Meu Destino é Pecar

Astasia

Capítulo 2

Ele olha para o vazio, com olhos claros e perdidos, como se houvesse engasgado ou esquecido do que estava falando. Diz que está com sono. Não penso duas vezes antes de ir atrás, tentando olhar em seu rosto, consegue se desviar de mim como se eu fosse só mais uma parede nessa casa velha e poeirenta... No corredor e nos quartos que estão com as portas abertas, no caminho até o dele, há pilhas de coisas velhas, pilhas de livros, brinquedos antigos e retratos que com certeza não são deste século. No quarto de Saiyame, onde entro sem pedir licença, e onde ele age como se estivesse sozinho, as coisas são do mesmo modo, tudo velho demais, deslocado.

"Já que você não se importa de eu ter entrado assim nesta casa, também não deve se importar de que eu passe a noite aqui..."

"..." – Ele nem se dá ao trabalho de olhar.

"E com certeza não se importa de que eu durma na sua cama, não é?" – Estou beirando a vulgaridade falando assim. Talvez seja do que ele goste: vulgaridade.

Ele pendura o casaco de camurça encima do espaldar de uma cadeira, e sobre ela está uma bolsa aberta, com poucas coisas... Quando me escuta, volta o rosto para mim, com aquele sorriso inexplicável, quase alheio, meio tolerante e que me deixa às vias de um ataque de raiva. Ele tem um sorriso tão bonito que me irrita, parece um sorriso de criança, mas não chega aos seus olhos, é como se ele pedisse desculpas por não ser o que os outros gostariam, talvez nem saiba o que significa esse sorriso frio que tem...!

"Não, não me importo."

Talvez desta vez ele tenha entendido o que eu quero... Foi mais fácil do que eu esperava!

* * *

Quando me estico na sua cama, descubro que quem há de me fazer companhia serão apenas os travesseiros. Saiyame já está dormindo a sono solto, sentado no pé da porta, como se estivesse muito acostumado a fazer isso. É claro que ele deve estar se divertindo com essa situação. Não adianta que eu tenha um ataque de raiva como o que gostaria, e engolindo em seco mais esta desfeita, durmo depois de muito tempo, remoendo...

Acordo sozinho na casa, no dia seguinte, como se nada daquilo houvesse acontecido, e a única prova de que não estou louco são os dois pratos sujos na pia e as roupas de Saiyame, penduradas no ferro da varanda do quarto, secando.

Não o vejo por todo este dia, e nem pelos seguintes...

Por um breve momento acho que é o paraíso. Vou até meu apartamento buscar algumas coisas e fico nesse casarão antigo. Não é certo fazer isso, mas afinal... Eu não desisto fácil das coisas que quero.

* * *

Estes dias sem ter aquela desgraça de gorro por perto me fazem muito bem. Sinto isso e sem modéstia alguma me vejo irresistível na vidraça fechada do quarto de Tomoyo: minhas olheiras desapareceram completamente, não estou mais tão pálido, e meu cabelo está preso, do jeito que gosto, ele é escuro e castanho, se eu o deixar solto, cai liso até a metade de minhas costas, parece negro no reflexo da vidraça, e assim como meus olhos, um pouco grandes e brilhantes demais, e são daquele verde cinzento e escuro. Tenho uma mal contida vontade de sorrir, estou dormindo sozinho porque quero, e não por falta de opção, e muito menos por estar esperando a boa vontade de Saiyame de parar de se fazer de difícil. Meu queixo treme quando penso nele, naquele sorriso irritante e irracional... Lá fora está escurecendo e o céu está cor de laranja, amarelado, e apesar disto, um resto de chuva da tarde está caindo. Não sei há quantos dias não tenho notícias de Saiyame, e se não fosse por uma única vez Tomoyo ter perguntado, eu poderia acreditar que ele não existe. Sinto-me muito melhor sem saber dele, espero que esteja muito longe de mim, me esqueça, que esteja bem morto.

Olho para ela. Agora já se levanta da cama, mas não tem vontade de sair do quarto, nenhuma curiosidade de olhar lá fora. Os pontos dos pulsos já cicatrizaram, e se recusa a tomar os remédios. Eu é que não vou insistir, ela está fazendo muitas perguntas, não parece ter nenhuma lembrança muito segura dos últimos anos. Li está sempre aqui, naquela companhia estranha, sentado, olhando, falando o indispensável, como agora. Soube que faz faculdade, pós-graduação, e mora praticamente sozinho, pois é, assim como Saiyame, de Hong Kong. Há uma foto dele quando criança – Não mudou muita coisa – na penteadeira, Tomoyo está ao lado – era uma menina muito bonita, é uma garota linda, e isso me deixa intrigado, ninguém fica no estado em que ela está do nada – e entre eles está uma garota da mesma idade, de olhos verdes e cabelo curto, abraçada à cintura de um garoto alto e moreno, mais velho – ele tem um olhar tão penetrante e duro quanto o próprio Li, isso chega a assustar... – que segura discretamente a mão de um outro, da mesma idade, de ar melancólico, pálido e de óculos. Nada de estranho até aqui, somente este bicho de pelúcia amarelo que está no colo da garota de olhos verdes, no meio da foto. É impressão minha ou ele está olhando para a câmera também?

Pergunto quem são eles. Nem estou esperando que alguém me escute, e muito menos responda, é somente curiosidade.

"São amigos." – Tomoyo responde, buscando uma escova e penteando os cabelos, um tanto alheia e confusa, como se não tivesse muita certeza das coisas. – "Os que não estão mortos estão muito longe daqui." – E dá uma risadinha baixa e amarga, seus olhos se encontrando com os de Li, escuros e agudos, num tipo de constrangimento que há entre eles. Ele não ri. Deixa um livro de lado e vem pegar o porta-retrato das minhas mãos. Senta-se na cama, e ambos olham para a fotografia. De vez em quando acho que são mais do que amigos... Mostra-me de novo a fotografia e diz quem são aquelas pessoas. Aponta para Tomoyo e ele na foto, a menina com o bicho amarelo no colo é Sakura Kinomoto, irmã de Toya, o rapaz moreno. O de óculos é Yukito, sua voz pesa ao me dizer o nome dele.

Não preciso perguntar e Li me diz, no seu jeito duro e seco, com que ainda não me habituo, que tanto Sakura quanto Yukito estão mortos. E os que restam? Li me responde que Toya foi expulso de casa quando Sakura foi assassinada. Quando diz isso, um estalo e é a vez do vidro da moldura da foto se quebrar, como se houvesse dado uma pancada no meio dela. Um sobressalto, silêncio, e eu pergunto:

"E quem a matou?"

Arrependo-me do que pergunto no mesmo instante. O silêncio entre eles é pesado, não sei o que estão escondendo, mas ele parece medir muito bem as palavras antes de me dizer, sem no entanto desviar os olhos dos meus, apontando o meio do retrato, para o bicho amarelo no colo da menina:

"E este aqui é..."

Olhar para esse brinquedo que parece separado em vários através do vidro quebrado da moldura...

Por que Li está me dizendo o nome de um brinquedo?... Mas não diz. Fica calado de novo e dá um sorriso. Não sorri para mim, parece que seu olhar vai além, não sou nada para nenhum deles, estas pessoas estão presas a um mundo muito diferente do meu, e não o entendo, e seja lá o que for essa loucura toda em que estão mergulhados, quero e preciso fazer parte disso. A curiosidade, a fatalidade, me empurram a isto. Agora, a fechadura estala, a porta se abre. Se os fantasmas de Li e Tomoyo estão nesta fotografia, o meu acaba de chegar, com seu rosto redondo e seu gorro preto, com o casaco dobrado sobre o braço. Não acredito que Saiyame voltou...!

Os cumprimenta, conversa com eles, senta-se ao seu lado. E assim, continua agindo como se eu não estivesse aqui, e isso me deixa furioso. Fico mais quando o vejo ser tão bem recebido, na medida das circunstâncias, tem a atenção destes dois que nem o conhecem, nem sabem do que esta doce criatura é capaz (no meu pescoço restaram cinco finas linhas brancas e paralelas que não me deixam mentir...), e eu aqui me sentindo incapaz de fazer qualquer coisa. O retrato volta para cima da penteadeira, o gesto sendo acompanhado por uma exagerada atenção por parte de Saiyame, que diz ter estado trabalhando por todos estes últimos dias, que agora virá mais freqüentemente visitar Tomoyo. Li se levanta, sem nada dizer para se despedir, sempre age desta forma, me chama e me convida para um café. Argumenta que meu horário está acabando. É verdade, olho no relógio da parede, e também olho para Saiyame, sorrindo, conversando bobagens, entretendo Tomoyo, dizendo-lhe como é limpar o sótão dos outros... Ela pode viver sem isso.

Seguro firme seu colarinho pela nuca, agarrando cabelos e camisa e o arrasto conosco.

* * *

No Café, o meu vem sem açúcar, o de Li vem com limão e Saiyame – Silencioso e de olhos baixos, por detrás de algumas mechas que caem sobre eles, parece tão alheio a nós quanto Tomoyo estava antes daquela tarde no hospital – aceita apenas chá. É estranho que tenha hábitos tão chineses... Mas isso não é nada, estranho mesmo é ver que ele está conversando com Li, escutando-o falar veladamente sobre uma coisa a que se refere com discrição e meias palavras, e Saiyame parece entender, alternando sua atenção entre os rabiscos sobre um guardanapo e os olhos de Li, que quando ele fala estas coisas, parecem ficar mais escuros e hipnóticos como os de uma serpente. Agudos, eles não desviam sua atenção nem quando tusso de propósito, mal escuto seus sussurros, e do pouco que entendo, Li deve ser de alguma seita mística, ou algo assim, e estão falando de um ritual absurdo até para os piores filmes de terror... Juntos, eles parecem ainda mais estranhos e enigmáticos. E pensar que mal se conhecem...

"E você, Hisashi? Em quê você acredita?"

A xícara quase escapa dos meus dedos, Li está falando, ecoando grave no meio de um silêncio que estava me envolvendo de novo. Será que ele também sente essa ausência de sons? Vou parecer um maluco se perguntar isso, e de louco nesta mesa, já basta Saiyame, seus olhos estranhos e claros demais, parecem olhos de uma boneca, com a luz assim, da tarde se acabando em amarelo forte e laranja.

"Em mim." – Disso não tenho dúvida alguma. Ele não questiona, e pela primeira vez desde que o conheci, vejo Li Shaoran sorrir de uma forma não tão amarga, sorri para Saiyame.

Tudo isso me parece muito errado, e também o que pergunto para Li, interrompendo-o de voltar a falar com Saiyame, justamente quando sua mão livre ia toca-lo no ombro, se é verdade que eles são amigos de infância. A mão cede e o sorriso também. Ele volta imediatamente a ser aquela figura séria e feita de pedra, como antes, e seja qual for o encanto que o fez amainar-se, desfaz-se, e ele se ergue da cadeira muito lentamente, olhando fixo para esse garoto estranho e desconhecido ao seu lado, daquele mesmo jeito que olhou para mim no quarto, atravessando-o. Consegui. Está acabado. Como imaginei, ele não pretendia nada de bom aproximando-se de Li e Tomoyo, e seu olhar quase aflito, vendo Shaoran afastar-se sem olhar para trás diz tudo.

"Acho que estamos quites agora..." – Digo perto de sua orelha, estou triunfando com o que fiz. Se soubesse que ia ser tão fácil me livrar de Saiyame... Consigo faze-lo merecer a desconfiança alheia e agora... Só preciso joga-lo no chão, em qualquer canto mais sossegado para acabar de vez com esse pequeno filho da...

Ele não me escuta? Sua respiração é ruidosa como se faltasse ar para si, e no Café sequer está abafado. Termina seu chá e deixa o dinheiro sob a xícara. Continuo a tentar atormenta-lo, dizendo em seu ouvido, em palavras muito mais cruéis do que achei que poderia, que é hora de parar de mentir e dizer logo a verdade antes que as coisas saiam de seu controle. Tenho absoluta confiança em mim, apostei e ganhei. Vou ganhar mais. Levanto-me ao mesmo tempo que ele, meu braço está sobre seus ombros e aperto-o com força. Desta vez, não vai desaparecer, não antes de me dar as respostas que quero.

Ninguém nota o que está acontecendo entre nós. Saímos do café para a rua ensolarada e quase vazia. Ainda estou segurando Saiyame, mas ele não parece se importar ou sentir. Pergunto se ele se lembra de todas as desfeitas que me fez. Insensível ou simplesmente alheio, a sua frieza me causa repugnância: tantos outros, se me escutassem falando assim, deste jeito que não sei controlar, em seu ouvido, já teriam arrepiado ou me beijado. As ruas pelas quais andamos até chegar ao casarão são cada vez mais vazias e silenciosas, nada me impediria de pegar esse beijo à força, mostrar quem tem o poder nesta maldita guerra entre nós. Mal está anoitecendo, tudo me faz desconfiado, a cada passo que damos na direção da casa, que está logo ali, é mais um passo que o silêncio e a angústia que ele me traz dão sobre mim. Não tenho uma explicação lógica para isso acontecer. Também não explico como perco a força e a vontade de prende-lo debaixo de meu braço, quando chegamos à frente da casa velha, debaixo das copas quase negras dos salgueiros.

Mas que... Eu acabei de descobrir uma de suas mentiras, e ele continua me ignorando? Não está com raiva de mim? Mete a mão no bolso e tira a chave. Dentro da casa está tudo escuro e abafado, estranho que há vento, mas as folhas da árvore não se movem. A casa é tão escura por dentro quanto ele próprio? Tenho de segui-lo para saber. Sinto os cortes no meu pescoço reabrirem, dói como naquela tarde (que parece distante e alheia). Não há sangue na minha mão, estou tremendo e um suor frio desce por minha testa. Vejo Saiyame desaparecer da minha frente, no meio da escuridão.

Chamo por seu nome, mas o silêncio dessa grande casa antiga abafa minha voz. Sinto-me sufocado de toda essa quietude, tenho tantas coisas a perguntar, tanto a dizer, onde ele está? Sumiu... Garoto desgraçado e insuportável, está me deixando maluco! Grito seu nome aos pés das largas escadas, vendo que um resto de sol ainda ilumina a parte de cima da casa, através das janelas e das clarabóias empoeiradas do teto. Estou com medo, Saiyame pode muito bem ser qualquer tipo de maníaco, assassino... Sinto a morte bem detrás das minhas costas, e eu nunca acreditei em pressentimentos... Descubro-me excitado com a sua frieza mortífera, o perigo que ele significa. Talvez planeje matar alguém... Talvez planeje matar a mim, então que esbarro seriamente em seus segredos... Esse pensamento tem o poder de me fazer imaginar todo tipo de violência e tem a incrível capacidade de me deixar cada vez mais excitado, ansioso. Mais do que nunca quero ir para a cama com ele, porque sei que só estou vivo por seu capricho, e que Saiyame, não importa seu rosto de anjo, seu riso desproposital, tem algo de muito obscuro e fatal em si. Ele está detrás de mim, furtivo... É a mão da morte que segura meu cabelo, de repente, e me assusto tanto que não tenho coragem de olhar para trás. Estremeço e fico ofegando, escutando sua respiração, imaginando que ele poderia me matar agora mesmo... Estou apavorado com isso e extremamente excitado, cheio de desejos indecentes e impróprios para uma situação como essa...

"O que você quer de mim, senhor Wakai?" – A voz de Saiyame é forte demais para ele, é profunda, lenta, baixa e me causa arrepios de delícia. Sua mão solta meu cabelo do elástico e fica passando os dedos por ele... Que perversão estranha, estou cada vez mais amedrontado, e adorando cada instante desse medo, dessa expectativa... – " Olhe para mim: não tenho nada, não tenho família... não tenho nem ao menos um lugar para onde voltar... O que você pode querer de mim? Eu não tenho nem mesmo um lar..."

Não entendo, tudo me faz sacudir de calafrios, apesar do calor que sinto, e algo me diz que acabei de dar mais um passo para entrar numa encrenca sem tamanho...

"Eu não tenho nada que você possa querer."

"Você..." – Minha voz sai tão baixa e engasgada, eu tento não gemer, sentindo um prazer inacreditável de perceber a ponta de um dos seus dedos passar por minha nuca. Ele é mais do que aparenta, e só consigo imaginar o pior. Não tenho mais poder nenhum sobre ele, esse tom, essa voz... Ele não tem medo de mim e nem se abala por nada que eu possa fazer para destruí-lo... – "Você sabe o que eu quero."

"Não, senhor Wakai, eu não sei." – É impossível que não saiba que estou me ardendo de desejos inconfessáveis, para tentar recuperar meu orgulho ferido, para satisfazer uma perversão súbita e incontrolável... Estou com muito medo, minha visão está turva, e sinto meu rosto esquentar...

Saiyame está bem detrás de mim, e mal tenho coragem de olhar sobre um ombro para ele.

Quem é ele, afinal? O que quer aqui, com aquelas pessoas e somente com elas?

"Não se envolva nos meus assuntos" – A mão desaparece do meu cabelo.

A voz de Saiyame parece mais estranha ainda do que o de costume, parece atravessar um século até chegar nos meus ouvidos. Arrepios, arrepios... É preciso toda esta sensação louca de medo, raiva e desconfiança para ele me fazer balançar assim. Meu pescoço está sangrando de novo. Há sangue escorrendo pela gola da camisa, está na minha mão, quando olho para ela. Parece ter ficado pior, a cicatriz reabre, e Saiyame se afasta antes que possa olhá-lo no rosto, segue escadas acima, com um pisar duro que nunca havia visto antes.

Seus cabelos estão soltos, ele tem um estranho ar de nobreza assim, na escuridão, uma palidez quase de morte, e seus olhos estão brilhando de uma maneira que nunca vi antes, parecem os olhos de um animal... Saiyame tem cachos cheios, caem ao redor de seu rosto arredondado e sobre seus ombros, por cima da camurça do casaco, louros, pedindo por um afago. Nunca havia olhado com essa atenção para seu rosto. Ele é muito mais bonito do que nunca imaginei... Muito mais perigoso.

Com certeza fui longe demais, mas não vou parar agora. Quando chego ao quarto, não parece se incomodar de ver que estou praticamente morando aqui, dormindo na sua cama. Está parado, com a mesma respiração pesada que adquiriu desde o Café, olha para a parede, com algo entre perplexidade e nojo. Aqui, mesmo nesse quarto, mesmo com as janelas abertas, sob a luz forte do sol, inclinado, tudo se torna de alguma forma aterrador. Talvez eu esteja vendo-o com ele é, quem ele é debaixo daquela doce mentira que esfrega nos nossos narizes, nada me faz deixar de pensar que tudo o que Saiyame faz é dissimulação. Talvez esteja furioso porque o desmascarei na frente de Li, talvez esteja furioso comigo.

Pergunto, como tantas vezes, quem ele é, o que quer. Não contenho o medo, e cubro meu pescoço com a mão, lembrando de como essas feridas vieram parar aí, e mais uma vez abertas, não sei se Saiyame pretende me dar outras de presente.

Ele me pergunta o que aquele espelho está fazendo ali. Não sei o que dizer. Ele pega um dos livros da pilha amontoada perto da parede e o atira contra o vidro, espatifando o espelho. Nunca o vi irritado com nada, quase o espanquei e nunca o vi desse jeito. Respira fundo, com aquele ar de "missão cumprida" e mete a mão no bolso do casaco, sempre aquele, de camurça preta e tira o gorro de dentro. Começa a pegar o cabelo, pegando-o todo e enrolando junto à cabeça, ajeitando debaixo do gorro, mas sempre sobram alguns cachos de fora, não consegue ajeitá-los. Parece irritado com isso. Parece cansado e irritado com muitas coisas, principalmente comigo, mas não se dirige novamente a mim, ou sequer olha na direção que estou, consegue fazer com que eu me sinta um nada.

"Onde você esteve estes dias?" - Tento. - "Não acredito que estivesse trabalhando." - Com os cabelos presos, Saiyame passa direto por mim. -" Entendeu? Eu não acredito que estivesse trabalhando, Saiyame! E não acredito que queira fazer qualquer coisa boa para Tomoyo ou Li..."

Pareço ter acertado em cheio. Pára bruscamente no primeiro degrau da escada. Se eu não imaginasse que é louco, ia achar que ele está indo salvar o mundo, com este olhar, com este andar decidido. Por que eu só me meto em problemas? Esta parece ser a maior encrenca de toda a minha vida! Vou até ele, quero ver de perto o que vai aprontar agora:

"Você não vai sair até que tenha me respondido." - Estou irritado comigo mesmo, porque nnão sei onde termina a minha raiva e começa minha vontade de fazê-lo implorar por mim. - "Veja isto: como você me explicca isso? Me dê uma explicação lógica para isso estar acontecendo! Me diga onde você estava todo este tempo!"

Olha para o meu pescoço. Os olhos dele estão daquela cor de novo, amarelos, no escuro, parecem brilhar como vaga-lumes, parecem os olhos de uma fera. Queria estar longe dele agora, mas meu atrevimento não deixa que eu fuja.

"Eu estava trabalhando, senhor Wakai." - Me tratando dessa forma, consegue se manter a um oceano de distância de mim, como se mantém de todos os que não lhe interessam. É uma decisão própria, age assim por que quer, e o que eu posso entender disso a não ser que ele seja louco?

"Pare de zombar de mim, seu pirralho!"

Meu pescoço está ardendo, noto que a gola da camisa está toda manchada... Como ele faz isso? No silêncio, minha voz é estranha e intrusa. Ele atira um maço de notas de dinheiro que estavam no seu bolso em cima de mim. Não acredito que ele faz isso, meu orgulho não me deixa pedir desculpas por nada, nem as maldades que lhe faço, e menos ainda que quase o derrubo das escadas, e caímos nos degraus, eu o seguro pela gola e amasso-o sobre a escada. Devo estar machucando-o, já o machuquei tanto, por que não se importa? Seu olhar evita o meu, isso me irrita, estou a ponto de chorar de tanta raiva, e com tanto a fazer meus olhos arderem e a cabeça girar, consigo achar irresistível a idéia de seduzí-lo, como desafio, como vingança, como alívio de tudo que sinto, essa confusão que provocou na minha vida.

"O que você vai fazer agora?" - Pergunto se vai seguir Li, se tem algo a ver com o que estavam falando no Café.- "Eu não duvido mais de que estivesse trabalhando... mas eu preciso de respostas."

"Viva sem elas, como sempre viveu até hoje. Tire suas mãos de mim. Eu não sou nada para você."

"..." - Parece um bloco de gelo nas minhas mãos. Solto e ele se senta nas escadas, pegando o gorro do chão. Fico sentado nos degraus, vendo que é mais frio que os legistas dos hospitais em que trabalhei, como se não fosse um ser humano, como se os outros nada fossem. Deve estar achando que quero o dinheiro que ganhou trabalhando, eu não deveria ter falado com ele daquela forma... - "Pare de me evitar, de agir como se eu não estivesse aqui... Olhe para mim! Não agüento você me ignorar assim... Por que eles são tão importantes para você? Você vai procurar Li agora? O que vai fazer? Maldição, olhe para mim quando eu estiver falando com você!"

Ele olha, e eu me arrependo... Tanta frieza, não está nada feliz comigo, como nunca parece estar nada feliz de ter de falar comigo, não esconde um desagrado de ter de me ver aqui.

"Não se preocupe. Talvez eu não vou volte, senhor Wakai." - Essa maneira atroz de manter dist&aciirc;ncia de mim...

"Hisashi!"

"Hisashi." - Ele repete, sem emoção, talvez com desdém. Onde estão as emoções dessa criatura? Onde está aquela doçura toda que ele tem para Tomoyo e Li? Onde está a emoção de alguém que nunca viu um suicida? E pensar que ele estava se acabando de tanto chorar naquele hospital, agora nem parece ser capaz de chorar... Não adianta, nunca vou saber qual vai ser seu próximo passo, vou ficar aqui e assisti-lo, literalmente, desaparecer porta afora. Não preciso ser um vidente maluco como Li Shaoran para dizer que não vai voltar esta noite, e muito provavelmente, nem nas noites seguintes...

* * *

Destruindo uma tradição de anos, faço o jantar. Se eu estivesse no meu juízo perfeito - e não devo estar, me enfiando na casa de um estranho e quase me arrastando aos seus pés para que ele olhe para mim nem que seja com desprezo - eu pediria uma pizza. Espero por horas que ele apareça. Não tem televisão nesta casa? Tanto faz, detesto televisão. Sexo é muito melhor. Vou dormir quando já é quase meia noite e tenho certeza de que não vou ter coragem de sair daqui antes de saber por onde que Saiyame está e se pelo menos não está matando ninguém que eu conheça. O telefone toca algum tempo depois, justamente quando eu já caía no sono. Estranho, eu achei que nem sequer havia um telefone nessa casa...

"Saiyame! Li está no hospital!" - Tomoyo? A esta hora?

"Não é Saiyame. O que aconteceu?"

"Hisashi? Por favor, venha comigo ao hospital!" - Está chorando, não consegue dizer mais nada e desliga.

Eu deveria ter apostado dinheiro de que isso não ia acabar bem...

* * *

Apesar da fraqueza e do cansaço crônico que Tomoyo sente, ela já está me esperando, na frente dos portões, junto de uma daquelas mulheres vestidas de preto que sempre estão pela casa. No caminho, tento manter o silêncio, sou pago para isso.

Chegamos. A emergência cheira a álcool, mas esse cheiro não consegue disfarçar o cheiro de sangue que está aqui. Se não estivesse sendo pago, sairia daqui agora, não agüento mais olhar para paredes azul-ciano, enfermeiros vestidos de verde e pisar sobre um chão de ardósia. Descobrimos onde Li está pela confusão que se fez ao redor dele. Há outros pacientes aqui, mas até eles parecem distraídos com o que está acontecendo no último leito do corredor de atendimento.

Encontro por acaso um antigo colega, que me avisa para não deixar Tomoyo se aproximar, não é uma cena das mais bonitas de se ver... Essa é quase uma senha para que eu me aproxime correndo dalí, abrindo caminho a cotoveladas. Parada cardíaca, parada respiratória, ele está fora do ar há exatamente um minuto. Não há tempo. Dois médicos se revezam tentando fazer seu coração bater de novo. Não é uma cena nada bonita mesmo. Ninguém sabe dizer se foi um acidente, se está drogado... Parece não haver causa física, há sangue em sua camisa aberta, mas não é dele, também não há indícios de hemorragia interna. Automaticamente, assumo o comando dessa situação terrível, sem pensar, sem refletir, simplesmente ligo o aparelho de choque e mando a equipe se afastar. Por que não usaram isso logo? Ele está gelado!

Primeiro choque, as luzes do teto tremem. Uma enfermeira ausculta e nada. Subo a potência e tento de novo, ninguém me impede, eles me conhecem, imaginam que devo saber o que estou fazendo. Segundo choque, as luzes tremem de novo, mas as pestanas de Li continuam teimando em ficarem lilases. Se colocar essa coisa no máximo, também acho que posso matá-lo. Um dos enfermeiros tenta fazer a massagem sobre o peito exposto de Li, com tanta força que parece que vai partir suas costelas. Grito por um remédio que nem sei qual é, mas é um capaz de ressuscitar qualquer criatura, em uma dose que nem um cavalo agüentaria. Ele é aplicado na veia de Li e ele continua sem reação. Três minutos, a mínima reação que ele tinha já some completamente. Clinicamente morto. Eu não conheço nenhum médico que teria coragem de fazer o que faço. Retomo o aparelho de choque e subo a potência ao máximo. O corpo de Li parece muito pequeno sobre a maca, sacudindo como um arco quando dou o choque no seu peito. Parece um boneco de pano, jogado aí. Ele tem vinte e cinco anos, como pode ter tido uma parada cardíaca desse tipo? Um ruído débil se faz no aparelho que monitora seu coração. Os médicos e enfermeiros o cobrem de novo, como abutres. Abro seu olho e foco em sua pupila com a lanterna. Fixa. Parece de vidro. Cinco minutos. Não quero perdê-lo assim, há algumas horas eu o vi falando sobre magia. O que eu não daria para vê-lo falar essas idiotices de novo? Nada do que colocam nas suas veias faz efeito. Dobrar a medicação, é demais para o peso dele. Posso ser preso por estar dando ordens assim, mas saber que Tomoyo está olhando do fundo do corredor, vendo seu último amigo morrer é suficiente para me dar coragem de sobra. Não quero perdê-lo assim! Adrenalina direto em seu coração. Nada. O que está acontecendo? Nada faz efeito! Seis minutos, por que ele vai morrer assim? Nas minhas mãos? Droga, Li, não faça isso com Tomoyo! Ele está morto, seja lá o que signifique isto. Morreu nas minhas mãos. Sete minutos.

Como vou dizer isso para Tomoyo? Como vou dizer a polícia o que estou fazendo aqui, tomando procedimentos se nem trabalho mais neste hospital? O cadáver de Li fica estendido sobre a maca e pela primeira vez não olho para um paciente morto como se fosse mais um. Eu o conhecia, eu o vi há poucas horas, tomando café com mais limão do que café... Não há mais nada o que fazer. Os enfermeiros se afastam, eu já fiz isso dúzias de vezes, das macas, como eles fazem agora, recuando, seguindo direto para cuidar de outros pacientes. Me jogo numa cadeira e fico olhando para o braço estendido para fora da maca. Que morte absurda e estúpida. Ele tem a minha idade, nunca senti a morte tão perto de mim, parece estar bem atrás desse vidro às minhas costas, olhando por cima do meu ombro, me dizendo que eu posso ser o próximo se me envolver na vida dessas pessoas estranhas... Tenho vontade de chorar porque o deixei morrer. Tomoyo entra na sala, somos só nós agora. Levanto quando ela entra e fica olhando para o corpo de Li, passando a mão sobre seu cabelo úmido de suor, ele deve ter sofrido muito antes de ter tido a parada. O que eu faço agora?

Ainda me parece que a morte está olhando por detrás da minha costa, atenta, espreitando. Olho para trás e quase grito quando dou praticamente de encontro com Saiyame. Era só o que faltava... Ele está pálido e lívido como se houvesse sentido toda a dor de Li, mas continua olhando tudo com a distância de sempre. Seu rosto arredondado está manchado de sangue, o sangue em suas roupas está coagulado, e o gorro deixa escapar uma boa quantidade de cabelos que caem sobre seu rosto. Passa do meu lado, aquele ódio todo que eu lhe tinha volta em dobro quando penso que isso tudo pode ser culpa dele. Ele coloca a mão no ombro de Tomoyo e diz que vai ficar tudo bem. Tomoyo grita com ele, então, perguntando se algo ainda pode ficar pior, mostra a ele seus pulsos marcados com as cicatrizes recentes, aponta o corpo de Li, acho que ela está a ponto de ter um surto violento, mas Saiyame não pestaneja:

"Você não é a única a ter cicatrizes aqui." - Ele diz secamente depois que escuta ttudo.

O suporte dos soros que estava o lado da maca tomba para o lado, e está longe de nós, não há mais ninguém aqui. Cai no chão se desmantelando inteiro, e do outro lado desta sala pequena, o vidro que dá para o corredor se abre numa rachadura, que vai de ponta à ponta, partindo, estridente e rápida. Na maca, quando já nos afastamos dela, esperando pelos enfermeiros que vão recolher o corpo, a cabeça de Li rola para o lado e ele parece tentar respirar penosamente, como se sua garganta estivesse tapada. Não penso duas vezes.

* * *

Não sei mesmo o que houve. Desta vez tudo dá certo. Li Shaoran esteve clinicamente morto durante cerca de dez minutos, todos o viram morto, só faltou o legista carimbar seu atestado. Ele está dormindo agora, seu tutor vai ficar aqui.

Não sei o que Saiyame tem a ver com isso. Perto dele, todas as coisas mais estranhas têm acontecido.

Tomoyo está pedindo desculpas para Saiyame, por ter gritado com ele. Eles riem, apesar de tudo, e de repente se abraçam, como velhos amigos, como se fosse um reencontro, ou uma despedida. Voltamos para casa. É metade da madrugada, e no caminho acabo ganhando uma folga extra. Nada mal para quem teve de se lembrar até do que nem estudou. Tenho muitas coisas para perguntar, mas acho que tenho tempo de fazer isso depois...

O carro nos deixa na porta daquela casa antiga em que Saiyame vive. Enfim sós, eu lhe digo, tentando passar um braço em torno de sua cintura. Ele se esquiva e entra. Talvez esta seja a minha chance. Nada mais vai me atrapalhar. Mal o acompanho e já escuto o baque da porta do banheiro fechando e barulho de água correndo. Eu estava com sono quando saí, mas voltar ao hospital me faz perder o sono, e me ver sozinho com Saiyame... Definitivamente, esta cama é grande demais para estar sozinho nela. Sinto um frio no fundo do estômago...

Estou ficando louco, o odeio a ponto de ter náuseas, mas o desejo, e nem sei o que me atrai, porque não consigo deixar de imaginá-lo sem graça, seu olhar não tem a expressão faminta que eu gostaria que tivesse, nem parece ter um mínimo de ardor para não me fazer dormir imediatamente quando eu estiver com ele na cama. Talvez seja apenas a vontade de fazer algo para atingí-lo, e tanta frieza, nada resiste a este tipo de humilhação, ninguém sai inteiro de algo assim. Só quero me aproveitar dele, para colocá-lo em seu lugar... Mostrar quem manda aqui. Penso por um instante naquela história aterrorizante que ele me contou. Bobagens. É apenas uma história.

Do corredor escuto a porta abrindo. Está vestido quando entro. Está terminando de ajeitar sua camiseta larga e surrada, com os cabelos molhados, os cachos desfeitos e seu cabelo é mais longo do que sempre me pareceu.

"Era o que você queria? O que aconteceu com Li?..."

Ele olha com a mesma expressão de tolerância e raiva contida desta tarde, os olhos faiscando, mas o rosto sempre inexpressivo. Quando vou ver esses olhos brilharem de desejo por mim?

"Meça suas palavras." – Ele fecha aquela bolsa que está sobre a cadeira. Pega-a na mão e vai. Não é possível que ele vai me deixar falando só novamente...!

"Então me diga onde você estava!"

"Eu estava com ele. Ele estava chamando a quinta carta." - Essa frieza dura e aguda, esse desprezo... Volta-se e fica olhando para mim por um tempo interminável. - "Quase eu não cheguei lá a tempo de levá-lo para o hospital. Muito obrigado por ficar no meu caminho... Hisashi." - Saiyame se encolhe quando tento me aproximar dele, se retrai com asco... - "Eu não vou agradecer por tê-lo salvo, pois a culpa foi sua em grande parte das coisas terem ficado desse jeito. Eu disse para não se envolver nos meus assuntos."

O casaco está na outra mão. Ele está indo embora?

"Que carta?"

Talvez sentindo que havia falado demais, ele evita meu olhar e segue em frente.

"... Me responda!! De que carta você está falando? Não me diga que vocês estavam mesmo fazendo aquele ritual?!"

Seguro-o com força pelo braço, jogo sua bolsa no chão e em troca ganho um empurrão nada delicado, sua mão se fecha na malha preta do blusão que uso e Saiyame tenta de qualquer jeito evitar que eu me aproxime dele. Me manda ficar feliz, ele está indo embora. É tudo o que diz, até quando grito com ele, despejo um autêntico balde de ofensas sobre esse garoto, coisas que fazem com que eu me sinta arrependido no mesmo instante. Meu pescoço volta a arder... Mando que fique aqui, que não dê um único passo para fora desta casa sem que eu saiba, e ao dizer isso, ele parece ficar realmente furioso, mais do que com o espelho, mais do que nunca. Me empurra com mais força ainda e caio no chão escuro do corredor iluminado apenas pela porta aberta do quarto. Ele pára quase encima de mim, e trocamos um olhar de puro ódio:

"O que raios vocês estavam fazendo? Ele poderia ter morrido e..."

"E a culpa teria sido sua, Hisashi Wakai."

"Minha?"

"Não volte a tentar se envolver nos meus assuntos. Eles não lhe dizem respeito. Nada do que eu faço ou deixo de fazer lhe diz respeito. Eu não vou fazer nada do que você quer. Você não é meu dono e não é nada para mim. Escute bem: você não é o meu dono."

"Eu posso ser bem mais... Você sabe o que eu quero."

"Eu já disse que eu não sei o que você quer de mim!" - Então, ele chuta as minhas cosstelas, uma única vez, mas com uma força que poderia tê-las quebrado. Fico tempo suficiente no chão, sem ar, sem conseguir pensar além da dor nos meus ossos. Garoto atrevido, quem pensa que é?... Eu deveria mesmo ter quebrado a sua cara naquele dia!

Saiyame fica olhando para mim, nossos olhos se encontrando nessa penumbra. O ar está pesado em torno de nós. Ele pode me matar agora, ninguém vai escutar nada, estamos sozinhos e deve saber que ninguém sentirá a minha falta. Agora eu existo para você, pergunto.

"Nem você e nem ninguém."

Ele leva as mãos para a cabeça, de repente, cobrindo os olhos, cerrando os punhos pálidos com força, e finalmente consigo me sentar, sentindo os machucados em meu pescoço, mesmo que já tenham cicatrizado desde a tarde, apertando firme onde ele me chutou, com medo de estar machucado de verdade. Saiyame está tremendo. Tremendo muito mesmo, está me assustando de novo, já vi casos de loucura de quase todo tipo, mas ele, apesar de se comportar como um e não ser, consegue ser o pior. Está arquejando com força, e tenta pegar a bolsa no chão, mas cai de joelhos perto dela, cobrindo os olhos. Vejo o mesmo Saiyame que mantém a frieza inabalada sair de si, mais do que quando tirei seu gorro naquela tarde, caindo em soluços incontroláveis, tremendo muito, irreconhecível, e com os mesmos punhos cerrados que ele aperta contra suas têmporas, ele esmurra o chão, num gesto que me faz lembrar o da história que ele me contou. O faz com uma força que eu não achei que tivesse, mesmo depois do chute, e os tacos pretos e amarelos do piso estalam com os golpes e me parece que o chão estremece todo perto de nós, as pontas de madeira saltam para fora, não adianta que o mande parar, não me ouve, só pára quando sua mão vai certeira e acho que de propósito encima de uma das farpas duras e grossas.

Se estiver de frente para um caso de loucura, é o pior que já vi em todos os anos de ala psiquiátrica que tenho. A lógica me manda não interferir, ele pode me matar com as mãos nuas, eu sei. É só um garoto, são olhos de um garoto que olham para o sangue no chão, para as próprias mãos sujas e feridas. Ele ainda está chorando, fazendo de conta que não sabe que estou aqui, até que respira fundo e estica as costas, seus cabelos compridos caindo sobre seu rosto, de uma maneira selvagem, esfrega o dorso das mãos nos olhos, e pára por um momento, olhando para as palmas de novo, e as esfrega em sua camiseta, como a tentar limpa-las, sem nenhum sinal de sentir dor...

Estou certamente muito chocado e com os olhos arregalados.

"Ele vai ficar bem, não vai?"

"Quem?"

"Li. Sakura não ia ficar feliz se ele se machucasse fazendo aquilo."

Mas Sakura está morta, penso apenas comigo... Sua cabeça está baixa, o queixo tocando o peito estreito e arquejante.

"Você a conheceu?" – Pergunto, quando a dor melhora, e escoro as costas contra a parede, cujo papel está soltando, e tem um contato úmido e frio, através da malha.

Ele ergue o rosto transtornado e faz que sim.

"E de que carta você estava falando?"

"Cartas selvagens..." – Ele desvia os olhos amarelos e tomba o corpo para o lado, sentando-se não mais sobre os tornozelos. – "Era assim que Lead as chamava."
 
 
 
 
 
 

Assim, a história recomeça, e Hisashi ainda não entende o que uma história de assustar crianças pode ter a ver com as coisas que ele não consegue explicar, e que invadem sua vida, desde quando conheceu Saiyame:

Quando Lead jogou a água no chão, Cerberus viu de perto, e sem poder interferir, exatamente cada passo macabro da transformação que arrancaria aquela criança de uma existência humana. Ela teve seu corpo inerte de fraqueza jogado no chão, e o mestre ajoelhou-se ao seu lado, e colocou um dos joelhos sobre seu pescoço, não apertando, mas apenas a segurando, contendo em parte seu murmúrio e com uma das mãos, conteve os joelhos do menino, para que não esperneasse. Então ele tirou o punhal virgem de dentro de um das dobras da veste azul de cerimonial e antes que pudesse ver aquilo, como se também não lhe fosse uma dor estranha, o servo fechou fortemente os olhos e tapou os ouvidos, mas se sentindo vibrar por dentro, aqueles gritos parecendo um dia terem sido os seus. Sabia que o Mestre abria a sangue frio o peito da criança, a despeito de seus gritos e sua dor, sempre lhe sorrindo, com aquela doçura sádica e maníaca. Quando terminou de arrancar seu coração, ela havia acabado de morrer, mas seu corpinho ainda tremia em espasmos e dos olhos arregalados e apavorados, finalmente viam-se lágrimas, e Lead chamou Cerberus e o mandou abrir a caixa que os estivadores haviam trazido. Ele saiu de sua tontura somente o bastante para fazer isso, e deu de encontro com um bloco de gelo em forma de ponta, inteiramente branco, pouco mais longo que seu braço, e era lindo, azul e furta cor, nunca vira nada assim, era frio de uma maneira estranha e toca-lo era doloroso, doía em seus dedos de menino, quando o pôs nas mãos ensangüentadas do Mestre. Ele quebrou-o sobre o chão e no lugar do coração arrancado, depositou um pedaço, e Cerberus escutou o que ele cantava, baixo como uma canção de ninar:

"...Quod non capis , quod non vides... Animosa firmat fides... Praeter rerum ordinem... A sumente non concisus... Non confractus, non divisus... Integer accipitur... Nulla rei fit scissura... Signi tantum fit fractura... Qua nec status, nec statura... Signati minuitur..." *

Estas palavras o fizeram arrepiar-se, reconhecendo a primeira parte das preces de conjuração e lealdade do novo servo. Então era assim que se construía a lealdade de um servo? Com aquelas estranhas e antigas palavras em latim? O Mestre também arrancou os olhos do menininho, depois de fechar do melhor modo que pôde, o peito aberto, o sangue espalhando-se na seda do traje de cerimonial e no chão, e enquanto escorria pelas pedras, a medida daquelas palavras, não se infiltrava nelas, mas corria com vontade própria, e desenhava o selo que o designava, a lua e os círculos concêntricos. No lugar de suas órbitas vazias, Lead deixou um pedaço de gelo.

Neste momento, Cerberus sentiu que mais uma criança nascia para os braços das trevas, e quando o Mestre disse seu nome, a boca do menininho abriu-se num esgar de dor, mesmo estando morto, e um grito sem som irrompeu por toda parte, ensurdecedor, e desprovido de qualquer resquício de uma alma humana. Cerberus engoliu em seco, pois sabia que não estava mais só naquela prisão. Lead trouxe de entre as dobras de sua túnica as cartas que dariam ao novo servo a natureza que lhe cabia. A carta da Lua e a carta do Gelo. Quando as impostou, erguendo-as sobre o corpo do menino e apontando para elas com o punhal sujo se sangue, o grito silenciou imediatamente, então, pareceu apenas que ele estivesse dormindo profundamente, até que abriu os olhos.

Quando Yue – Era este o nome que o Mestre havia lhe dado – abriu os olhos, já não chorava mais, e nem sentia dor. Esfregou os olhos como as crianças fazem quando estão com sono, e se sentou. Estava imundo e com toda a movimentação, os farrapos não estavam mais o vestindo. Ficou um longo tempo olhando para Lead, até seu lábio começar a virar e ele começou a chorar, assustado, como qualquer criança humana faria, naquele lugar escuro e fétido.

Ele riu e mandou que Cerberus cuidasse de Yue e o educasse.

Sem poder recusar, ele obedeceu, e ver o que parecia ser outra criança por perto deve ter acalmado mais o medo de Yue, seu choro aplacou-se um pouco quando foi erguido no colo do outro servo, uma vez que era pequeno demais para subir as escadas para fora do porão. Cerberus perguntava-se para que outro servo, lembrou-se de sua própria rebeldia e temeu por sua vida. Mas obedeceu.

Levou-o para a criada mais velha, que cuidara dele em silêncio e ainda deste modo ela banhou Yue e o vestiu naquelas roupinhas de cambraia, e quando Cerberus o pôs na cama, ele já estava dormindo.

Sem saber como se cuidava de uma criança, mesmo humana, sem que o Mestre houvesse vindo falar-lhe depois da cerimônia, e assustado demais com tudo o que vira, Cerberus não dormiu naquela noite, e nem teve fome. O pequeno Yue acordava às vezes, assustado, chorando, pedindo para voltar para casa, seus olhos inumanos, agora azuis e muito claros, por vezes púrpura, outras, quase brancos, sempre rasos de lágrimas. Cerberus se sentiu tão desesperado com aquilo que quase chorou junto com seu irmãozinho... Irmão. Palavra estranha.

Ele o pôs na sua própria cama, que ficava do lado mais claro do quarto, bem ao lado da janela gradeada, iluminada pelo luar, e lá Yue parecia acalmar-se. Por muito tempo as noites eram todas muito parecidas com a primeira. Cerberus tinha medo que o Mestre o repreendesse por deixa-lo chorar, por este motivo às vezes dormia na mesma cama que Yue, ou deixava que ele viesse com seus passinhos apressados pelo quarto, se enfiar embaixo as suas cobertas, com medo de escuro.

Ele ainda era tão pequeno que demorou meses até aprender a chamar o nome de Cerberus sem errar, tinha medo de Lead e não sabia se vestir sozinho. Certa noite ele dormiu e Cerberus escutou a porta de seu quarto se abrindo, a voz de Lead o chamou e ele foi.

O levou até seu próprio quarto e quando Cerberus entrou, sobre a cama do Mestre havia várias cartas espalhadas. Já havia visto algumas delas antes, mas não assim, todas juntas. Duas estavam nas mãos de Lead e ele as entregou ao servo. Mandou que as guardasse, que quando chegasse o momento certo, teria de rasga-las. Era a carta do Fogo e a carta da Terra, e ele disse mais: que havia sido com aquelas duas que ele dera o poder que Cerberus um dia descobriria em si. Apontou para as outras cartas sobre a colcha de veludo e disse mais para si mesmo que nunca deveria te dado aquele primeiro passo, que a primeira carta que havia conquistado havia sido a da Escuridão, e que depois dela havia conquistado mais seis para ilumina-la e tentar não se perder na escuridão de sua magia. Conquistou a carta do Sol, que ele rasgou quando criou Cerberus, e a da Lua, que não rasgou quando criou Yue. Depois, vieram as cartas do Fogo e do Gelo. Da Terra e da Água. Por último havia a carta da Justiça, e esta ele encerrara dentro de um livro, cujo meio das folhas havia sido recortado de modo a guardar a carta ali. Aquela, ele disse, era a mais perigosa, e fora ela que viera ao seu encontro. As outras, ele disse, a cada uma que era conquistada, uma parte de sua alma era rasgada fora, e isso lhe causava uma dor imensa e a cada vez quase o matava.

Mas o poder que adquiria a cada conquista o seduzia cada vez mais até o ponto que estava, um ponto que não poderia mais retornar, havia dado um passo sem volta para dentro de um círculo perigoso chamado magia. Havia muito mais de apenas sete cartas, não havia mais o que ser conquistado ali, e mesmo assim, Lead confessou, não era o bastante.

Foi a primeira vez que Cerberus viu-o falar-lhe sem sorrir.
 
 
 
 
 
 

CONTINUA

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*(...)Aquilo que tu não vês,
Pela fé, que o afirmas, crês,
Superando a natureza
Não o parte quem celebra,
Não o rompe quem o quebra,
Mas inteiro é recebido.
O corpo não é partido;
Só o símbolo é rompido.
Mas não é diminuído,
Não se muda o que contém.(...)



Capítulo 3
Meu Destino é Pecar...
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