A Rosa Escarlate

Astásia
 

Prólogo - Flor em Chamas
...In the locust wind comes a rattle and hum
Jacob wrestled the angel
And the angel was overcome
You plant a demon seed
You raise a flower of fire
See them burning crosses
See the flames higher and higher...
 

Na nuvem de gafanhotos,vem um ruído e um zumbido
Jacó lutou com o anjo
E o anjo venceu
Você planta a semente de um demônio
Você colhe uma flor de fogo
Veja então as cruzes queimando
Veja as chamas subindo e subindo
(Bullet The Blue Sky, U2 - Álbum The Joshua Tree)

 

Gandara.

Uhn... reclamou só consigo, vendo um silencioso Yomi andar pela sala, com tanta desenvoltura quanto não fosse cego. Estivesse, correção. Se o novo rei de Gandara estava cego, a culpa era sua. Só sua.

Era opressor ficar esperando que ele falasse, debaixo do olhar ansioso daqueles bajuladores que o seguiam agora que tinha um reino todo debaixo de seus pés. Queria estar longe de qualquer coisa erguida por mão youkais. Queria estar na floresta, à toa que fosse, mas em um lugar em que tudo que pudesse fazer de mais extravagante fosse sentir o perfume de suas rosas!... Mas agora...

"Kurama Youko..." - Lenta e pausadamente, Yomi, de costas, falou. Sim, era seu nome. O nome que o fizera famoso em todo o Makai. Ergueu o rosto sem descruzar os braços de junto do corpo, ainda sentado à mesa, ignorando de vez os pratos sobre ela.

"..."

"... Você sabe que eu sou um rei justo, não sabe?" - Sim, como poderia negar? Yomi era agora um melhor rei do que nunca sonhou em ser ladrão. E, pelos deuses, somente se não fosse tão dono de si que Kurama arregalaria os olhos ao ver como Yomi trazia uma aura de poder e força ao seu redor, como se... houvesse nascido para o poder. - "Assim como eu fui um companheiro e sub-chefe justo, apesar ou por tudo."

"Sim, apesar...ou por tudo." - Kurama não evitou lembrar que era verdade e que por puro capricho, por uma loucura impensada ele...

"Você sabe que eu sei perdoar..."

Ele se virou e com uma dolorosa vergonha, Kurama encarou os olhos do rei de Gandara, fechados para sempre, privados de sua cor que era tão exótica, tudo isso por... sua culpa. O cabelo perfeitamente negro de Yomi caiu dos lados de seu rosto longo e sempre muito calmo. Ele havia mudado muito, desde que o Youko o vira uma (Ele rezou para que houvesse sido de fato) última vez, e em sua mente, enquanto caminhava rumo a Raposa, era essa a imagem que passava por ela, a de um dos mais belos demônios que já caminharam sob o céu do Makai.

E em sua mão, entre seus longos dedos, a mais delicada flor que já perfumou o ar denso e carregado daquele mundo, uma rosa... de Kurama. Encarnada, e sua cor era tão vibrante quanto a paixão de quem a gerara, e Yomi sabia, ele havia provado, anos atrás, antes de ser rei, antes de ser traído por seus próprios sentimentos, que o amor de Kurama era como ela, perfumado e vibrante, mas seu sabor...

" ...Mas não sei esquecer."

...Era amargo como o mais puro fel.

Os olhos dourados de Kurama ficaram subitamente mais claros, quando ele os esbugalhou, vendo que era amarrado a cadeira em que estava e vendo, o que o assustou mais que isso, a forma como seu ex-companheiro esmagava a rosa em suas mãos a despeito dos espinhos, do sangue que pingou de sua palma, e seus passos duros, que percebeu por debaixo da beirada da túnica, esmigalhando as pétalas que se espalharam pelo piso liso daquela torre do palácio. Yomi se aproximou e o Youko soube que foi pelo som de seu arfar que ele se guiou para que ficasem frente a frente.

"Eu ainda amo você, e ainda tenho a sua recusa atravessada aqui!" - Ele se inclinou para a frente e depositou a rosa esmigalhada em seu colo, e num estalo compreendeu que o silêncio sobre o assunto que ainda os unia havia sido o frio planejamento de sua vingança. Por anos, Yomi planejou, até supor que Kurama se esquecera dele, de Ter pago ao mercenário que o cegasse e matasse. Mas Yomi era tudo, menos fácil de matar...

"Meu amor, você tirou a luz de mim..." - Sua voz soava tão doce quanto o toque no queixo do Youko que se debatia na pesada cadeira descobrindo, com a dor do esforço nos pulsos esfolados, que seu you-ki não funcionava naquela torre. Que era inútil tentar fazer as sementes em seus cabelos longos e prateados obedecerem. Cerrando os dentes de raiva e nojo do monstro de rancor que ele criara, vendo o reflexo de si próprio nos atos de Yomi, ainda assim, não pôde evitar o beijo que invadiu seus lábios. Nunca permitira a Yomi tocá-lo, e recusara somente a ele a honra de dividir sua esteira, até mesmo deixando-se levar, ante os olhos cor-de-rosa de seu sub-chefe, sérios e odiosos, em orgias intermináveis, apenas para que ele se lembrasse de que era o Youko que escolhia suas companhias...Queria tanto que aqueles olhos se abrissem novamente, mas eles não se abriram. Mas os lábios que o beijavam disseram apenas: - ".... E agora, eu vou tirar a sua."

Em pânico ao ver um dos comandantes de Yomi entrar na sala da torre com uma tocha na mão, a luz do fogo fazendo todos eles parecerem esqueletos ambulantes, com suas faces sulcadas e terrosas. Yomi deu meia volta e se afastou lentamente, deixando o Youko se debater mais entre as amarras, ganindo ao antever o que seria dele.

Medo, medo verdadeiro, esse era o cheiro que se misturava ao da rosa esmagada e morta. Cheiro do seu próprio medo.

"Quero que o fogo tome conta desta torre." - Ele falou como se dissesse o que queria para o jantar.

O soldado ateou as chamas por todas as belíssimas cortinas de seda, e elas lamberam ávidas, o tecido da forração das paredes, e correr pelas tábuas do chão, tudo mais rapidamente do que esperava que fosse um dia. E mal o soldado sorridente fechava a porta, isolando o fogo entre as paredes de pedra, não houve um espaço naquilo tudo que não ardesse mais que os pecados.

E de longe, já nos últimos degraus da escadaria que levava àquela torre, Yomi interrompeu seus passos e voltou-se, sentindo o calor intenso que tomava o telhado e estourava as vidraças, mas só seus comandantes viram o cruel espetáculo das labaredas subindo contra o negro e angustiante céu sem luar da silenciosa noite de Gandara.

"Ele não vai gritar. É orgulhoso demais para isso, se ainda for o Youko que conheço. Fiquem em vigília até o fogo se extinguir."
 
 
 

Pelos deuses, o quanto que esperei por isso, Kurama Youko, meu amor, meu ódio. Você me destruiu, me privou da luz, apenas por não querer que eu saísse do seu rastro, porque tinha mais prazer me enlouquecendo do que permitindo que eu partilhasse sua cama e provasse dos segredos do seu corpo de que tanto ouvia falar... O seu amor é o mais amargo dos venenos, Kurama. O seu nome se repete mil vezes na ponta da minha língua, no sabor dos seus lábios do beijo que roubei a força de você, e eu sinto a quentura do fogo que varre sua maldita, e tão querida para mim, existência do Makai. Ser rei é uma conquista sem vantagem. Esse reinado não me deu a única coisa que eu realmente queria. Você venceu, nunca me deixou experimentar o que podia ser de todos e de ninguém, até seu beijo. Porém, há um doce triunfo em meio a esta vitória amarga. Eu o possuirei mesmo depois de morto, e a criatura mais livre desta terra será o que eu mesmo fui para você por todos aqueles anos: escravo.

E você, o que sente agora com essa derrota? Você perdeu nossa pequena guerra. Eu imagino perfeitamente o que deve ter sentido quando viu o fogo se espalhar. Não estou pensando no tamanho da sua dor. Imagino o pavor nos seus olhos dourados ao ver sua vida, e você gostava tanto de viver... Sua vida se acabando em um monte de cinzas. Creio e quase posso ver em meus olhos cegos, seus dedos se crispando em garras, forçejando contra as amarras, tentando romper cordas tecidas especialmente para deter o seu poder. Sim, não duvido de que consiga. O próprio fogo as enfraquece, chamusca sua pele, mancha de fuligem a brancura da sua túnica, você não consegue evitar de se queimar, mas não será o fogo a matá-lo, eu imagino. Você ama tanto a vida que pode achar forças e fôlego de tentar correr até uma das janelas, quem sabe, o estouro de vidro que escuto tenha sido alguma cadeira que você tenha jogado por ela, mas... Ah, Kurama, eu sei que a fumaça o sufocou e que a vidraça estourou sozinha pelo calor. Você perdeu os sentidos antes de ter tido força suficiente de erguer a cadeira. Agora, nada mais resta de você. O dia vai nascer em breve, e você morreu há muito. Quando me desprezou, quando me cegou. Por mais que o ame eu sei que não havia forma de escapar. E ainda assim você será meu.
 
 

******
 
 

Tão distante daquele lugar, tanto que nem se imaginava ver o palácio de Gandara, estava uma ilha de silêncio e calmaria. Nada mais era que uma parte do imenso e escuro bosque em que estava encravada, uma parte cercada e coberta pelas paredes de uma estufa de vidro fosco, uma grande mancha branca no meio daquela sinistra floresta que fazia a fronteira entre o reino da Rainha Mukuro e os domínios de Gandara. Talvez o único som viesse de uma tubulação gotejante de água, no mais, de um réptil estranho que passeava sobre o chão de terra escura e úmida. Quem sabe, das asas de um pássaro raro e colorido batendo, quebrando a quietude da noite no Makai, que parecia Ter sido uma noite eterna sem dúvida.

Mas havia movimento além deles, e vida além daquelas, além das árvores e das flores fechadas em seus botões, havia o bulbo de uma grande flor meio fechada em si, escarlate e escura, as mãos que dividiam aquela cor, meio esticadas para fora, movendo-se para cima mais devagar que o ponteiro das horas, segurando-se no ar, em lugar algum, nascendo, e havia uma palpitação excitada e terrível, e então... houve uma explosão de dor.

As grandes pétalas vermelhas se arrebentaram num estouro de seiva e sangue, ou assim parecia, e um perfume denso tomou conta daquela estufa no mesmo momento em que os animais fugiam assustados com o brusco movimento do corpo pálido e esguio que abria caminho do centro do bulbo da rosa selvagem.

Como um botão de caule quebrado, ele pendeu, com os lábios abertos de seu grito mudo, os cabelos, da cor da rosa, espalhados sobre as folhas das plantas pequenas do chão, ofegando, suspirando dolorosamente, assustado demais com o fim de seu sonho.
 
 

Estava dormindo? Ohhh, onde está meu sonho?

Ah, sim. O fogo me acordou. Mas... Não há fogo aqui.

Alguém se queimou?
 
 

Abriu os olhos e eles eram mais verdes que as folhas sobre as quais deixou-se cair quando se livrou do casulo do bulbo. Grandes e verdes, assustadores como um abismo com a selva no seu fundo. E se levantou como se sempre soubesse o que fazer, erguendo-se, confuso, num cotovelo, olhando o pássaro que espreitava como se também fosse aquela flor recém nascida um animal raro. O lugar era familiar, mas não o reconhecia, e ouvia vozes distantes, misturadas. Muito longe? Não, concluiu. Perto. Sentiu um arrepio de frio e alguma fome, mas uma fome que não estava dentro dele, mas sobre sua pela extremamente pálida, perolada, numa sensibilidade que viciava seus sentidos.

Levantou-se de vez e seguiu automaticamente o rumo das vozes. No caminho, encontrou um amontoado de papéis sobre uma mesa improvisada.

"Dos oito botões, dois estão amadurecendo mais rápido. Botões 3 e 5. Botões 8 e 1 parecem tomar o rumo de uma variação de cor: vermelho vivo, enquanto os 3 e 5, vermelho púrpura escuro. Botão 4 parece ser estéril."

Botões. Estavam falando de flores naquele papel? Aquilo devia fazer sentido para ele? Quem escreveu? Botões... Seriam de rosas?

Eu sou uma rosa?... Quem sou eu?... Eu sou uma flor?... Eu tenho um nome?...

Olhou para trás e viu outros bulbos como aquele de que acabara de nascer. Havia uns mais claros do que o seu, os outros, todos iguais. Haviam espinhos ao redor, eram rosas mesmo. Perto do seu, agora negro e apodrecendo rápido, havia um par de mãos voltadas para fora, também, nas suas extremidades, os dedos longos eram vermelhos e ele olhou as próprias mãos. Pálida, perdeu sua cor de pétala quando desligou-se da flor. E as vozes, sim ia seguí-las.

Entrou pela porta de uma casa simples, que estava aberta, e ficava no meio da estufa, entre as árvores altas. As vozes haviam se afastado e sumido, e só uma restava, no final, falando consigo mesma. Estava tudo escuro dentro da casa, mas a pouca luz mostrava o amontoado de vidros e tubos de ensaio que estavam lá, coisas borbulhando sobre uma chama pequena, animaizinhos em gaiolas, dormindo, plantas cheias de eletrodos, e mais que as outras, uma rosa cheia de fios ligados a suas pétalas. A única cosa que pensou era que ela devia estar sofrendo e a livrou. Andou mais adiante e viu uma mulher de cabelos pretos de costas para o corredor, inclinada sob a luz de uma lâmpada fraca sobre a mesa, escrevendo e falando só. Parecia jovem, familiar também, mas não a reconheceu.

"Depois de alguma semanas a coloração dos botões passa do rosa pálido para vermelho, com variações do tempo de mudança que são características de cada espécime..." - Ao mesmo tempo em que falava, escrevia, rápido, sem capricho. - "... O bulbo número 5 está se desenvolvendo mais rápido e adquirindo tonalidade própria. Talvez sua abertura aconteça em cerca de seis semanas..."

"Eu?..."

Ela se virou bruscamente, assustada, largando a caneta sobre seus blocos e anotações. A flor deu um passo, recuando, assustando-se também.

"Você... Não sabe quem é? Estranho, a outra soube imediatamente." - A mulher olhou com toda curiosidade para a rosa de pé na sua frente. Havia uma doce confusão em seu rosto pálido. Se não fizesse tanto tempo que estivesse vivendo no Makai, aquela criatura iria fazer com que acreditasse que fosse humana, e não o demônio nascido de uma rosa. Havia tido um antes dele, mas não tão impressionante... E era só um botão ainda, uma rosa em forma de gente, que estava por desabrochar.

"Eu... quem sou eu?"

A mulher engoliu em seco, e pegou à toa uma túnica que estava pendurada perto da porta do corredor. Cuidadosa, com medo de que aquele êxito em suas experiências fosse um sonho, e que algo a despertasse dele, envolveu o corpo perfeito da flor nela. Esqueceu-se de respirar um momento, vendo o movimentar da criatura se aconchegando debaixo do tecido, frágil, com todo aquele abandono... Não, ela censurou sua vaidade de comemorar que o primeiro botão da linhagem havia nascido, ele não é um espécime qualquer e sem querer perdendo-se em olhar o verde profundo, do inferno verde daqueles olhos disse a si mesma que havia uma alma alí, ao contrário do primeiro, e era só uma criança, apesar do que parecesse. Sua criança.

Mas o verde se acizentou aos poucos, e a rosa carmesim foi ao chão, semi-consciente, e ainda repetindo aquela pergunta, seu longo cabelo vermelho parando com aquela contínua ondulação para cima, ao redor de sua cabeça, em volta de seu rosto, e apenas se espalhando sobre os ombros suaves dele, e caindo pelo piso quando fazia um esforço de se levantar.

"Acalme-se. Eu vou lhe dizer quem você é..."

E do lado de fora da casa, passaram os mensageiros do castelo de Gandara, cavalgando seus animais bizarros, berrando a plenos pulmões a notícia que faria muitos dormirem mais tranquilos, mas que deixaria seu nome para continuar fazendo todos estremecerem ao escutá-lo:...

"Morto!! Morto!! Ele está morto! Agora! O fogo o matou!! Kurama, o Youko, está morto! O fogo o matou!!!"

Com a mulher não foi diferente.

Um calafrio de apreensão a sacudiu enquanto tentava erguer a Rosa Carmesim de seu desmaio.



Capítulo 1
A Rosa Escarlate
 
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