fundo e foi comemorar uma satisfação que esperara boa parte de sua vida: ser chamada daquele jeito... Comemorou só em sua mente, parada debaixo do umbral da janela, olhando com um feliz sorriso para a cabeleira longa e vermelha do híbrido, derramada pelo lado do tronco, balançada de leve por um vento que vinha não pelas clarabóias abertas do teto, mas dos portões abertos da estufa, certamente, a julgar pela direção.
Seu coração pareceu parar de bater.
Não, sua mente gritava, AINDA NÃO !!!
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Era um pesadelo, devia ser, o que mais seria tão terrível?
Sentia o mesmo engasgo de fracasso do que se seu híbrido houvesse morrido novamente, mas não era isso, ele estava bem, seu sangue de demônio era bem mais forte que qualquer sangue ningen. Ele iria viver mais, disso tinha certeza, embora não tivesse certeza do quanto, mas cada dia em que ele ainda respirasse seria uma vitória, enfim.
Mas nem o maior dos otimismos a tirou do seu medo e apreensão. Sabia o que viria a seguir, e aquilo nunca lhe dera nenhum receio. Eram os soldados de Yomi, como sempre apareciam, a noite, para ver como as coisas estava e se faltava algo para seu conforto. Reconhecia seus passos duros pelas pedras do chão.
"Hmmm, que cheiro." - Ela escutou, tensa, suas costas se arqueando de repente. A voz se aproximava pelo caminho no meio das árvores e moitas e flores
Soldados, não se enganara. Mas não deveriam estar aqui agora, pensou, ontem mesmo passaram em patrulha...!
Sentiu as vozes chegando, ouviu os pequenos animais se mexendo nas árvores, na penumbra daquela noite que quase foi eterna. Correu para fora da casa, para desviar a atenção deles, que já paravam, desconfiados, perto e apontando para o bulbo já negro de onde sua querida rosa havia nascido.
"Boa noite, Doutora Shiori! Já nasceu?" - Um deles perguntou, sinceramente por acaso, fazendo um gesto que intencionava tocar o outro bulbo, ao lado, com as mesmas mãos longas e vermelhas projetadas para fora.
"Não toque nisto." - Sua voz foi tão rascante que o youkai estancou na mesma hora, foi uma ordem dita com ódio.
"Já nasceu?..." - o outro insistiu. Estavam em patrulha, como na noite anterior, mas também e como sempre, prontos a passar notícias daquela estufa para o cego Rei Yomi.
"Deveriam saber que não."
"E este cheiro? Nós o sentimos desde a estrada, nos disse que era assim que saberíamos quando..."
"Eu estava enganada." - Cortou, indo no rumo do portão, dando claramente a entender de que os queria fora dalí.
"Estava mesmo? Bom, não é o que está parecendo aqui! Soldados, vasculhe tudo!"
"NÃO!!"
Seu grito veio tarde demais. Aquilo não eram soldados comuns de patrulha, eram soldados enviados para revistarem toda a estufa. Sim aquele cheiro deveria ter se espalhado longe, e da estrada, o que o impediria de chegar até os pátios do palácio de Yomi? E o que o impediria de enviar seus youkais prontos para levar aquilo que lhe pertencia? Era seu direito... não era?
Dois youkais a seguraram pelos braços e a arrastaram para fora,
para o lado de fora da estufa. Não fizeram mais nenhuma pergunta,
nem tampouco davam a entender ter ordens de arrancar a força as
informações dela. Não por enquanto. Esperneou o que
pôde e teria gritado o nome de sua rosa, mas novamente o destino
não havia dado-lhe tempo para isso, e um antigo desespero tomou
corpo dentro de sua mente, ao sentir o metálico cheiro de seiva
e de sangue cortar o ar, e logo em seguida e mais profunda e fortemente,
o cheiro ácido do herbicida e das plantas que se queimavam com ele,
enquanto era impiedosamente derramado por toda parte dentro da estufa,
e Shiori escutava com pavor indizível o som dos latões derrubados
aos chutes no meio do jardim. Não, de novo não!... Sem saber
mais o que fazer, Shiori gritou o mais que pôde, tentando de alguma
forma, acordar a rosa adormecida, escondida nos galhos, mas aquela flor
carmesim sonhava...
Não era um sonho verde como era antes de nascer, eram recordações vistas pelos olhos dourados que não eram seus. Os chifres brancos reluzindo como marfim polido debaixo da luz do candeeiro, e os olhos daquele youkai, dono dos chifres que achou tão bonitos e pálidos, eram estranhos e o olhavam com tanto ódio... Arrepios de prazer. De onde vinha aquela sensação de ser rasgado por dentro e por fora, a vontade de gritar?... Tanto prazer... E quanto mais prazer sentia, com aquelas peles macias e quentes esfregadas contras a sua, suspiros ao seu redor, também, o youkai de olhos cor de carne o olhava com mais raiva e rancor, e mais intenso se tornava o turbilhão de prazer que se fazia dentro dele, mas não podia abandonar aqueles olhos, e se sentia gritar, olhando-o fundo, em desafio, nos olhos, intenso, tanto prazer que achava que ia morrer. O que estava acontecendo? Os lábios daquele youkai se moviam, e de repente a rosa podia entender o que diziam, e era seu nome, ou pelo menos, o nome de quem lhe emprestava aquelas lembranças. Sentia-se agora arfar, com um estranho sentimento de triunfo, cheio de um prazer que agora se desvanecia, e se tornava uma sufocante sensação sobre a pele, um estrangular terrível, e que se tornou ainda pior quando disse em sua mente o nome que aquele youkai cuspia como a pior das ofensas:
"Kurama."
Quando abriu os olhos, sabia que aquele era o nome de quem havia lhe
dado uma parte do que era agora, mas não respondia nada sobre quem
era; sabia que o youkai de chifres brancos era uma pessoa que lhe despertava
algo entre desprezo e indiferença, e também algo que não
sabia qual nome dar. Assim como não sabia como nomear o que aqueles
corpos de machos e fêmeas, belíssimos, contra o seu, vários,
em movimentos cardíacos e urgentes, estavam fazendo que quase o
enlouqueciam. Sabia que depois de todo o alívio do prazer que recebera,
uma dor mosntruosa se apoderava de seus sentidos, e sabia que queria ficar
longe da quentura que ardia em suas pétalas. E foi o que fêz...
Ao mesmo tempo, do lado de fora, tomada de uma apatia de choque, Shiori ficou imóvel, após subir num dos galhos de um bordo, meio que distante, da clareira da estufa, olhando sem reação alguma além de desespero para o fogo que se erguia da sua antiga casa. Por não reponder às perguntas dos soldados que revistaram tudo, sua casa foi queimada, e todos os outros híbridos em seus botões foram mortos e destruídos, senão pelo herbicida, então pelo fogo que se projetava para tão longe, para cima, no céu negro; sobravam esqueletos queimados das árvores. Desolada, escondeu o rosto nas mãos, encolhendo-se entre os galhos grossos. Estava sozinha, os soldados não lhe fizeram mal algum, mas a deixaram só numa floresta mortal para qualquer youkai, quanto mais para uma ningen. Sua crianças estavam todas mortas, disse o soldado. Sim, ela teimara em desafiar o Rei. Devia ter imaginado, pensou, que as coisas terminariam assim, desde que permitiu-se o luxo, o privilégio que a natureza sábia não lhe dera, de ser chamada de...
"Mamãe!!"
Aquela voz aveludada e carente, o tom suplicante...
Por todos os deuses, se houverem, Shiori pensou, e rezou para que não estivesse só na sua imaginação o som daquele chamado. Em um segundo, ela teria trocado sua alma para que aquilo não fosse um sonho...E não era.
No meio da noite sem luar, tornado mais pálido pelas difusas luzes causadas pelas chamas que ardiam, como um reflexo do que ardeu na torre do palácio de Gandara, a forma esguia e nua, meio que feita de bruma e pérola, nas cores que a formavam, da rosa carmesim, meio enroscada na sua túnica verde esmeralda, seus olhos faiscando sob a mesma cor, e seu cabelo, flutuando mais intensamente do que Shiori poderia descrever. Parecia que um fantasma de um daqueles velhos deuses das histórias que ouviu quando criança tomava forma, no ar a sua frente e esticava os braços para abraçá-la, confortá-la no negrume da noite mais longa de toda a existência do Makai.
Shiori não teve medo de aceitar o primeiro abraço de sua amada rosa, fazendo com que ele se aconchegasse a ela, de maneira protetora e calorosa, abraçando-a, mas corrigiu mais um dos erros que cometera com ele, pensando sem poder resistir, naquele que foi o dono da mecha prateada que fêz com que aquela flor fosse mais do que sempre imaginou que pudesse ser...
"Seja benvindo, meu filho... Kurama."