Lily Le Fay
Capítulo 1
When dreaming I'm guided through another world
Time and time again
At sunrise I fight to stay asleep
'Cause I don't want to leave the comfort of this place
'Cause there's a hunger, a longing to escape
From the life I live when I'm awake
Quando estou sonhando sou guiado através de outro mundo
Vezes e vezes outra vez
No nascer do sol eu luto para permanecer dormindo
Porque eu não quero deixar o conforto desse lugar
Porque há uma fome, um desejo de escapar
Da vida que eu vivo quando estou acordado.
"Higher" - Creed
- Para sexta-feira o Dr. só tem a parte da manhã – informou Shizuka à mulher do outro lado da linha. Depois, ficou pacientemente esperando enquanto a mulher consultava alguém sobre sexta-feira de manhã. Olhou para o relógio de parede. 16:40, informavam os ponteiros sobre o gracioso desenho de um dente abraçado a um tubo de pasta de dentes de um lado e uma escova de dentes do outro, todos sorrindo. Shizuka estava trabalhando como secretária de um dentista, e agora seu expediente estava por terminar – segunda-feira então – falou Shizuka, folheando a agenda do consultório, diante da veemente negativa da mulher a respeito de sexta-feira de manhã – na segunda-feira o Dr. tem horário também à tarde – informou – às três e meia e às quatro e meia – claro que tem de manhã... às nove, dez e dez e meia – Shizuka mais uma vez esperou pacientemente que a mulher se decidisse, desenhando corações e estrelas em um papel para rascunho. Então alguém se postou diante do balcão, e Shizuka sorriu ao olhar para o belo homem. Do outro lado da linha, a mulher finalmente se decidiu. Shizuka ouviu atentamente e então escreveu o nome da mulher às dez horas de segunda-feira – boa noite – finalizou Shizuka, desligando o telefone – sim? – sorriu para o homem à sua frente – tem hora marcada? – disse, com ar de superioridade. Depois sorriu e, esticando o corpo para a frente, beijou-o na boca.
- Tenho – disse o homem – com a paixão da minha vida.
- Hm-hum. Espere só um segundo, meu bem, eu só tenho que
fechar o expediente, e já sairemos – Shizuka explicou, organizando
as coisas na escrivaninha atrás do balcão de atendimentos
– eu estou louca para fumar!
Shizuka chegou em casa às quinze para as três da manhã, louca para tomar um belo banho, fumar um último cigarro e então cair na cama. Mergulhada no ofurô, os olhos fechados, pensava nas últimas horas, passadas com Akira. Akira era um bom homem. Gentil, bem educado, bonito, inteligente, instruído, bem-humorado, bom de cama... mas não havia aquela coisa. Eles se afinavam em quase tudo, possuíam vários gostos em comum mas, de alguma forma que ela não conseguia explicar, não passava disso! Cinema, restaurante, danceteria, casa dele, beijo de boa noite, até amanhã. Não, ele não era para ela.
- Ele é muito bonzinho. Bom demais. Bondade demais estraga – sussurrou Shizuka, com um suspiro – ele é ingênuo – continuou, retirando a toalha dobrada da cabeça e saindo da água – ok, Shizuka – disse para si mesma no espelho – hora de terminar com ele.
Shizuka vestiu a camisola e penteou os cabelos, atando-os numa trança. Sentada diante de seu reflexo no espelho da penteadeira, retirou um cigarro do maço à sua frente.
- É sempre assim, não é? Você conhece um homem, fica com ele por um tempo e então... – Shizuka murmurou, olhando para o isqueiro negro e dourado em sua mão, passando o polegar suavemente por sobre o nome ali inscrito – então começa a compará-lo ao outro. Compará-lo a um homem que jamais pôs suas mãos sobre o seu corpo, e mais, um homem com quem trocou apenas umas poucas dúzias de palavras... – acendeu o cigarro entre seus dedos, e tragou profundamente, expelindo a fumaça pelas narinas e pela boca, de olhos fechados – ele está morto, Shizuka, aceite o fato – disse, olhando friamente para si mesma no espelho.
Assim dizendo, Shizuka apagou o cigarro e, largando o isqueiro sobre
a mesa, foi dormir.
- Quando foi seu último exame? – perguntou a mulher suavemente, abrindo o roupão de Shizuka, expondo seus seios.
- Há seis meses – respondeu, pondo as mãos sob a cabeça. A mulher apalpou um seio, depois o outro, e sorriu para Shizuka.
- Não há caroço algum, está tudo bem com ambos os seios. Você é que ficou impressionada. Pode se vestir – completou, se afastando da maca.
Shizuka sorriu aliviada, fechando o roupão e se levantando da maca.
- Ainda bem... – disse para si mesma, recolhendo suas roupas do gancho e as vestindo, a calcinha primeiro, depois o soutien, a calça e a blusa. Ao recolher o casaco do gancho, um objeto preto pulou para fora, fazendo um barulho seco ao bater no chão e depois correr para debaixo da maca. A enfermeira, muito solícita, recolheu o isqueiro e o olhou atentamente antes de entregá-lo à sua dona.
- Quem é Sakyo? – perguntou a enfermeira, pois tinha intimidade com Shizuka para tanto.
- É um amigo – disse, pegando o isqueiro que a outra lhe estendia.
Pelo olhar de Shizuka, a enfermeira bem soube que tipo de amigo era esse, mas não disse nada.
Sentado em uma das cadeiras da saleta de espera, Kurama folheava uma revista feminina, lançando de vez em quando olhares nervosos para a porta na qual Shizuka desaparecera havia 20 minutos. Estava preocupado com sua amiga que acordou-o esta manhã pedindo-lhe que a acompanhasse ao ginecologista, pois tinha encontrado um caroço no seio. Chegou a sugerir que Kurama apalpasse-a, para saber se ela não estava só impressionada. Claro que Kurama recusou delicadamente, todo vermelho. E agora Kurama estava nervoso de preocupação, afinal um caroço no seio pode significar mil coisas, cisto, coágulo, câncer.
- Ei, Kurama-kun! Não era nada! – Shizuka disse-lhe alegremente, e ele também ficou muito feliz ao saber – não havia caroço nenhum...
- Graças a Inari! – Kurama sorriu, feliz pela amiga estar bem.
- É, graças mesmo – Shizuka retrucou, pondo a tira da bolsa no ombro – vamos almoçar?
- Claro – Kurama ofereceu-lhe um sorriso gentil.
- Você vai mesmo terminar com ele? Pelo que você fala ele é um homem tão bom!
- É – Shizuka concordou, levando um punhado de comida à boca – bom demais.
- E então? – Kurama não entendia mais nada.
- Ele não oferece... desafio.
- Hm... entendo.
- Ele é tão transparente, e tão bonzinho... ele é o mocinho perfeito. Mas eu não nasci para ser mocinha – concluiu, depondo os hashi e acendendo um cigarro, deixando o isqueiro ao lado do maço sobre a mesa.
Kurama pegou o isqueiro e passou os dedos por sobre o nome ali inscrito.
- Você sente falta dele? – perguntou.
- Falta do quê, Kurama? Não perca de vista o fato de que eu mal conheci este homem – retrucou, arrebatando o isqueiro das mãos do amigo e guardando-o apressadamente no bolso do casaco. Kurama apenas sorriu e concordou com a cabeça.
- É, tem razão – respondeu, e depois começou a juntar suas coisas, o casaco, a maleta – bem, Shizuka-san, adoraria ficar mais tempo contigo, mas eu tenho de ir trabalhar, e eu não posso me atrasar...
- Tudo bem, Kurama-kun... eu vou ficar bem. Acho que agora eu vou para casa, está muito tarde para eu aparecer na faculdade... e vou dar um tempo até chegar a hora de ir ao consultório.
- Isso. E aí você aproveita para dormir algumas horas, a senhorita está se abusando.
Shizuka sorriu, mexendo nos cabelos.
- É, é verdade... estou vivendo em um ritmo... mas meu tempo vai melhorar, você vai ver só. É só eu terminar com Akira...
- Cuidado.
- Por que está dizendo isso?
- Porque eu tenho medo por você.
- Medo?
- É. Eu estou notando que você tem vivido em uma ilusão, e eu estou com medo do que vai acontecer com você quando a ilusão acabar. Até mais, Shizuka-san.
- Até mais, Kurama-kun. Lembranças a Hiei.
Kurama assentiu com um sorriso e foi embora o mais rápido possível, para não se atrasar.
Shizuka suspirou e acendeu outro cigarro, pensativa. Eu estou notando que você tem vivido em uma ilusão.
- Eu não sei do que você está falando, Kurama – Shizuka sussurrou, mas sabia.
Estou com medo do que vai acontecer... quando a ilusão acabar. Com outro suspiro, Shizuka colocou sua parte do almoço junto à de Kurama dentro do estojo de couro preto sobre a mesa e, com sua bolsa, foi embora do pequeno restaurante.
* * * *
O garoto reclinou-se na cadeira, bocejando. Se ao menos pudesse dormir um pouco... mas não. Precisava ficar alerta. Afinal, ele estava trabalhando como vigia. E o trabalho de vigia consiste em se manter acordado para que os outros possam dormir em paz. Seus olhos se fecharam, mas ele os abriu imediatamente, se endireitando na cadeira. Não queria nem imaginar o que aconteceria se fosse pego ali dormindo. O patrão ele ainda não havia visto, mas o cara que fazia intermédio entre o garoto e o patrão era bem assustador. Era desses caras enormes, com um sobretudo cheio de volumes assustadores saltando por todos os cantos. Em suas fantasias, o garoto imaginava que cada um desses volumes era a coronha de uma arma de fogo. É, melhor não dormir, de jeito nenhum.
A casa que o garoto guardava sem saber para que (era no fim do mundo, e ninguém ia lá nunca) era antiga, mas em bom estado. Tinha três andares. E lá estavam três pessoas, que ele soubesse. Um era o cara que fazia intermédio entre o garoto e o patrão, e o outro, o próprio patrão. E havia uma terceira pessoa que ele havia visto apenas a silhueta por trás da cortina de uma das janelas. Uma mulher. Do patrão, o garoto jamais tinha visto nem silhueta. Na verdade, ele só sabia que havia um patrão porque volta e meia vinha uma quarta pessoa lá, um rapaz muito gentil, que sempre o cumprimentava com um sorriso. Este rapaz tinha cabelos negros bem lisos na altura dos maxilares, olhos dourados muito grandes e usava sempre uma estranha capa preta com capuz, que cobria-lhe o corpo todo. Às vezes este rapaz conversava com o cara do sobretudo na frente do garoto e era sempre o patrão pra cá, o patrão pra lá.
A única vez que ouviu um nome desde que havia começado a trabalhar lá fazia duas semanas foi pronunciado pelo cara do sobretudo se dirigindo ao rapaz. Ele disse, "entre logo, Sakuya. O patrão está ansioso te esperando." E Sakuya respondeu, "Sim, claro. É que houve alguns problemas com o irmão... como sempre, dando trabalho." O cara do sobretudo riu e eles entraram então.
O garoto tornou a bocejar, relaxado. Os olhos pesaram. Lá em
cima, na única janela do terceiro andar (que na verdade era uma
espécie de sótão), um vulto o olhava por um pequeno
espaço entre as cortinas pesadas.
* * * *
Shizuka chegou na casa de Yusuke um pouco mais tarde do que o combinado por causa do trânsito, mas foi bem recebida pelos amigos, o que foi reconfortante, pela dor de cabeça que ela estava.
Terminara com Akira não havia nem uma hora.
Foi o tempo de deixá-lo no restaurante e dar as coordenadas da casa de Yusuke para o motorista do táxi para a dor de cabeça atacá-la como um furacão. E agora que ela estava mais forte do que nunca, só queria um pouco de paz. Notando seu nervosismo, Kurama perguntou-lhe o que sentia, muito solícito, como sempre.
- Ah, nada... só uma dor de cabeça chata. Terminei com Akira, e ele não aceitou muito bem. Quer dizer, isso é dourar a pílula. Ele armou um circo dos infernos.
- Onde foi que vocês terminaram? – Kurama perguntou, pondo a pequena cápsula rosa em sua mão e estendendo-lhe um copo de água.
- Num restaurante lotado – Shizuka riu do clichê, a despeito da dor que rir lhe causava. Colocou a cápsula na boca e em seguida pegou o copo e bebeu a água até o fim. Olhou para Kurama, que lhe sorria.
- Agora você vai melhorar – Kurama pegou o copo vazio de sua mão e o colocou na mesa ao lado.
- Ah, foi horrível, Kurama-kun. Ele ficou me olhando daquele jeito, sabe, como se ele não merecesse tamanha crueldade. Quando eu terminei de falar, ele estava me olhando de um jeito terrível. Ele não ouviu uma palavra que eu disse! Ficou falando o quanto ele me amava, e o quanto aquilo devia ser um pesadelo, e foi um pesadelo, pelo menos para mim, estar ali sentada com ele me falando daquele jeito. Ele queria um motivo, mas não tinha nenhum! E ele não entendia isso! Ah, foi exaustivo falar com ele! Ele não entendia nada, nada! – Shizuka calou-se, pois a dor de cabeça estava aumentando. Fechou os olhos sem pensar em nada específico, só manteve os olhos fechados. Kurama respeitou seu silêncio, se sentando no sofá ao seu lado.
* * * *
Era aquele sonho novamente.
Shizuka virou-se na cama, e seu braço jogou o travesseiro no chão.
A atmosfera pesada... a fumaça se levantava... o chão tremia.
O olho dele brilhou no escuro.
O teto ruía. E Koenma a puxava para longe.
Para longe dele.
- Não! – Shizuka gritou no sonho.
- Não... – Shizuka gemeu em sua cama.
Ele lhe jogou uma coisa. O que era?
Brilhou no escuro.
Ele sorriu.
Um sorriso tão doce.
Shizuka se debateu para se soltar de Koenma.
Mas tudo o que ela fez foi desprender o lençol do colchão.
Estava acontecendo de novo, e mais uma vez ela não podia fazer nada.
Ficou ali, estática, observando suas costas sumirem na fumaça.
E Koenma a levou.
Não, espere, me solta, olha, sabe aquele homem ali de terno? Eu preciso falar com ele, mesmo.
- O estádio vai desmoronar! – ela ouviu alguém gritar.
- Por aqui, Shizuka – Koenma disse em seu ouvido enquanto a puxava para longe.
Eu não vou a lugar nenhum, me solta.
- Está tudo desmoronando! Saiam daqui ou vão morrer!
Não seja ridículo. É claro que ninguém vai morrer aqui, isso é um sonho.
Mas espere, olha, ele está lá, eu preciso falar com ele. Se você me fizer a gentileza de me soltar...
- Rápido, vamos!
Olha, eu entendo a sua posição, querido. Mas entenda, eu realmente preciso falar com aquele homem antes que...
Antes que ele morra.
Então veio aquele som. Agudo, intrometido. Ensurdecedor.
Shizuka tateou cegamente pela mesa de cabeceira, até que sua mão alcançou o despertador e, depois de derrubar absolutamente tudo – um porta-retrato, um bloco de notas, uma caixa de lenços de papel – finalmente o silenciou.
E era isso. Mais um dia começou.
* * * *
A porta se abriu, e a mulher entrou, a mesma mulher dos outros dias. Ele fechou os olhos e fingiu estar dormindo.
- Eu sei que está fingindo. Eu sei que já pode levantar e andar, então não finja que dorme – tão impiedosa.
Manteve o fingimento, a respiração pausada em uma imitação tão real quanto o possível.
- Vamos, eu não tenho tempo nem paciência para isso – sentiu as cobertas serem arrancadas com força, e sentiu frio. Estava deitado na cama, totalmente nu. Pensou em manter o fingimento, mas chegou à conclusão que, se ela sabia que não era verdade, fingir não ia levar a nada. Abriu os olhos e fixou-a diretamente pela primeira vez. Como ela era linda. Os cabelos negros, os olhos violeta, e uma expressão tão fria e impiedosa quanto a dele mesmo, vestida de preto dos pés à cabeça.
- Onde estou? – se esforçou para que sua voz saísse furiosa, e foi exatamente assim que ela soou – onde estão as minhas roupas? Eu exijo...
- Cale a boca – ela retrucou calmamente – quem faz as exigências aqui sou eu, rapaz. E não comece com esses seus ares de ultrajado, porque nós dois sabemos que não vai adiantar de nada – ela virou as costas para ele e abriu uma gaveta do único móvel além da cama no quarto. De lá, tirou roupas e as jogou para ele com um movimento de pulso.
- Onde estou? – repetiu, vestindo as roupas. Felizmente eram boas e caras, do tipo que sempre usara. Pelo menos isso.
- Não importa. Amanhã estará em Okinawa, fazendo um favor para mim, de modo que não faz diferença alguma onde está agora.
Ele riu.
- O que a faz pensar que eu faria qualquer coisa para você? – disse, com desprezo na voz, enquanto terminava de abotoar a blusa branca, e colocava com as mãos os belos cabelos negros e longos para fora da gola.
- Ah, jovem endymion, e por que não? – perguntou, a voz macia atrás dele. Dedos longos com belas unhas negras retiraram seus cabelos do caminho, e então aquela bela e macia voz feminina em sua nuca enviou raios de lascívia por todo o seu corpo – Salvei sua vida naquele lugar miserável, ou por acaso não se lembra? E além do mais... – sentiu-a se afastar, e então ouviu um clique seco quando a porta do quarto foi trancada. Terminou de se vestir cuidadosamente, arrumando o nó da gravata com elegância, e completando com o paletó. Estava esplêndido, e não precisava de um espelho para saber disso. Aquele tipo de roupa sempre lhe caíra bem.
- Além do mais o que? – perguntou, procurando por um espelho na sala. Não havia nenhum.
- Bem, digamos que você deu muito trabalho, mesmo para uma necromante experiente como eu – ela disse de costas para ele, mexendo em uma gaveta do móvel.
- Necromante? – ele repetiu, surpreso com o peso da palavra – eu quero um cigarro – declarou, com aquela voz autoritária que sempre lhe pertenceu.
A mulher se virou para ele com um espelho de mão, e lhe entregou.
- Não era isso que você queria? – perguntou com um sorriso insinuante, enquanto, segurando o sobretudo negro com a mão esquerda, aparentemente procurava alguma coisa no bolso interno com a mão direita. Ele desviou o olhar dela e olhou para o espelho, e seu próprio rosto olhou-o de volta. Bem, nenhuma surpresa. Não é para isso que servem os espelhos?
Mas tinha alguma coisa errada. O que? Seu rosto longo, sua pele branca, seus olhos azuis afilados e longos, suas sobrancelhas retas e negras, seus cabelos lisos e longos... a sobrancelha, havia algo de errado com ela. E com o olho. O que era?
A cicatriz. A cicatriz que ganhara em uma perda de aposta, a que riscava seu rosto desde a maçã até acima da sobrancelha esquerdas. Ela havia sumido.
- Surpreso? – ela perguntou, e ele desviou o olhar para ela. Estava acendendo um cigarro com um belo isqueiro prateado – Toma – estendeu-lhe a cigarreira, um cigarro espetado para fora. Ele pegou, pôs na boca e se aproximou para que ela o acendesse.
- O que você fez comigo? – murmurou, olhando diretamente em seus olhos.
- Não importa. Basta saber que eu fiz uma coisa muito grande e muito boa para você, e que agora você deverá me pagar por ela.
- Indo a Okinawa – retrucou, com um leve sorriso cético.
- Você aprende rápido – ela sorriu, e tragou o cigarro lentamente – mas a pergunta é: você fará?
- Vamos ver – foi o que respondeu, brincando com o cigarro entre os dedos – depende de quanto me oferecer.
- Ah, não querido, eu não trabalho com o sistema de recompensas, sabe, comigo é ou gratidão ou psicologia reversa – sussurrou, batendo a cinza em um cinzeiro sobre o móvel – em outras palavras: ou você faz o trabalho para mim como gratidão ao que eu fiz por você, ou eu desfaço tudo o que fiz e você vai parar lá do outro lado. E então, o que me diz?
Ele pensou por uns instantes, e seus últimos momentos de vida lhe vieram à mente. O desabamento, a poeira, o rosto da mulher, a de cabelos castanhos, a que lhe dirigiu aquele olhar terrível. Lembrou-se do rosto dela quando ele lhe sorriu docemente, o único sorriso doce de sua vida adulta. E então, o caos. A sensação de se espalhar, voar em pedaços, estar em todo lugar e ao mesmo tempo não estar em lugar nenhum. Queria gritar, queria tanto gritar, mas não tinha certeza de como se fazia e, por um átimo, tudo lhe veio aos borbotões, para então se dissipar como uma nuvem de fumaça. Foi horrível.
- Aceito – disse por fim. A mulher sorriu, e estendeu a mão para ele, e ele a apertou.
- Meu nome é Kairi – disse amigavelmente – vamos descer e vou te dar algo para comer, e então discutiremos negócios, certo?
Ele assentiu, e se aproximou do móvel para apagar o cigarro no cinzeiro. Kairi destrancou a porta.
- Vamos logo, o planejamento é longo e você só tem até amanhã para memorizá-lo por completo – disse, saindo na frente, descendo as escadas daquele terceiro andar que era, na verdade, o sótão da casa. Ele foi atrás, passando o dedo indicador no lugar onde antes houvera uma cicatriz. Não havia nem sombra, nenhuma saliência, nenhuma marca, nenhuma impressão. Era como se nunca houvesse existido. Estranho. Muito estranho.
* * * *
Você ligou para a residência dos Kuwabara. No momento não podemos atendê-lo, mas deixe seu nome, número e recado após o sinal, e entraremos em contato logo que possível. Obrigado.
- Alô, Kuwa-chan, aqui é a Botan, tudo bem? Comigo tá tudo bem, hehehe! Tô te ligando a essa hora da noite porque chegou um servicinho pra vocês lá do Koenma! Pois é, depois de todo esse tempo tem encrenca por aqui! Tô te esperando amanhã às cinco lá no templo da Mestra Genkai! O Yusuke também vai. Kurama-kun acha que você devia levar a Shizuka-san, que ela tá precisando de distração. Disse tudo...? Acho que sim... cinco da tarde, no templo da Mestra, amanhã, leve sua irmã. Ok, disse tudo. Agora vou indo, tá? Tchau, tchau!!!
Shizuka pensou em pegar o fone do gancho, mas desistiu no último segundo. Ficou ali, deitada no sofá ouvindo a mensagem de Botan. Estava sem sono. Era o stress. Fechou os olhos por um instante, e suspirou quando ouviu a parte da mensagem que falava dela. Kurama-kun acha que Shizuka-san deveria ir... ela está precisando de distração.
Estou com medo do que vai acontecer...
- ...quando a ilusão acabar – Shizuka completou em voz alta a observação que Kurama fizera naquele dia no restaurante. Ah, Kurama estava sendo tão gentil e preocupado... Shizuka sorriu ao pensar nisso. Levantou-se, e foi até o quarto de seu irmão dar o recado de Botan.
- Ei, Kazu! – ela gritou, batendo na porta com o punho fechado. Nenhuma resposta, talvez ele estivesse dormindo. Daria o recado amanhã. Ou melhor, deixaria a secretária armada com o recado, para que ele ouvisse por si só. Ele já estava grandinho pra saber que quando a luz vermelha pisca é porque tem mensagem nova. Isso, deixaria que ele pegasse o recado sozinho. Virou-se para ir para seu quarto, e então a porta do irmão se abriu, e lá estava Kazuma, vestindo apenas uma cueca.
- Que foi, Shizuka? O que eu fiz dessa vez?
- Recado pra você na secretária, da Botan. Vim te avisar.
- Ah, tá. Vou lá pegar – Shizuka observou seu irmão caminhar, trôpego, zonzo e se coçando até a sala.
- Bem, dever cumprido – sussurrou, e tratou de se recolher. Ia ter faculdade cedo no dia seguinte.
* * * *
Yukina cantava baixinho com os lábios fechados enquanto cuidava das plantas, só um leve murmurar. Foi então que ouviu o grito alegre de Botan.
- Yuki-chan!!! Tudo bem com você?!?!?
- Botan! – ela disse, com um sorriso meigo, ao ver a amiga.
- Os outros já chegaram?
- Só o Yusuke-kun, a Keiko-san e o Hiei-san... – foi o que Yukina respondeu, em sua voz doce de sempre.
- Então tá! Vou entrar lá, tá?
- Eu vou ficar aqui mais um pouco, tenho que terminar de molhar as plantas...
- Então te vejo lá dentro, Yuki-chan!
- Tá... – Yukina sorriu, e voltou ao que estava fazendo.
- Oooi! Mestra Genkai, Yusuke, Keiko!!! – Botan disse animadamente logo que entrou no dojo. Yusuke e a Mestra estavam tendo uma típica discussão de reencontro, e se interromperam com a recém-chegada. Keiko estava para bater em Yusuke, irritada com o namorado, como sempre.
- Eeei, Botan! – Yusuke respondeu alegremente, e Botan se pendurou nos pescoços dos dois amigos.
- Oi, Botan – Keiko cumprimentou com um sorriso.
- Como vocês tão?
- Ah, tô bem pacas, e você? Cara, há quanto tempo!!! Como vão as coisas com o baixinho?
- O Sr. Koenma tá bem! – Botan respondeu – cadê os outros? Não acredito que se atrasaram! A Yuki-chan disse que o Hiei tá aí! Cadê ele?
- Sei lá! Tá por aí! Ih, olha lá, é o Kurama! E aí, cara? Como cê tá? – Yusuke deu uma gargalhada.
- Estou bem, Yusuke-kun, obrigado – Kurama respondeu com um sorriso amável.
Uma brisa sacudiu levemente os cabelos de Kurama, e uma sombra negra cruzou o espaço, quando Hiei entrou rapidamente, parando ao lado do Youko.
- Estão todos aqui? – foi o que perguntou, de um jeito mal-humorado.
- Só falta o incapaz do Kuwabara – Yusuke declarou.
- Como se você pudesse falar sobre incapacidade! – Genkai retrucou, ranzinza.
- E também falta Shizuka, certo? – Kurama perguntou a Botan, com um olhar de, "você deu o recado direito, não deu?"
Quando Shizuka chegou com Kuwabara e viu todos aqueles rostos voltados para eles, temeu que tivessem se atrasado demais.
Se nos atrasamos a culpa é minha, pensou. Não devia ter insistido em ir trabalhar hoje.
Mas suas preocupações se dissiparam quando viu os sorrisos dos seus amigos. Talvez não tivesse se atrasado tanto, no fim das contas.
- E então, Botan, o que aquele baixinho quer que a gente faça dessa vez? – perguntou Yusuke.
Estavam todos sentados em um círculo, o Yusuke e o Kuwabara bem excitados com a nova missão, especialmente porque tinham chance de se exibirem pra Keiko e pra Yukina.
- Foram reportadas ao gabinete do sr. Koenma várias notícias de desaparecimento de espíritos de pessoas – das trevas, todos eles – que estavam no Reikai – Botan começou, muito séria. Séria demais, para os padrões de Botan.
- Bem, eu diria que isso é no mínimo alarmante – Kurama comentou, tomando um gole do chá.
- O sr. Koenma também achou – Botan respondeu, com os olhos arregalados – e mandou averiguar. Descobriram que os espíritos desaparecidos pareciam seguir um padrão... sempre eram pessoas do sexo masculino, com qualidades marcantes e conhecimento sobre o Makai, e principalmente: a maioria esteve presente no Torneio das Trevas realizado aqui no Ningenkai, como participante, organizador ou espectador.
- Hmmmm – Yusuke olhou para cima, a mão no queixo, pensativo - será que pretendem reproduzir um Torneio das Trevas? Pra que?
- Caaaalma, Yusuke, deixa eu terminar! – Botan gritou, atirando Yusuke longe. Depois, respirou fundo e, já calma, continuou – aí o sr. Koenma me chamou, pra eu vir aqui entrar em contato com vocês. Só que, quando eu vinha vindo, ele me chamou de volta, porque tinha acabado de chegar uma nova notícia: descobriram que está havendo uma agitação lá em Okinawa, e que sentiram um ki muito forte vindo de lá. Foram averiguar e sabe o que descobriram? Construíram uma cúpula enorme de metal, e há um entra-e-sai enorme de pessoas mal-encaradas por lá, e sabe quem viram nas imediações, olhando pra tudo quanto é lado e dando uma de supervisor? – Botan calou-se, dando um tempo para fazer suspense – o Karasu!
Por um momento, nada foi dito, e Botan tinha diante de si oito rostos imóveis e surpresos. Foi a Mestra Genkai que quebrou o silêncio.
- Parece-me que alguém está armando algo grande... – constatou calmamente, os olhos fechados.
- Ceeeeerto, então! – Kuwabara fez um gesto exagerado com os braços – a gente só tem que chegar lá, meter porrada em todo mundo e pronto! E será fácil, muito fácil, já que eu sou oooo... poderoso Kuwabaraaaa!!!!
- Não fala besteira, Kazu – Shizuka resmungou, dando-lhe um tapa, porque sabia que ele estava fazendo aquilo só para chamar a atenção de Yukina.
- Peraí, gente, a gente tem que se concentrar nas perguntas – Yusuke falou, sério – e elas são: "quem?", "o que?" e "por que?".
- Pelo menos nós já temos a resposta para a pergunta "aonde?" – Kurama observou.
- É isso aí, Kurama. Senão, ia ser barra – Yusuke retrucou, e quase se podia ouvir as engrenagens se mexendo em sua cabeça quando decidiu – então é isso, cambada! Simbora pra Okinawa!
Shizuka soprou a fumaça do cigarro, ainda incerta sobre a melhor decisão a tomar. Não eram muitas as coisas que a obrigavam a ficar: a faculdade e o trabalho. Mas eram coisas fundamentais.
Mas por outro lado, eram muitas as coisas que a compeliam a ir. A primeira, muito importante, é que seu irmão iria e, em se tratando de Kazuma Kuwabara, Shizuka preferia vigiá-lo de perto. O motivo número dois, não menos relevante, era a vontade obstinada de Keiko de tomar parte da aventura, o que Shizuka não estava gostando nem um pouco. A idéia de Keiko numa ilha tropical lotada de sujeitos de caráter péssimo, tendo paspalhos como Yusuke e Kazuma como protetores lhe dava arrepios. Quer dizer, havia Kurama também. E Hiei. O que não diminuía o risco para uma menina como Keiko, na concepção de Shizuka.
- O que eu posso fazer? Keiko vai de qualquer maneira, quer eu concorde ou não, mas... – Shizuka tragou o cigarro profundamente, fechando os olhos. Estava caminhando pelo bosque do templo da Mestra Genkai, enquanto os outros debatiam lá dentro a questão de Keiko. Botan disse que a protegeria. Mas diabos, Botan mal consegue proteger a si mesma!... Desesperada com o rumo que a discussão estava tomando, Keiko voltara-se para Shizuka. "Se você for, não vai ter problema, por favor, Shizuka-san... se você disser que vai e que eu vou com você, ninguém vai se opor..." Cansada da discussão, e sem se decidir sobre o que fazer, Shizuka prometeu a Keiko que pensaria no assunto. E aproveitou que as atenções voltaram-se para a notícia de que Genkai não iria devido ao estado frágil de sua saúde para escapar para o bosque, fumar um cigarro e pensar um pouco.
Que outros motivos Shizuka teria para ir? Quer dizer, além da preocupação com Kazuma, a vontade de Keiko e o fato de que realmente estava precisando de umas férias?
- É, Shizuka... ou você acaba com a rotina, ou a rotina acaba com você – murmurou.
Mas havia um outro motivo, não havia?
A maioria esteve presente no Torneio das Trevas realizado aqui no Ningenkai, como participante, organizador ou espectador...
A voz de Botan em sua mente lhe lembrou um outro bom motivo para ir...
Esteve presente no Torneio das Trevas...
Shizuka estremeceu e, decidindo que era de frio, fez seu caminho de
volta ao dojo.
* * * *
- Ei, não precisa empurrar! – Shizuka reclamou, mal humorada, quando um homem enorme lhe deu um safanão para passar primeiro pelo portão de desembarque do avião. Acabou que quase todos foram a Okinawa. Yusuke, Kuwabara, Kurama, Hiei, Botan, Keiko e Shizuka partiram no anoitecer do dia seguinte à reunião do templo.
E lá estavam eles, pisando no solo desta ilha paradisíaca ao sul do Japão. Okinawa.
- Você está bem? – Kurama perguntou a Shizuka educadamente, se referindo ao empurrão que levara.
- Estou sim, pode deixar – retrucou, abrindo a carteira e retirando um de seus cigarros – o que eles pretendem fazer a seguir? – disse, fazendo um gesto vago para Yusuke e Kuwabara, que trotavam alegremente, seguidos por Botan e Keiko. Pôs o cigarro entre os lábios e o acendeu, passando inconscientemente o polegar sobre o nome gravado no isqueiro.
- Não sei, e você?
- Se fosse uma viagem turística, eu daria um passeio pela praia... – soltou a fumaça suavemente, e sorriu – dizem que é linda... mas como não é – continuou, olhando para Kurama – acho que vou ter que me contentar com uma investigação sobrenatural seguida de um violento confronto com o inimigo. E você?
- Honestamente? – Kurama deu uma risada - alugar um quarto em um motel qualquer, que tenha pelo menos uma boa banheira quente.
- Ah, isso é muito bom, sou obrigada a concordar com você – Shizuka riu.
- E você, Hiei, o que pretende fazer agora? – Kurama virou-se para o silencioso e soturno demônio que acompanhava o casal.
- Hn. Destruir logo esses malditos inimigos, e voltar para casa.
- Hmmm... a melhor idéia até agora – Kurama riu e piscou para Shizuka.
Shizuka só pôde rir.
Shizuka não conseguiu reprimir um gemido prazeroso ao deixar-se mergulhar na banheira quente do hotel. É, Kurama estava certo. Um belo banho...
Fechou os olhos, tentando ignorar a balbúrdia que Keiko e Botan armavam no quarto para fazer Yusuke e Kuwabara irem para o quarto deles.
Meio revoltada com a confusão geral a apenas uma parede de distância, pensou que Kurama é que tinha sorte, em dividir o quarto com alguém tão silencioso como Hiei. Depois pensou, com um sorriso, bem, talvez não tão silencioso.
Estava feliz por estar em Okinawa. Mais cedo naquele dia mesmo, Shizuka trancou a matrícula da faculdade e, sem conseguir chegar a uma conclusão com seu patrão, se demitiu. Uma atitude impensada, impulsiva e pela qual Shizuka se amaldiçoou a viagem toda. Mas agora, mergulhada no ofurô do hotel, começou a pensar nela como a idéia do ano.
Demorou-se no banho propositadamente, esperando que a balbúrdia no quarto cessasse, mergulhada até os lábios na água morna e relaxante.
Quando saiu do banheiro vestida em uma camisola de flanela azul, o quarto já estava em silêncio, com Keiko e Botan dormindo em suas camas. Agradecendo a Deus por aquele silêncio abençoado, enfiou-se sob as cobertas e mal encostou no travesseiro já estava sonhando.
Continua...