Meu Destino é Pecar

Astasia
 
 

Capítulo 03

"Então..." – Minha costela lateja e estou cansado. – "É isso o que Li também pretende? Ele acredita que se metendo com essas coisas ele vai conseguir esse tal poder?"

Saiyame continua no mesmo lugar, no chão, seus cabelos enxutos e soltos têm volume e os cachos têm formas espiraladas.

"Isso é loucura, Saiyame." – Seguro o riso, ele realmente acredita nisso? – "Isso são histórias de assustar crianças, entende? Esse tipo de coisa não existe. Li deve estar nervoso, não sei... deve estar cansado, doente..."

Ele não argumenta, levanta e vai pelas escadas, sem demonstrar qualquer sinal de ter passado a noite em claro. Faço um verdadeiro esforço para me levantar, mas antes de poder chegar na metade do caminho, escuto a porta da frente bater. Droga, eu estou todo roxo... Estou com essa história na minha cabeça, e ela é tão absurda quanto o que ele insinua que houve na noite passada. Quer dizer então... Que a alma de Li Shaoran teve uma parte rasgada fora em troca de poder? Como vou poder acreditar nisso? Se pelo menos eu entendesse o que ele quis dizer sobre a garota morta não gostar que Li se machucasse...

* * * *

Resolvo segui-lo. Pela rua, pelo metrô, por metade da cidade. Ele vai bem longe em busca de suas confusões... Nem consigo lembrar se fechei a porta da casa.

Agora, estamos num bairro meio antiquado, casas, grandes quintais, árvores tão amarelas quanto o céu ao anoitecer neste fim de primavera, o outono chegando, e o trabalho de Saiyame, na casa no meio do quarteirão, vejo numa distância segura, é varrer as folhas caídas. Se sabe que o estou vigiando (e nem eu sei explicar isso), finge melhor do que eu. Atravessa a rua, passa mais perto de onde estou, mas nem olha nessa direção. Sua camiseta manchada passa desapercebida debaixo do casaco. Nada disto tem cabimento. Quem vive nesta casa? Um homem abre a porta e fala com ele. Se conhecem? Saiyame dá a volta por fora da casa, e refaz o mesmo trabalho ali também. Por que perco meu tempo com ele, raios?...

"Bom dia."

Tenho vontade de me atirar no primeiro buraco que achar no chão. O dono da casa acaba de falar comigo... Nada poderia ser pior! Pareço um indigente, metido nessa malha velha, cabelo solto e com olheiras que não quero nem pensar. Espero que ele não chame a polícia!

"Você é amigo de Saiyame, o garoto que varre as folhas?" – Ele insiste. Isto está ficando constrangedor. É um jovem senhor, muito alto e de óculos. Se não for um professor, me enganou perfeitamente.

"Ah... eu... Mais ou menos." – Respondo, tentando pensar em algo para explicar caso ele tenha me visto vigiando Saiyame.

"Bom, acabei de passar o café. Me acompanha? Você parece estar acordado há muito tempo..." – E ele vai calmamente de volta para a porta da casa, esperando que eu o siga. – "Desculpe se sou precipitado. Se você é amigo de Saiyame, não vejo problemas em convida-lo."

"Mas eu..." – Estou ficando intrigado com isso. Esse tipo de coisa não anda acontecendo, ninguém tem tanta confiança em quem nunca viu antes!

"Você estava aí o tempo todo, desde quando ele chegou aqui. Ele acabou de me dizer que você gosta muito de café amargo. E eu tenho um bule cheio na cozinha."

* * * *

Ele é um professor, na verdade, é o atual reitor de uma universidade da qual tive o prazer de ser expulso, alguns anos atrás e sempre erra na quantidade de café que faz de manhã, diz que ainda não se acostumou a estar sozinho, mesmo depois de dez anos. Saiyame lhe faz companhia, limpa o jardim, e principalmente, o senhor Fujitaka – Assim ele se chama – diz que o garoto tem a qualidade de saber ouvir, e para um homem de sua idade, é sempre bom ter com quem conversar. Ele é viúvo e tem dois filhos, pede desculpas e corrige: uma filha, seu filho está morto há alguns anos. Os retratos que ele me mostra, numa mesa do corredor, são de uma mulher lindíssima, que era sua esposa, Nadeshiko – Curiosamente parecida com Tomoyo, mas de uma forma mais suave, quase diáfana – e ao lado, há o retrato de uma moça de sorriso idêntico, que imagino que seja sua filha. É uma mocinha de quinze anos, vestido cor-de-rosa e laço no cabelo castanho claro. Não me é estranha de todo, mas tenho certeza de que nunca a vi antes. Devo estar apenas cansado, o café não ajudou muito, estou mesmo com sono...

Do lado de fora, escuto a voz grave de Saiyame chamando pelo senhor Fujitaka. Ele me larga aqui sozinho e me manda ficar a vontade. Muito fácil fazer isso, esse homem nunca me viu antes e já sei de toda sua vida e obra, deve mesmo precisar ter com quem conversar... Ninguém melhor do que a lesma silenciosa do gorro preto...!

Perco um tempo olhando para as fotografias de Nadeshiko nas paredes, as fotografias da moça filha de Fujitaka, com aquelas saias quase indecentes e deliciosas de líder de torcida, quimonos de festa... Hmmm, eu acho que gostaria de ser... Amigo dela... Enquanto não consigo um minuto a sós e sem tantas emoções (a emoção está roxa e violeta no lado da minha costela) com Saiyame. Escuto passos de chinelas na escada. Ninguém. Escuto os dois conversando lá fora. Passos de novo, já no corredor, viro e dou com uma garota alta e de pijamas, que está de costas para mim, olhando pela janela, que é de onde vem o som da conversa. Talvez eu esteja com sorte. Passo as mãos pelo cabelo, tentando parecer apresentável e capricho num "bom dia" que nunca falha. Ela olha e sorri. É a mesma garota que está nas fotografias de Fujitaka e é bem mais bonita pessoalmente, além de ter olhos verdes, bem mais claros que os meus. Vejo que seu pijama está sujo, o peito está todo manchado. Já não escuto nada do que vem do lado de fora da casa, e nem escuto o que vem de dentro, nem minha respiração e nem mais os passos dela no chão, que se vira e vai andando pela curva do corredor, e novamente este silêncio me assusta, e por mais que eu chame, ela não olha, até sumir por uma porta aberta. Tento ir atrás, e tudo que diz que o resto do mundo não acabou retorna junto com a voz da lesma de gorro. Era ele quem estava fazendo isso de novo? Como faz isso? Ele vem pelo corredor junto do senhor Fujitaka, e me diz secamente que temos que ir embora agora, como se eu fosse o pirralho desta história. Se não estivéssemos na frente desse homem, eu me vingaria do chute desta madrugada agora mesmo.

"Está pálido... Aconteceu alguma coisa?"

"Ah, não..." – Lembro do que acabei de ver, a moça do pijama sujo. Eram manchas vermelhas e escuras. Seria sangue? Ela estava machucada ou aquilo foi algum tipo de brincadeira? – "Onde está sua filha?" – Aponto para o retrato da líder de torcida. Que pernas... Atrás de Fujitaka, Saiyame perde a pouca cor que tem e fica quase tão branco quanto a gola da camiseta.

O dono da casa fica constrangido com a pergunta, e não adianta pedir desculpas, o mal está feito. Ele não me diz onde ela está ou o que há com ela, mas me diz como se chama, o bastante para que todas as respostas apareçam na minha cabeça como sendo as mais óbvias e eu me sinto um completo idiota de não ter entendido antes o que estava havendo aqui e a impressão de já ter visto o rosto dessa moça antes.

"Sakura."

* * * *

Não consigo ter mais nenhum único bom pensamento sobre Saiyame, seja lá quem ele for (e nem me interessa mais), mas fico tão excitado imaginando que talvez ele esteja envolvido na morte dessa garota que eu poderia agarra-lo a força a qualquer momento. Seduzi-lo é um pensamento mais vital do que sobreviver agora. Por que eu estava olhando para as pernas de uma líder de torcida assassinada? Os mistérios desse jeans surrado que ele veste são muito mais fascinantes. E pensar que nunca pude ter chance nem de olhar seus ombros... Me delicio olhando-o com redobrada atenção por todo o dia, nas vezes que vejo-o passar de um lado a outro do corredor, arrumando essas tralhas velhas, e eu tentando imaginar um motivo para ele se aproximar insistentemente de todos que tinham a ver com Sakura Kinomoto. Então, aquele senhor amável era o senhor Kinomoto que expulsou Touya de casa, e, no entanto aceita falar com estranhos e dividir seu café com eles? Contrastes. Tanto faz, só não quero pensar que ele seja um tarado e pôs as mãos nas carnes brancas de Saiyame (imagino que ele tenha uma palidez insípida, imagino-o totalmente insípido e o vejo sem graça nenhuma, mas...) antes de mim. Afinal, estas carnes são uma questão de honra, de vingança... E de auto-estima.

Quatro horas da tarde, estou jogado na cama dele, desde quando voltamos daquela casa estranha, onde delirei ter visto um fantasma. Hahaha, essa foi boa. Estou vendo fantasmas. Nessa nem Li vai acreditar. Devo estar impressionado com aquela história do bruxo e das cartas e com o fato de que talvez Li tenha feito mesmo o tal ritual, e com isso, seja lá o que tenha acontecido, seu coração ficou parado por dez minutos. Mas ele estava morto, eu vi, quase fritei seu coração... Em meia hora vai ser a hora das visitas, e ainda está vivo, caso contrário já teria notícias. Espero que esteja bem vivo. Temos muito para conversar.

* * * *

Me deparo com todas as coisas que não gosto de ver num hospital, quando chego lá e entre elas está Saiyame e aquele gorro inseparável. Prefiro-o de cabelos soltos, mas se não quer tirar essa coisa... Nada a dizer, e perguntar é inútil, então, quero estar por perto, quem sabe a sorte não volta a me sorrir e ele resolva notar que tenho belos olhos?

Tomoyo entra a princípio discretamente na sala de espera, justamente quando já havíamos nos levantado para irmos para o quarto. Quando vê Saiyame, seu rosto se ilumina e ela sorri largamente. Impressão minha ou todos são um pouco apaixonados por essa lesma? Ela diz que "quer saber tudo". Isto está ficando sério, ele está corando, seus olhos estão com um brilho que acho que me faz ter inveja de Tomoyo. Manda que vá primeiro falar com Li, a sós, e quando Saiyame já está quase entrando no quarto, tenho a impressão de ver Tomoyo dando pulinhos. Não é possível, estão dividindo segredos? E eu, morando na mesma casa, só ganhei um belo chute, literalmente??

Não posso ir atrás, Tomoyo me segura, puxando a manga de minha camisa, e me faz um sinal para esperar. Se eu não fosse tão bem pago... Mas é bom vê-la assim, travessa como uma colegial, isso lhe dá encanto, não sei como Li não se apaixonou por ela. Talvez eu me apaixonasse por Tomoyo. Nem parece que ela tem um risco em cada pulso, que quase cortou seus tendões, e isso há relativamente pouco tempo. Não sei se foi um milagre ou se lhe faltavam amigos como Saiyame e...

"Venha, vamos olhar!" – Ela me solta e vai para frente do quarto, algumas portas adiante.

"Você vai mesmo fazer isso?"

"Oh, Hisashi, eu sempre quis vê-los juntos!" – Ela olha pela fresta da porta encostada, falando num sussurro. Então, este é o segredo dessa garota de rosto inocente? – "Saiyame tem um sorriso lindo, você não acha?"

"Quer dizer..." – Tenho e preciso ser indiscreto agora, é mais forte do que eu! – "... que você é do tipo que gosta de assistir?"

Ela faz que sim animadamente.

"Mas só o Li."- E acrescenta, depois de um tempo, e então, ela se mostra muito séria quando o diz: - "Desde que ele começou a namorar firme com a Sakura."

Realmente esta foi a grande revelação desta tarde. Estou todo arrepiado.

Li está sentado na cama, soro, eletro, essas coisas, ao redor. Saiyame está parado ao lado dele, procurando alguma coisa nos bolsos de dentro de seu casaco, acha, e entrega para Li. É uma coisa estreita e longa, rígida e escura. Li fica por muito tempo olhando, o bastante para que eu veja que parece um cartão, ou uma carta, feita de couro, com uns arabescos estranhos na face que podemos ver daqui.

"Você precisa escrever seu nome nela."

"Como você sabe?" – Li ergue os olhos para ele, daquela mesma maneira dura e certeira.

"Todos dentro do círculo sabem disso. Deu um nome a ela, falta dizer-lhe que ela lhe pertence."- Saiyame sorri, sentando-se ao lado dele, apontando a carta. – "Do mesmo jeito que já escreveu seu nome nas outras."

"Ainda não escrevi. Faltam as duas últimas. Como sabia o que eu ia fazer? Não consigo sentir que você pertença ao círculo."

"Eu só quis ajudar." – Ele diz com simplicidade, encolhendo os ombros. – "Vou estar lá também quando conquistar as duas últimas. Sabe quais poderão ser?"

"Não." – Ele guarda a carta debaixo do travesseiro. – "A energia está dispersa desde que as outras foram destruídas, por isso preciso delas. Que coisa, não o conheço e você me ajuda... Tomoyo..."

"Não se preocupe, eu vou estar lá."

"Você tem coragem." – Li olha para ele quase daquela mesma forma calorosa de antes, na tarde do Café. – "Não se impressionou com nada daquilo, olhar para a alma da carta da luz já enlouqueceu muitos magos, e você..."

"Não pense mais nisso. O mago é você, consegue quebrar as vidraças sem toca-las." – Riem juntos. Li, depois de algum tempo de silêncio, menos soturno que no começo, diz que assim que tiver alta, vai cuidar para que nenhuma vidraça se quebre perto dele. Tudo isso é tão estranho. – "Então seja menos teimoso e me deixe ajudar. Nunca pedi nada, e nem peço por mim, é por você e por Tomoyo."

É estranho escutar a voz forte de Saiyame falar assim com Li, enquanto ele distraidamente toca seus cachos que escapam do gorro, olhando atentamente para seu rosto arredondado, assentindo a cada palavra, cada vez mais perto. Vou gritar de raiva e invadir esse maldito quarto se Li conseguir beijar Saiyame antes de mim! Dane-se a discrição clássica dos enfermeiros, vou ter um ataque agora mesmo!

Estou inconformado e enxergando tudo em vermelho. Tomoyo está cobrindo a boca fortemente com as mãos, para não rir alto. Não acredito, ele vai se deixar beijar? A cada palavra Li fica mais perto, ainda que atento a cada uma:

"Há muito que fazer e muito pouco tempo para realizar tudo."

O rosto de Li está corado, e seus olhos não desviam dos de Saiyame. Vai beijar mesmo? Antes de mim? Jamais! Vou invadir esse quarto, vou parecer um maluco em caso de camisa de força, mas Li não vai beija-lo antes de mim...! Seus lábios esbarram os dele, mas Saiyame vira o rosto um pouco, hesitante, constrangido, seu rosto ficando corado como o de uma criança, e ele diz suavemente (um pouco demais para o meu gosto) que Li pare com isso. Os lábios dele tocam quase o canto de sua boca, por um longo tempo, e tenho a impressão que Tomoyo está comemorando, ou pelo menos com grande vontade de mostrar aos serventes do corredor como se faz uma dança da vitória...

É ela quem acaba de invadir o quarto, fazendo Saiyame dar um pulo da cama e Li quase enterrar a cabeça embaixo do travesseiro. Entre eles há um clima de constrangimento total, de encanto quebrado, não sei... Tomoyo parece feliz com o que viu, não sei como me sinto sabendo que ela tem esse tipo de perversão, ou uma maneira de estar perto de quem gosta. Como vou saber?, não tenho intimidade suficiente com nenhum deles para perguntar esse tipo de coisa.

"Vou ter alta amanhã. Não me amolem até que eu tenha saído deste maldito lugar." – Li é bem direto e sincero. Aliás, quando se trata da sua sinceridade, é uma virtude que beira o defeito. Está mais do que evidente que ele nos expulsaria a todos se pudesse. No seu peito, por baixo da camisa do pijama, os eletrodos monitoram seu coração. Se vai ter alta, isso é mais estranho ainda, sinal que nada há de errado com seu coração, e isso é totalmente absurdo, perto do que eu vi. – "Você aí..."

Está falando comigo. Paro bem do lado de Saiyame e olho bem na sua cara, ver se ele vai ter coragem de dissimular o que eu acabei de ver, e tenho certeza de que ele sabe disso. Nós sabemos muito bem o que está havendo aqui, não é, Saiyame?

"Hisashi, eu quero agradecer." – Seu tom se abranda, seus olhos, e ele segura a mão de Tomoyo, que está sobre seu colo, agora que ela se sentou ao seu lado, mas não onde Saiyame esteve um instante atrás. – "Você sabe do que eu estou falando. Eu vi que era você quem estava lá."

Tomoyo baixa os olhos na mesma hora, como se houvessem descoberto algum segredo seu. Será que ela não?...

"E ninguém me disse isso." – Li completa, e muda bruscamente de assunto. Passa a vista por mim, como se estivesse vendo alguma coisa que eu não pudesse e diz sem nenhuma cerimônia: - "Como está a sua costela?"

Não consigo dizer nada, nem sorrir, só estremecer. Como ele soube? Nenhum deles sabe e Saiyame não falou do assunto. Li às vezes parece aqueles adivinhos de feiras...

"Deve estar inteira, pela sua cara... Pare de me olhar assim e sente-se aí do lado. Maldito hospital... A comida é horrível, como você ficou aqui tanto tempo, Tomoyo?"

"Se eu me lembrasse, eu responderia."

"Droga... Vou fugir desse lugar agora mesmo, não estou sentindo nada." – Ele começa a arrancar os eletrodos, e tira sozinho o soro do braço.

"Você tem prática em passar por esse tipo de coisa, não tem?"

Li olha para mim quando digo isso. Ele é extremamente sério, as vezes seu jeito faz lembrar o do irmão da falecida Sakura, Touya, que estava na fotografia. Está explicado por que foi namorado dela na adolescência...

"É exatamente a quinta vez." – Responde, jogando um punhado de fios para o lado, afastando a coberta e pulando da cama. Parece indestrutível agora, e Saiyame e Tomoyo não parecem nem um pouco surpresos com isso, trocando um sorriso entre si, enquanto Li puxava suas roupas de dentro do armário do quarto. – "Droga, estou morrendo de fome..."

"Posso fazer alguma coisa, se formos para onde estou morando."

"Seria ótimo, tem café? Limão?"

"Sim, sim! Faça aqueles bolinhos, por favor, Saiyame!"

O que está havendo aqui? Eles dividem este segredo, estou de frente para todas as coisas mais estranhas que jamais imaginei e eles estão pensando em comida?

"Esperem aí!"- Digo, alto demais para um hospital, ou pelo menos para a postura de um enfermeiro.

Os três se voltam para mim. Somos todos adultos aqui – talvez com exceção de Saiyame, que parece ter fugido do colégio – porque eu tenho de ser o único que é normal e lógico aqui?

"Você teve morte clínica ontem a noite, por exatamente dez minutos e meio!" – Aponto para Li, sem querer ser nem um pouco educado e discreto. Estou a beira da loucura com estes três! – "Você: esteve por anos em uma depressão profunda, totalmente alienada, e por isso não se lembra do que aconteceu nesse meio tempo!" – Aponto para Tomoyo, que brinca inocentemente com a ponta de sua trança. – "E você..." – É a vez da lesma de gorro. Até a sua expressão ausente, alheia e fria me desconcerta a ponto de me excitar...! – "... você me falou sobre uma tal carta, um ritual, magia, e mais um monte de besteiras... e quer que eu acredite nisso!"

"Acredite no que quiser, realmente não me importo nem um pouco." – Ele é frio e categórico, exatamente como sempre foi comigo quando disse que não se importava.

"Ninguém vai me dar uma única explicação?"

"Para quê? Por que?" – É a vez de Li responder, enquanto ia para o banheiro, com as roupas na mão. – "Você não acredita mesmo...! E pode viver sem isso. Mas eu não." – E trancou a porta.

"E você, Tomoyo?" – Talvez ela seja mais sensata, talvez me dê uma resposta.

"Eu?" – Ela se levanta da cama, atravessando o quarto e parando bem na minha frente, olhando para cima para poder me encarar, e é bem direta ao fazer isso. Será que ela faz idéia da coragem que tem? Se não tivesse essa coragem, nem teria tentado se matar, ou teria saído daquele quarto, quando Li precisou.– "Eu não dei passo nenhum para dentro. Eu sempre estive do lado de fora, olhando e nada mais. Mas mesmo assim, não me lembro como..." – Ela arregaça as mangas do suéter rosa-pálido e me mostra seus braços, não as cicatrizes nos pulsos, mas os braços, eles são lisos e roliços, e sobre eles, há várias cicatrizes cruzadas, paralelas, que me fazem lembrar desta no meu pescoço, finas e brancas. – "... Nem sempre me manter afastada foi seguro." – E cobriu-os de novo. Saiyame não olha. Ele engole em seco e pede licença para esperar lá fora.

* * * *

Se não foram cinco internações, foram então vezes suficientes para Li ficar tão íntimo dos enfermeiros, serventes e da recepcionista, a ponto de ninguém perguntar onde ele estava indo, quando passou conosco para ir embora de lá, e simplesmente lhe dizerem "até logo".

Vamos inevitavelmente para a casa de Tomoyo. Lá, ela não demonstra mais aquela leveza de antes. Eu a fiz tentar se lembrar de algo doloroso, por seu olhar perdido, seu toque insistente através das roupas, sobre as cicatrizes nos braços, e isso me faz sentir culpado. Se ela entrar em mais um surto daqueles, pode ser que não volte a sair, de alguma forma Saiyame sabe disso e tenta ficar o mais possível perto dela, até quando ela nem se esforça de estar conosco e volta direto para seu quarto. Escuto algumas coisas se quebrando por lá, ela deve estar furiosa, mas se Saiyame tem mesmo a força com que me chutou, ele vai saber o que fazer.

"Então, você era namorado de Sakura? Você era namorado dela quando ela foi assassinada?"

Ele deixa o prato vazio de macarrão de lado, depois que termina. Estava com fome mesmo. Estamos sós na cozinha e Li parece de melhor humor depois da refeição.

"Você gosta mesmo de bisbilhotar a vida dos outros, não?" – Li olha com o sorriso amargo que aparece em seu rosto, quando fala do passado. – "É. Eu fui namorado dela. Namoramos por bastante tempo. E, mais do que estar com ela quando Sakura morreu, Hisashi... Eu a vi ser assassinada na minha frente, então não me venha com a sua curiosidade mórbida de gente desocupada, eu pretendo passar os próximos dez anos ainda sem dar uma palavra sobre o que eu vi naquela noite." – Sua voz é tão dura quanto seu olhar, ele não me intimida, mas a sua seriedade sim.

Dez anos sem falar sobre isso? Faço outras perguntas, ele é difícil, quase seco. Li diz que mentiu onde deveria, para nem a polícia soubesse da verdade. Verdade?, ele diz, a verdade é pior do que qualquer mentira, quando o assunto é a morte de Sakura. Finja, ele me diz, que Sakura gostaria que as coisas permanecessem assim, por sua morte e pela morte de Yukito.

"Quem era Yukito?"

"Amigo de Touya. Mais do que amigo, se é que me entende. Era muito fácil se apaixonar por ele: doce, amigo, gentil... Eu mesmo me apaixonei por ele." – Por que vou duvidar dessas palavras? Li fala de Yukito com o mesmo olhar perdido e perplexo de que fala de Sakura, a mesma seriedade. – "... Mas ele era... inumano o suficiente para não ter se aproveitado disso. Posso falar dele, mas não me pergunte quem o matou, eu nunca o direi, pois a mesma pessoa que matou Sakura, também o havia assassinado, três anos antes."

Cada palavra de Li me deixa mais curioso. Inumano? Ele quer dizer que Yukito não tinha sentimentos? Que ele conseguia ser um canalha pior do que eu? À minha pergunta, Li diz que Yukito "não era o que aparentava", e dissimulava isso muito bem, é tudo o que pode me dizer, o bastante para que a minha curiosidade se aplaque, mas o mínimo possível para que eu não me aproxime demais da verdade.

"E dar um passo rumo a verdade, do modo que você imagina, Hisashi, é dar um passo para dentro de um círculo. E você não pode sair, depois que entrar."

"É como um caso de amor, é isso?"

Ele ri e sacode a cabeça, ficando ligeiramente corado. Ele sabe que eu o vi tentar beijar Saiyame? Ele sabe o que é devotar sua vida a alguém, fico tentado a dizer o que vi na casa de Fujitaka Kinomoto, mas mesmo com tudo o que me diz, talvez ele não me acredite...

"De amor e de ódio." – Estica o braço e abre a mão como se fosse pegar o copo de água, mas ele está mais perto de mim do que dele. – "Amor pelo poder e ódio pelo que fazemos procurando por ele."

E bem na minha frente, a mesa estremece, a ponto que perceber isso embaixo de meus braços cruzados, e o copo desliza sobre ela, lento a princípio, depois, visivelmente, e chega exatamente na mão de Li Shaoran. Fico olhando para isso, de olhos arregalados. Cada dia perto deles é um susto maior que o outro. As palavras de Saiyame sobre o ritual já não parecem tão absurdas, estou com um mágico de circo na minha frente, e tão surpreso com esse copo andando sozinho na mesa que posso acreditar em qualquer coisa.

Ficamos num longo silêncio, enquanto ele bebe a água desse copo que vi deslizando no rumo de sua mão.

"A última vez que fiz isso foi há uns cinco anos, num bar em Hong Kong..."

"Saiyame me falou sobre um bruxo chinês, que conquistava cartas, e tinha dois escravos." – Jogo todas estas palavras de uma vez, estava engasgado com elas, e ver esse copo... Estou num estado de nervos estranho. Se eu fumasse, ia querer um cigarro agora.

"Eu sei do que ele está falando. O mago se chamava Lead, e era filho de um inglês. Os servos se chamavam Cerberus, o Leão dos Olhos Dourados e Yue, o Juiz."

"Sim, acho que sim."

"De alguma forma é a história da minha família. Estranho que ele a conheça." – Li pousa o copo na mesa, e risca com a ponta do dedo uma letra chinesa encima da madeira, com algumas gotas de água que estão derramadas sobre ela. – "Lead é um antepassado de minha família. O que Saiyame lhe contou?"

"Nada muito importante." – Levanto. Estou ficando num beco sem saída. Talvez Li não tenha gostado de saber que Saiyame me conta esta história, e eu me sinto forçado a ouvi-la, ansioso por saber mais, com aquelas cenas descritas ecoando na minha cabeça, palavra a palavra... – "A vida real é mais interessante."

"Você quer guardar isso só para você? Ouça então, o que ele lhe diz. Você tem assim uma parte de Saiyame que eu não tenho. E eu o odeio por ter isso dele, Hisashi." – Li é sincero aos extremos quando me diz isso, antes de levantar e pôr o prato na pia, e fala alto, para a criada, em chinês, que está no outro cômodo da cozinha da casa de Tomoyo.

Quase beijou Saiyame, por que ainda consegue se aborrecer por contar essa história para mim e não para ele? Está apaixonado? Bando de loucos...

* * * *

Aprendo rápido que olhar pelas frestas das portas pode ser útil para descobrir o que ninguém quer me dizer. Sinto meu estômago embrulhar quando penso no copo deslizando sobre a mesa, e junto isso à lembrança das histórias que Saiyame me conta, na sua voz forte e profunda, adulta demais para seu rosto de garoto, posso enlouquecer de tanta raiva... Me sinto frustrado, porque todos têm algo de Saiyame que me ocorre que jamais terei. Olhando pela fresta da porta, vejo Tomoyo chorando no seu colo, os dois sentados no chão...

"Eu não me lembro mais da voz dela... Por que não me lembro mais da voz dela? Eu não me lembro mais qual de nós era mais alta... Não me lembro nem de seu sorriso... Por que eu a estou esquecendo? Eu não quero esquece-la!"

"É o tempo. Somente isso. Você cresceu."- Saiyame é calmo como sempre, forte, ele fala de um jeito que nem eu teria como duvidar. Sua voz forte e baixa dá a impressão assustadora, protetoral, de que tudo vai dar certo...

"Mas eu a esqueci." – Tomoyo arqueja, esfregando os olhos, e esfregando os pulsos, como se sentisse as feridas. – "Eu tenho muito medo disso..."

"Não tem que ter medo. Você não se esqueceu de que a amou." – Ele afasta a franja de Tomoyo, que teima em cobrir seus olhos grandes e claros. Daqui eu posso ver as marcas das feridas nas palmas de suas mãos. Como num dia ele é capaz de fazer aquilo consigo mesmo e no outro se importar tanto com alguém, como se importa com Tomoyo agora?

"Ela se foi... Eu a amei muito, mas... Agora o que resta é um vazio tão grande. Saiyame, eu tenho tanto medo de..."

"De que tenha algo no meio desse vazio?..."

Ela arqueja, encarando-o, perturbada. Pisca várias vezes. É uma garota tão bonita, por que Li nunca a notou?

"Eu perdi Sakura tantas vezes, por tantas razões... Eu... eu nunca disse isso a ninguém, Saiyame, mas... Eu tentei morrer por ela. Eu não me lembro o que houve, mas eu me lembro que quis morrer por Sakura, e eu a perdi..." – Os olhos de Tomoyo estão secos, ela não derrama lágrima alguma quando diz isso.

"Eu sei. Eu sei que você quis morrer por ela..." – Saiyame passa suas mãos brancas sobre os braços de Tomoyo, por cima do suéter rosa que ela veste, ela se retrai e o olha com uma perplexidade que eu também sinto, ouvindo estas palavras. – "... Mas não queira viver por ela, agora, depois de tanto tempo. Viva pelas coisas que você ama. Você amava cantar..."

"Não. Eu não posso. Eu... esse vazio..."

"Você sente que está vazio mesmo?" – Ele afasta as mãos, cruzando-as sobre o peito. – "... Se antes você cantou porque a amava, cante então, quando amar novamente."

"Novamente?"

"Você não sobreviveu à toa, você sempre temeu a morte, mas sempre a desejou. Você pensa tanto na morte que não pensa em mais nada, não se permite isso." – Tomoyo se recosta de novo em seu colo, e fica quieta, escutando. – "Pare de pensar na morte, Tomoyo..."

"Eu tenho medo de pensar... em outras coisas. O fim de tudo parece tão próximo, isso me assusta... A fatalidade. É tudo tão fácil..."

"Difícil é crescer."

Ela sorri, com o rosto encostado sobre o ombro dele, seu rosto úmido, e os olhos vermelhos de chorar. Tomoyo diz que é isso o que sua mãe sempre lhe dizia. Depois de um tempo, os dois ali, como crianças com medo de escuro, Saiyame continua, com a voz e palavras de adulto que não combinam com ele:

"Tente dormir. Li está bem, agora. Não se preocupe com mais nada."

Ela faz que sim.

* * * *

Não posso mais ver isso.

Entendo cada vez menos.

Por que ele parece ser muito mais velho do que essa cara de fugitivo de colegial diz? Ele me disse que conheceu Sakura, por que não diz isso para nenhum dos outros?

Fico esperando que ele passe por mim no corredor, só assim consigo pará-lo, tenho de pegá-lo sempre de surpresa, ou ele me deixa falando sozinho... A cada palavra, fico mais angustiado, e ainda tenho o ódio de Li por uma coisa que não pedi, e nem é bem o que queria. Minha vida está a mais completa confusão, tudo o que eu tenho à minha frente agora é o meu desejo, estou obcecado, e não consigo pensar em algo muito além que querer toca-lo. Não me importa mais seu ar aborrecido quando me encontra, qualquer coisa, até seu ódio é melhor que sua indiferença, sua frieza me parte em mil pedaços, quando o levo pelo braço, como se levasse um boneco de pano, para um das muitas salas desta casa. Li não está aqui. Tomoyo não está aqui. Posso tentar beija-lo, mas consegue se esquivar. Escapa para outra sala, me olhando como se me jurasse de morte se eu tornasse a fazer isso. O que há com ele? Há algo de errado comigo? Eu sei que não sou de se jogar fora, tenho olhos lindos, o resto também, tenho experiência com essas coisas. Maldição, divido o quarto com ele, e nunca vi nem seus tornozelos!... Tento pegá-lo pelo braço, antes que ele escape pela porta, e fico na sua frente, correndo o risco de mais um empurrão e talvez mais um chute, mas qualquer coisa que ele me faça será alguma coisa. Me xingue, grite comigo, mas comigo. Não quero nem sonhar que Li o beijou antes de mim. Seus olhos passam do castanho claro que estavam agora, vejo pela luz que entra pelas cortinas brancas cerradas, nessa sala silenciosa e vazia, para um amarelo inteiriço e profundo, inflamado de raiva, quando me escuta dizer isso. Muito silencioso, ele faz menção de me afastar, tento segurar seus pulsos para que ele não escape de mim, mas se afasta mais, arquejando de raiva, seu peito subindo e descendo dentro da camisa, e mais uma vez Saiyame me faz aquela pergunta terrível:

"O que você quer de mim, senhor Wakai?" – Ele faz questão de me tratar nestes termos, para me colocar no meu lugar, mas somente o modo que me diz isso já é como um tapa. É tão mais bonito sem essa coisa escondendo seu cabelo, mas continua usando esse gorro, e eu nem consigo mais chamá-lo de lesma...

O que eu quero? Ah, você sabe o que eu quero, Saiyame. Se eu não conseguir, nunca mais vou ter coragem de me olhar num espelho, meu orgulho está ferido, nunca mais vou conseguir dormir sem ter que sonhar com a sua cara arredondada na minha frente... Por favor... Mas eu não peço por favor, não dou palavra nenhuma. Alguns passos e estou olhando bem no seu rosto. Temos quase a mesma altura, não é difícil encara-lo, embora esse olhar, essa frieza me intimidem. Ele estreita os olhos, mas não reage quando seguro sua mão, é estranho como sua pele é tão quente... Não é possível que não saiba o que quero. Não consigo e nem quero dizer, se ele não sabe, e ainda não adivinhou, um beijo na palma de sua mão talvez diga tudo isso. Minha língua desenha um círculo na sua palma, estou tão excitado ao fazer isso, que eu mesmo cerro os olhos, é um prazer tocar essa pele tão quente, tão branca. Se Saiyame tem sangue nas veias, até o tapa que mereço por meu atrevimento me parece, assim como os cortes que ele fez (não sei como) no meu pescoço, a mais erótica e excitante das carícias. Minha língua continua sobre sua pele, sinto o gosto salgado e delicado dela, vai ser absolutamente delicioso rolar pelo chão com Saiyame, posso ter um orgasmo até se ele esbarrar em meus joelhos, não sinto mais dor nenhuma em minhas costelas.

Sua mão está na minha, debaixo dos meus lábios, e eu me sinto tão cheio desse calor que poderia até achar que estou me apaixonando. Não agüento imaginar que Li conseguiu esbarrar nesses lábios tão delicados... Onde está o seu calor? Não sinto mais, é frio como a mão de um cadáver. É trêmula como a mão de alguém que experimenta uma dor muito grande ou um pânico legítimo, total. Minha excitação some quando olho nos seus olhos e tudo o que vejo é medo e horror, como se fossem olhos de vidro, e Saiyame não olha para mim como se me reconhecesse, e sim como se visse alguma coisa, alguém realmente assustador.

Sua mão está mais branca ainda quando escorrega da minha, seu rosto perde a cor totalmente, e ele treme tão violentamente que posso notar seu corpo todo sacudindo, mas muito diferentemente de ontem à noite, isso não é raiva, é medo. Puro medo. O que foi que eu fiz? Ele recua mais quando tento chegar mais perto, fechando a mão que eu havia beijado sobre o peito, cerrada, apertada com força, Seus olhos continuam claros, mas estão diferentes... O que eu fiz? Era atrevimento demais, mas o que podia fazer? Estou quase obcecado pela idéia de dormir com ele...! Sinto falta daquela raiva nos seus olhos... Essa estranheza com que me olha, recuando, abrindo os lábios para falar, baixinho, coisas que não consigo entender, eu me sinto um monstro, e nunca me senti assim antes, e sinto uma vergonha imensa do que fiz. Ele se afasta tanto de mim, seu corpo fino fica estremecendo, como se fosse uma náusea, um pavor... Então, ele fala mais alto, e eu sem entender, Saiyame está falando em chinês, está diferente de tudo o que já vi, suas costas se espremem contra a parede e tapa os ouvidos quando falo com ele, fala mais alto quase até gritar, essas coisas desesperadas em uma língua que não entendo, mas soando muito verdadeiras, um medo verdadeiro.

Não sei o que fazer, se teria que tentar acalma-lo, suas mãos compridas apertam a própria cabeça, chamo por seu nome, mas ele não ouve, e rola sua cabeça, agora descoberta, o cabelo revolto sobre o rosto, contra a parede, evitando meu olhar.

O gorro está no chão, e Saiyame não se preocupa se alguém olha para seu cabelo, ele não quer olhar para mim, e continua falando essas coisas de som duro, cheias de horror, sua testa se cobrindo de suor, como se estivesse a beira de um desmaio, mas nem consigo me aproximar, tenho medo de toca-lo e piorar as coisas.

Sua voz se torna apenas um fio, à medida que ele se encolhe, de um modo mais terrível do que quando tirei seu gorro, está irreconhecível, assustadíssimo, seus olhos arregalados evitam os meus, ele aperta a cabeça nas mãos, esfrega as têmporas e começa a se balançar, é uma cena horrível, as palavras traindo desespero... O que eu posso fazer? Seu desespero é tão horrível que não sei como calar isso. Isso é desespero? Posso dizer agora que nada do que vi foi desespero. Saiyame, deste jeito, na minha frente, balançando seu corpo nessa negativa, falando em chinês, selvagem e verdadeiro assim, é tudo o que há de mais lindo e assustador.

Não tenho tempo de ver como, mas Li entra nesta sala, sua calma se dissolvendo em ira, quando ele escuta por um segundo o que Saiyame está dizendo. Não sei que palavras são, mas lhe causam uma fúria tão grande que ele praticamente voa encima de mim, me agarra pelos colarinhos e pergunta o que eu fiz a Saiyame. Claro que não posso dizer que eu estava lambendo a palma de sua mão, e digo que não fiz nada. Nada pelo menos que justificasse o que temos à nossa frente, mas dizer isso não me impede de ser empurrado com força contra a parede, até que perco o fôlego, e não tenho mais como resistir a Li.

Ele me larga e vai para Saiyame, e tenta conter de alguma forma o balanço de seu corpo esguio, seu tremor incontrolável, o seu medo, e esse pavor que tomou conta dele, inexplicavelmente, faz com que empurre Li, com horror de ser tocado, fechando os olhos com força para que não olhar para nada, sem querer que nada e ninguém o tocasse, e nem as palavras de Li, na mesma língua, parecem fazer sentido para ele. É como uma fera. É exatamente e mais do que nunca como uma fera, com este cabelo louro solto nos ombros, o modo como tenta se defender de qualquer toque... Saiyame continua a ser uma fera até escapando de Li e correndo no rumo da porta.

Estou assustado. Não reconheço o Saiyame que acaba de passar quase ao meu lado, escapando para o corredor, que eu vejo atravessa-lo correndo, trombando com as paredes, tremendo tanto que é difícil até se manter de pé.

Sei para onde está indo. Não sei o que quer fazendo isso, mas Li vem comigo, alguma portas depois, para a que dá para o quarto da enfermeira que passa as noites com Tomoyo, que tem uma porta de comunicação entre os quartos, uma vez que o estrondo da porta do quarto dela se fechando já diz tudo: não adianta tentar entrar por lá. Passamos o dormitório e abro somente uma brecha para olharmos, não há tempo de brigar, e tudo acontece tão rápido que Tomoyo ainda está sentada na cama, no meio das cobertas brancas, olhando de um modo estranho e fixo para Saiyame.

Ele está com a cabeça baixa, imóvel, as costas coladas na porta, fazendo visivelmente muita força para que ninguém tornasse a abri-la. Continuamos muito calados, eu e Li, para que nenhum deles nos perceba. Melhor assim, quero saber o que está acontecendo...

Realmente não consigo compreender o que deve estar se passando com Tomoyo, vendo-o desse jeito, ela sempre o viu forte ao seu lado, como eu vi ainda há pouco, Saiyame a consolando com palavras adultas demais para seu rosto. Não consigo tirar os olhos dela, que joga a coberta para o lado, está vestida do mesmo jeito de antes, e parece muito séria, perplexa e meio horrorizada com o que acabou de invadir seu quarto.

"O que aconteceu?" – Ela pergunta baixo, sua voz bonita é só um eco, já que ele não responde. Tomoyo se inclina um pouco para frente, abaixando o rosto para tentar olhar no de Saiyame, escondido pelo cabelo solto. Não deveria pensar assim, mas talvez, como eu, Tomoyo também imagine que ele parece um anjo.

Ela chama por ele, mas ele parece estar muito longe... Longe demais. Já vi muita coisa, mas nunca um desespero tão grande. Acho que a culpa de alguma forma é minha e me sinto muito mal pelo que fiz. Queria ser menos orgulhoso a ponto de poder pedir desculpas, mas então... Saiyame cede e escorrega para o chão, abraçando os joelhos, tentando segurar esse tremor em si, segurar toda a mesma avalanche que o fez arrebentar o chão da casa na noite passada, e eu nem sei o que há com ele... Posso ver seu rosto daqui, está sem cor, e seus olhos estão arregalados, e quando seu tremor pára, depois de algum tempo, ele fica imóvel, Tomoyo se aproxima muito devagar, como se estivesse olhando para algo inacreditável. Também é inacreditável para mim... De repente, tanto que me assusto, os ombros dele sacodem num soluço convulso e silencioso, e ele finalmente olha para Tomoyo, bem para seu rosto perplexo, e dos seus olhos dourados e arregalados, descem, uma de cada vez, lágrimas muito grossas, e Saiyame fica imóvel, só os soluços o sacudindo de vez em quando, inerte, silencioso.

Tomoyo não diz nada, nem adiantaria, ele talvez não a escute, mas fica ao lado dele, segurando sua mão pálida. Como ela vai poder cuidar de alguém? Sempre teve alguém que cuidasse dela. No entanto, ela cumpre bem sua parte. Não sei como, Saiyame termina em sua cama, com a cabeça sobre o colo dela, que afaga seu cabelo louro e brinca com as mechas mais enroladas que caem em seus olhos, num silêncio absoluto e completo.

Ele chora por um longo tempo, em silêncio, imóvel, eu poderia dizer que está morto, mas na verdade ele dorme, agora.

Se ele tem algum sonho, ou pesadelo, o guarda muito bem até de si mesmo.
 
 

CONTINUA



Capítulo 4
Meu Destino é Pecar...
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