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BELLO MONTE, ECOETERNO
Hilmar Ilton Santana Ferreira - 1997
I ANTECEDENTES
-- Bom Dia, Senhor Bar�o Rejeabamo. N�s esper�vamos vosmec� para come�ar a
aparta��o e a ferra. O gado est� todo no curral, com a vaqueirada esperando.
Saudando o patr�o, Raimundo permitia-lhe a passagem com a montaria, deslocando um a um
os mour�es horizontais da cancela.
-- Muito bem, Raimundo. Vamos ao trabalho.
-- Como o Senhor sabe, patr�o, este ano a produ��o foi pequena. A seca destiorou
demais o gado. A perda n�o foi maior gra�as aos seus cuidados. Valeu muito a obra da
represa. A �gua tem dado pr� trazer at� este m�s de junho. Talvez d� para chegar at�
as trovoadas de outubro a dezembro. Tomara que 78 seja melhor que 77. Este ano foi duro. A
experi�ncia de Santa Luzia deu ruim: meio ano de seca. N�o choveu at� o dia de S�o
Jos�, o inverno vai ser ruim. T� sendo. Nem teve milho pro S�o Jo�o. Se o gado do
vizinho continuar bebendo aqui, sei n�o, viu! Pode n�o dar para as trovoadas.
-- Se preocupe n�o, Raimundo. O plantel de mais peso � o do Cel. Souza. � dele que
pode vir o maior consumo. Mas n�o vir�. Ele vai transferir parte de seu rebanho pr�s
terras do lado de Villa Nova da Rainha. Terras boas. Molhadas. Est�o sempre frescas. Mas
n�o negue adjut�rio a quem quer que seja, viu, Raimundo. S� com ajuda m�tua a gente
pode vencer as dificuldades.
-- T� bom, seu Bar�o, assim tem sido. Nosso pessoal tem ajudado o de l�. E sido
ajudado. N�o s� no campear do gado, que t� todo junto, aproveitando os pastos e as
ramas deste mund�o de terra, do oco do mundo. N�s temos ido buscar boi desgarrado at� a
dez l�guas de dist�ncia. J� aconteceu. Animal de uma das fazendas. Mas vai a vaqueirada
de todas. Uns ajudando os outros. Como eu dizia, n�o s� nas lidas da pecu�ria, mas
tamb�m tem havido ajuda, mutir�o nas tarefas da lavoura. Quando o inverno permite. At�
mesmo alguns escravos t�m participado. �s vezes sem a permiss�o do Senhor. Tem dado
muito rolo.
Enquanto conversavam patr�o e empregado, todos desempenhavam seu papel nas lides da
ferra e da aparta��o. E exerciam pioneiramente naquelas bandas e naqueles tempos a
rela��o da quinta . Os jovens animais eram contados em grupos de
cinco, dos quais quatro eram derrubados no la�o ou no bra�o dos agregados, e ferrados
com o ferro do Bar�o de Rejeabamo. O quinto n�o era ferrado. Raimundo ainda n�o tinha
ferro. S� quando fosse um fazendeiro. O quinto era dele. Os demais fazendeiros das
redondezas, tirante o Cel. Souza, ainda se valiam do trabalho escravo. Com preju�zos para
eles. J� que escravid�o
E vaqueiragem n�o iam bem. Vaqueiro gosta de liberdade, ch�o sem fronteiras.
Renova��o de horizontes. S� nas campeadas longas ele se realiza.
Ao fim da labuta, dia se findando, retirou-se o Bar�o. Inspecionara todo o rebanho.
Conversara sobre cada animal com Raimundo. Determinando provid�ncias novas e cobrando as
velhas. Os novos animais ferrados, batizados, tiveram suas fichas de controle inauguradas.
Aqueles que ficariam como reprodutores e matrizes. Os demais, t�o logo terminada a cria,
seriam passados adiante, junto com os idosos descartados. Ganhariam as estradas para as
terras grandes.
Raimundo quedou-se num canto, acocorado como pseudorelaxadamente costumava descansar.
Relaxou-se por inteiro, usufruindo em todas as c�lulas o repouso decorrente do cansa�o
produtivo e gratificante. Em sua mente em repouso iam-se formando id�ias, ju�zos,
racioc�nios sobre a sua vida e o seu meio. Esta falta de chuva bem que poderia ser
resolvida trazendo �gua para as planta��es. O patr�o lhe dizia da arte da irriga��o
na agricultura. A chuva a gente faz quando preciso. Mas de onde viria a �gua? Ora, do Rio
S�o Francisco, sempre cheio. Do Vaza Barris, bastando fazer barragens. Maiores que a
feita pelo patr�o. Com essas �guas a seca at� que n�o seria ruim. E por que os
patr�es n�o fazem isto? Nestas redondezas todas s� o Bar�o fez uma coisinha. Mesmo
assim, pequena e mais para o gado do que para as plantas. Toda essa coronelzada a� nada
fez. N�o seria o caso de o Imperador mandar fazer ou dar condi��es de fazer? A
produ��o seria enorme. O sofrimento menor. Feij�o, arroz, milho, verduras, frutas,
ficariam mais f�cil de conseguir. Mas tamb�m tinham que plantar mais estas plantas que
tanto d�o s� com as chuvinhas daqui. E que o povo s� faz usar sem repor. � o umbu. Eta
frutinha boa. Doce, umbuzada, tanta coisa boa. � a faveleira, com a semente boa de fazer
farinha rica. � verdade que tem uns espinhos danados e esta hist�ria dos frutos
estourarem a semente longe d� lugar a muito cuidado na colheita. E o juazeiro, bom pros
dentes, hein? Como h� coisas a serem feitas...Se houvesse uns dez homens como o Bom Jesus
Conselheiro trabalhando por estes sert�es...
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-- Senhor Meu Deus! Meu D. Sebasti�o! Meu Santo Antonio dos Mares! Convertei este povo
do pecado, da lux�ria, da gan�ncia, para que de novo nos venha a bonan�a. Chega de
tanto castigo, Senhor. Dai-nos de novo a chuva e a fartura.
Ajoelhado em pleno sol de inverno seco e frio de 1877, Argemiro termina sua demorada
ora��o e come�a a se mover, movendo o mundo. Mais o mundo de sua imagina��o. Que este
est� em rebuli�o. Que este Cel. Janu�rio � um miser�vel e miserento. Tem fome de
terra. Quer muito mais do que os sete palmos de que vai precisar. E pr� ganhar mais e
mais terras tem mandado muita gente para aquele tanto de palmos. Ele e a cambada toda
desses donos de terra. N�o perdoam. N�o deixam pequeno sossegado. Tanto fazem que v�o
tomando suas rocinhas e entre eles mesmos, grandes, est�o sempre armando intrigas, sem
tr�guas, de terra. Terrintrigas, intrigas de terras. Quantos t�m movido por isto.
Jagun�os, cabras, moradores, inocentes e culpados. Se n�o bastasse a
dificuldade da seca. E este ano est� dif�cil. Ainda h� os empecilhos dos donos. Essa
maldito Cel. Janu�rio igualzinho aos outros patr�es n�o me deixa plantar
nada. N�o ajuda. N�o d� semente. E quando a gente consegue vencer as dificuldades e
plantar um milhinho ou um feij�ozinho ou uma mandioquinha, l� vem ele pr� levar um
despotismo da produ��o. Na maioria das vezes pro�be mesmo, lavouras que n�o as dele. E
dessas n�o aproveita nada pr� n�s, os empregados. Os escravos est�o at� melhores.
T�m a b�ia certa, embora seja uma porcaria. Nosso ganho � pequeno. N�o d�. Ainda bem
que h� a ca�a. Minora a fome. E olha que esse coronel poderia ser menos p�o-duro.. Tem
tanto neg�cio. Compra peles de todos os cantos da regi�o. � de boi. � de cabra. � de
carneiro. Junta tudo e manda pr� Juazeiro. Pr� Feira de Santana. Pr� Bahia. At� pro
estrangeiro. Que � pr� fazer couro e sapato. E pr� c� nada volta. Villa Nova da Rainha
tamb�m � lugar para onde vai essa mercadoria. A� pega a estrada de ferro de Juazeiro
para a Bahia. Se montassem os curtumes aqui, as sapatarias aqui, bem que poderia ser bom.
Tinha trabalho. Corria dinheiro. Emprego. V�o tudo pro oco do mundo e n�s aqui ficamos
s� no oco. No outro. Foi cruel a briga do Cel. Janu�rio com o Cel. Antonio. Que perdeu
tudo. Pro outro. Este daqui. Estas terras mesmo onde moro eram do outro. A sina da
chacina. E como sofremos n�s os moradores destas terras. Os escravos s�o poucos.
Sofrimento mesmo � de n�s vaqueiros, dos moradores, agregados, as mulheres e os filhos.
E os poucos velhos, pais e av�s, que conseguem envelhecer. Temos que rezar muito. Ir a
Itapicuru. L� est� um homem bom e que d� bons conselhos e coragem � gente. Como
conforta o exemplo do nosso Santo Antonio do Mares. Como o povo come�a a ir aos magotes
onde ele se acha, a� os patr�es ficam mordidos. At� inventaram que o nosso Peregrino
tinha matado a pr�pria M�e. Ano passado levaram-no � sua terra no Cear�, preso, com
essa acusa��o. Ficou provado que � inocente. E voltou para c�, pr� Itapicuru , onde
j� estava, consolando e ajudando o povo a viver. Construindo e consertando igrejas e
cemit�rios. E fazendo milagres. E l� pros lados do Cear�, de onde veio este santo
homem, h� muitos mission�rios cuidando do povo de Deus. Al�m do Padre Mestre Ibiapina,
com tanto trabalho n�o s� no Cear�, com seus beatos, h� um padre come�ando trabalho
muito rico no lugar chamado Juazeiro, perto do Crato. N�o � esse aqui vizinho, da Bahia.
� o do Cariri. Terra onde n�o h� seca. E esses ma�ons querendo acabar com a religi�o.
Perseguindo os padres e os bispos. Mas eles n�o perdem por esperar. N�o v�o poderes de
Deus. D. Vital j� voltou. Os bispos foram libertados pelo governo. Mas a religi�o n�o
pode ficar s� do lado desses coron�is, n�o. Tem que olhar para o resto do povo. Para os
mais fracos. Mas pro Norte o povo tem a seu favor o Jesuino Brilhante, cangaceiro que
defende os despossuidos contra a fome canina de riqueza desses patr�es. Cabra bom esse
Jesuino. Pena que ele n�o ande por aqui. Na certa no futuro, l� pr� meus netos, vamos
Ter por aqui cangaceiros como ele para brigar por n�s. Ficam esses coron�is se
comportando como se fossem donos do mundo. Mas n�o s�o, n�o. Nem nunca foram. Esses
terrenos todos eram dos Tapuios. Valentes e brig�es. Enfrentaram os tais dos bandeirantes
que de S�o Paulo pegaram as terras daqui. E os soldados que ganharam a guerra contra os
holandeses e que tamb�m queriam as terras dos Tapuios. Papai, Mam�e, Vov� e Vov�
contavam as estripulias feitas por aqui, nos tempos antigos, que eles nem pegaram. Era
sempre a mesma fome de terra. Se mata e se morre por ela. A maior parte desses coron�is
� filho, � neto desses tipos sujos, bandeirantes e soldados. N�o adianta essa pose de
limpinhos. E aqui pr� n�s a coisa t� cada vez mais dif�cil. Mesmo tendo sa�do tanta
gente para a guerra do Paraguai. Os Volunt�rios da P�tria. Que iam na marra. N�o
diminuiu o problema de tanta gente para t�o pouco trabalho. Acho que s� eu indo a
Itapicuru. Ouvir o Peregrino Santo Antonio dos Mares. Muita gente est� dizendo que ficar
com ele � bom e resolve os problemas maiores dessa pobrezona toda. Acho que eu devo ir. E
o coronel? Aviso pra ele? Que nada. Ele vai ser o �ltimo a saber. Como ele faz com a
gente.
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II - ENTES
21 de novembro de 1895 no calend�rio gregoriano. Mais um ano de rotina
o terceiro - em Bello Monte. As m�es de filhos cuidando dos filhos; as mulheres e
os homens que trabalham nas ro�as, todos indo �s suas tarefas. Harmonia, clima
confort�vel de sinergia na Sociedade. Hon�rio Vilanova, o memorialista do arraial,
experienciava sua viv�ncia, que no futuro seria contada assim (1): "Canudos era
um peda�o de ch�o bem-aventurado. N�o precisava nem mesmo de chuva. Tinha de Tudo. At�
rapadura do Cariri. Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha ro�a tratava da ro�a
na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da
mulher e dos filhos. Quem gostava de rezar ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum
pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino. Eu e o
compadre Antonio t�nhamos a nossa loja, mesmo defronte do Santu�rio. Era um formigueiro
de gente, zeladora e ordeira nos seus bons costumes, onde n�o havia uma s� mulher
prostituta. Do balc�o eu via em derredor a quietude e a paz em que findavam os dias.
Reinava o Peregrino. A sua palavra era ouro de lei. A sua m�o suave. O bast�o era apenas
para se apoiar o corpo mo�do de tanto sacrif�cios e rezas. Mais nada. O Peregrino era de
boa paz. Nunca acreditou que os soldados do governo viessem matar os homens e esbandalhar
as mulheres. Muita gente dizia, mas ele teimava em n�o acreditar. Era pac�fico. O
Peregrino jamais obrigou algu�m a freq�entar devo��es. N�o permitia, isso sim,
desordens, mancebias, deprava��es, bebedeiras, pagode dentro do arraial. �s ora��es
na latada iam as mulheres, em maior n�mero, e os homens mais tocados do esp�rito
religioso. O resto cuidasse dos seus haveres, deveres e obriga��es sem malqueren�a a
ningu�m. Assim era a vida. As beatas rezavam o dia inteiro. Estavam sempre ajoelhadas no
orat�rio, desfiando os ros�rios, cantando as ladainhas. At� mesmo de madrugada. De
manh� era o of�cio. As novenas de Santo Ant�nio. Cantavam-se os benditos. N�o aprendi
nenhum, porque s� uma vez ou outra aparecia pela Igreja. O Peregrino estava sempre
presente e sempre pronto a repetir os mandamentos da Lei de Deus e a aconselhar o povo.
Tudo que ele proferiu antes da guerra n�s vimos. N�o era homem para acreditar em
bruxarias. Lia a sua Miss�o Abreviada. Tinha uma letra fina, botava a folha de
papel na m�o e escrevia sem parar, at� quando o vento a dobrava. P�ginas e p�ginas de
profecias e ora��es. Durante a guerra quase n�o sobrava tempo para as rezas no
santu�rio. Mas no tempo de paz, tudo era alegria em Canudos. De vez em quando aparecia o
padre Sabino, vig�rio do Cumbe, que vinha celebrar, batizar e casar na Igreja do
Peregrino. O reverendo gostava de Canudos e ali ficava mais de um dia e era muito bem
recebido. Depois ia embora com a bolsa regalada. Os mascates que chegavam a Canudos viam a
nossa paz, prosperidade e riqueza e sa�ram propalando pelo mundo. Padre Sabino de Cumbe,
que ia muito a Canudos, foi por isso mesmo muito judiado pelo Moreira C�sar, o
corta-cabe�a, e salvo de ser fuzilado pelo Coronel Tamarinho(sic)".
--- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!, Pai Conselheiro.
--- Para sempre seja louvado t�o nobre Senhor! Como vai Irm�o
Raimundo? A fam�lia est� boa? Os filhos e os netos? Irm�o Raimundo, mandei lhe chamar
para conversarmos sobre nossa situa��o de mantimentos e da agricultura. Nosso arraial
recebe muitos irm�os novos a cada dia. Assim � preciso produzir mais p�o. Com a Gra�a
Divina, o nosso trabalho tem sido frut�fero. E vai continuar sendo.
--- Os meus familiares est�o bem, meu Pai. Com a Gra�a de Deus, todos
est�o sadios, pois seguindo os conselhos de meu Pai Bom Jesus, de modo que est�o
usufruindo do bom da vida. E o povo todo faz o mesmo. Bendito seja o dia em que resolvi
deixar as terras do bom Bar�o de Rejeabamo. Nossas lavouras e cria��es atendem �s
necessidades do nosso santo arraial. O clima tem ajudado. O trabalho dos irm�os continua
denodado. De modo que temos tido produ��o suficiente para n�s e para fazer dinheiro.
Desde a funda��o de Bello Monte, meu pai, nestes dois anos, o trabalho dedicado,
conjunto, um ajudando o outro, tem funcionado bem. Do jeito que trabalhamos, nossas
for�as ficam multiplicadas. Conseguimos mais assim do que quando trabalh�vamos nas
ro�as dos coron�is. � outra coisa. Ocupamos �reas de vazante do Vaza Barris, outras na
Caatinga mesmo. Estamos produzindo muito alimento. Tanto das plantas como dos bichos.
Temos feij�o, temos mandioca e farinha e beiju, temos milho, temos arroz. Estamos ainda
aproveitando das plantas nativas o umbu, com todos os seus produtos, umbuzada, doces,
vinho, a farinha da semente da faveleira tem sido um rico alimento produzido por grupo de
nossos agricultores que trabalham na Caatinga. D� trabalho catar no ch�o as sementes,
mas � valiosa a farinha. Temos a produ��o de carne indo bem. Principalmente de bodes e
carneiros. Mas tamb�m de bovinos, de menor rebanho. O leite tem vindo tanto das cabras,
das miun�as, como das vacas. Temos feito queijos, de muitos tipos, de leite de cabra e de
leite de vaca. Manteiga de garrafa. Coalhada. A pr�pria umbuzada. O leite � de grande e
variada aplica��o. N�o s� produzimos, mas fazemos chegar o produto onde .�
necess�rio. Temos um bem montado trabalho que distribui os produto com todas as
fam�lias. Ningu�m fica sem o seu quinh�o. Nosso Conselho de Agricultores cumpre bem seu
papel. E gra�as a distin��o de Vosmic�, tenho estado acompanhando e estimulando o
trabalho de todos para produzir e servir � irmandade. Como Vosmic� mesmo sabe e tem
acompanhado. Posso garantir ao meu Santo Antonio Aparecido que n�o haver� de faltar
comida para os bellomontanos. Mesmo que a popula��o continue crescendo, que passem das
30 mil almas j� que todos se sentem bem e melhor junto ao meu Santo Antonio dos
Mares do que agregados aos donos da terra -, teremos suficientes meios para alimentar a
todos. J� temos as contas feitas. Temos conseguidos e vamos continuar conseguindo tamb�m
suprir outras precis�es que n�o comida. Sabe muito bem meu Santo Pai Bom Jesus que temos
obtido de fora os produtos indispens�veis que n�o produzimos aqui. Tanto usamos os
nossos mascates, o Vilanova, o Mota, o Macambira, como os de fora que aqui v�m e os
estabelecidos em Cumbe, Monte Santo, Juazeiro, Vila Nova da Rainha e na Bahia. Temos
mandado para fora peles e couros de animais e artesanatos aqui produzidos. E nessas
transa��es em geral temos cr�dito junto aos negociantes. Merc� de Deus somos
econ�micos e n�o somos chegados a desperd�cios. De modo, meu Santo Pai Peregrino, que
posso lhe assegurar que Bello Monte tem cada vez mais motivo para ficar sempre mais belo.
--- � isso, Irm�o Raimundo. � assim que vejo. Acima de tudo Nosso
Senhor Jesus Cristo quer o nosso bem estar. Multiplicando os peixes e o p�o para a
fartura de seu povo. Ensinou que o talento bem aplicado � aquele que � posto a se
reproduzir e n�o o que � simples e avarentamente guardado. H� que trabalhar e trabalhar
muito e bem, Irm�o Raimundo. Disciplina, organiza��o, pertin�ncia e persist�ncia s�o
qualidades b�sicas do trabalho. O pecado � a contradi��o disso. � a distor��o. O
pecado assume v�rias formas, mas no fundo � ego�smo. � preciso abrir m�o da
gan�ncia, da usura. Um homem com alma limpa fica mais produtivo, mais feliz e menos
exigente com os cuidados pessoais sup�rfluos. A penit�ncia n�o � um castigo. � uma
ben��o. � o estado que produz alegria. Riqueza �ntima e exterior. O Bello Monte
conseguiu acrescentar � vida parcimoniosa de seu povo o labor associado, o trabalho
conjunto, com finalidade de todos. A grande diferen�a entre os resultados daqui e os de
l� de fora se deve principalmente � forma como se encara a tarefa e o parceiro
trabalhador nos dois lugares. E o Irm�o Raimundo n�o ignora como ressaltou na sua
conversa a import�ncia do Conselho de Agricultores.
--- Verdade, meu Pai Peregrino. Nessa nossa peregrina��o neste mundo
tem muito valor o trabalho junto. E quanta coisa ficamos sabendo no Conselho. O progresso
que vem das terras grandes para nos ajudar na produ��o. Como no caso de melhorar a terra
de vazante com o uso da cal extinta e das cinzas para alimentar as plantas. Como no caso
da escolha das plantas mais produtivas para reproduzir na safra seguinte. Tanto na vazante
como na caatinga. Essas melhorias no nosso trabalho t�m sido importantes para o bem estar
do povo do arraial. N�o podemos esquecer tamb�m, meu Pai Conselheiro, o grande resultado
que vem da nossa organiza��o do trabalho. Todos t�m interesse de fazer o melhor. E
assim t�m-no feito. Cada um se sente parte da comunidade. E assim temos o menor
desperd�cio poss�vel, nas v�rias fases da produ��o ao consumo.
--- Mas, Irm�o, insisto em saber sobre sua fam�lia.
--- Vai bem, meu Pai. Os que est�o sobre a minha prote��o v�o tendo
vida normal. No entanto o Senhor � que me pode � informar como vai o Pedr�o. Ele sempre
foi um menino rebelde e de g�nio dif�cil. � o filho que mais me deu trabalho. Mas desde
que veio para a Guarda Cat�lica, sob os cuidados do Irm�o Jo�o Abade e do Irm�o
Argemiro, acredito que ficou mais disciplinado, o Senhor concorda?
--- Eu creio que o Pedr�o vai bem. A Guarda Cat�lica est� bem
disciplinada e treinada. Como sabe o Irm�o, esse governo de ma�ons e protestantes tem
sido cruel com o Brasil e com quem defende o Imperador, como n�s. N�o se esque�a que em
Masset� eles atentaram contra n�s. � muito prov�vel que pelo primeiro pretexto eles
tentem agredir o Bello Monte. Temos que estar preparados. Gente destemida como o Pedr�o
� necess�ria para a nossa defesa. Mas eis a� quem melhor pode lhe informar, nosso
Irm�o Argemiro. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, Irm�o Argemiro.
--- Para sempre seja louvado t�o nobre Senhor, meu Pai Conselheiro e
meu Irm�o Raimundo.
--- Irm�o Argemiro, o Irm�o Raimundo aqui presente pede not�cias
sobre seu filho Pedr�o, engajado na Guarda Cat�lica.
--- Meu Pai Peregrino, meu Irm�o Raimundo, o Pedr�o vai muito bem. Eu
tenho visto pelo seu comportamento e o Chefe do Povo Jo�o Abade tem me dito muito bem
dele. � valente e disciplinado, como toda nossa Companhia do Bom Jesus. Com ela o nosso
Santo Arraial est� bem protegido. E precisava muito disso. Conforme miss�o confiada pelo
meu Santo Pai Conselheiro, tenho acompanhado a evolu��o de nossa tranq�ilidade. Desde
os tempos passados em que era agregado do Cel. Janu�rio, conhe�o bem como esses senhores
agem. Os coron�is fazem qualquer coisa para defender seus interesses. E eles est�o com o
nosso Arraial Santo como espinha atravessada na garganta. N�o perdoam a perda de pessoal.
Muitos trabalhadores continuam a sair das fazendas para vir buscar a esperan�a junto a
meu Pai Santo Antonio Aparecido. Eles v�o armar alguma tram�ia contra n�s. Temos que
estar preparados e de fato estamos. A Companhia do Bom Jesus, sob o comando do Irm�o
Jo�o Abade e contando com homens como Pedr�o, e bem armada, est� pronta para garantir o
Santo Arraial. Agora, meu Pai e meu Irm�o, vejam as ironias da vida. O Irm�o Raimundo,
de vida pacata, tem um filho guerreiro como o Pedr�o. Eu, que tenho uma hist�ria de luta
e briga, tendo como filho, embora de cria��o, uma criatura m�stica e beata como o
Antonio Beatinho. Quero saber com ele vai lhe cuidando, meu Pai.
--- Ele vai bem, Irm�o Argemiro. Cuida muito bem das minhas coisas
pessoais e das imagens do Santu�rio, que s�o cada vez em maior n�mero. � uma criatura
de �tima disposi��o. Mas, Irm�os, n�o julguemos as coisas e as pessoas pelas
apar�ncias. O papel de cada uma � importante para nosso povo. E, meus Irm�os, temos que
estar bem unidos para enfrentar os quatro fogos federais que v�m.
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III CONSEQ�ENTES
--- Oi, Almir! Quanto tempo, rapaz! H� trinta anos que a gente
n�o se v�, n�o se fala e n�o se ouve! Voc� mudou pouco, homem. S� o cabelo grisalho
e umas poucas rugas. No mais � o mesmo estudante de Agronomia de l964 a l967. Que boa
nossa turma de 1967, hein homem? Tenho tr�s filhas, duas delas agr�nomas, uma fazendo
mestrado e j� se encaminhando para o doutorado. Voc�, rapaz, est� com quantos filhos?
--- Osmar, cara! Voc� tamb�m t� �timo! Conservado no �lcool, hein?
Veja como se esvai o tempo. Trinta anos n�o s�o trinta dias. Tenho dois meninos e uma
mo�a. Estudam ainda. Todos na universidade. Pois �, nossa turma saiu-se e vai se saindo
bem na profiss�o. Que Deus tenha em bom lugar nossos quatro colegas j� falecidos!
Conseguimos localizar onde todos est�o. Os vivos, claro. Depois de tanto tempo sem
not�cias de tantos. Infelizmente nem todos quiseram ou puderam vir a uma festa de trinta
anos. Estou sabendo que voc� � fazendeiro l� no Agreste Pernambucano. Espero que esteja
indo bem.
--- Pois �, Almir, estamos l� entre S�o Joaquim do Monte e
Garanhuns, cuidando das fazendas e da pecu�ria bovina. Com a gra�a de Deus temos ido
bem. E voc�, continua no Sert�o de Canudos, n�o �? Pelo menos n�s dois nos
conservamos fieis �s origens. A maior parte da turma trocou de regi�o, saindo para
outras �reas diferentes da de onde veio ou da zona de influ�ncia de Juazeiro-Petrolina.
E a cria��o deste Curso de Agronomia em Juazeiro pretendia preparar profissionais para
estas regi�o...
--- Sim, Osmar. Desde que terminei o curso que trabalho na Extens�o
Rural na minha terra, em Canudos. Isto �, no novo munic�pio de Canudos, antes,
Cocorob�. Sa� apenas pouco tempo para fazer cursos de especializa��o ou de mestrado.
De modo que minha vida � mesmo o Sert�o, com seus desafios, suas lutas, sua hist�ria e
suas belezas. Quanto � turma ter ido embora, � isso mesmo. Isso � bom. Ajuda na
integra��o nacional. Gente das diversas regi�es criando ra�zes em outras. Veja que das
todas 31 turmas formadas aqui, sempre alguns colegas ficaram na regi�o. Mas o mais
importante na cria��o de um Centro desse � gerar um n�cleo que estude, pense e aja
sobre os problemas regionais, aplicando m�todos tecno-cient�ficos. � assumir de modo
mais consciente seu pr�prio destino. Se voc� n�o aceita este argumento, ent�o aceite o
do Jos� Am�rico, que, ao instituir a Escola de Agronomia de Areia, Para�ba, sua terra
natal, dizia aos seus conterr�neos: --- "Meus compadres, se esta Escola n�o servir
para nada, vai pelo menos servir para casar nossas filhas!" E olhe que, neste
sentido, tanto Juazeiro quanto Petrolina foram muito bem servidos, voc� n�o acha?
--- Sem d�vida! Quantos colegas casaram por aqui! Mas � claro que
aceito a motiva��o da lideran�a tecno-cient�fica como o maior atributo da nossa Escola
de Agronomia. � infelizmente uma tese que n�o foi perseguida com a gana e a
determina��o necess�rias, concorda comigo?
--- Concordo em g�nero, n�mero e caso!! Tem sido sempre assim. � o
tal neg�cio da Hist�ria sendo repetida. H� cem anos atr�s veja: este ano ocorre
o centen�rio da destrui��o do Bello Monte, ou de Canudos, como o chamavam os
advers�rios o Bello Monte precisava de luz e de estudo e lhe mandaram "o
professor Comblain e o argumento definitivo da bala". Meu caro Osmar, ser� que
voc�, nestes trinta e quatro anos de forma��o e trabalho profissional, j� percebeu o
grande paradoxo que a gente vive: � riqu�ssima a nossa pobreza? Nossa viv�ncia aqui tem
sido um microcosmo do macrocosmo que � a humanidade ou as humanidades de todos os tempos,
se voc� o preferir. Na nossa santa e ing�nua ignor�ncia, nos temos reproduzido todo o
drama da esp�cie. Voc� h� de convir que, guardadas as propor��es, vivenciamos os
grandes os grandes gestos da Hist�ria, lances de her�is e de bandidos: de santos e de
cafajestes! E para que lado tem pendido a balan�a? Ora prum lado, ora pro outro. Com
predomin�ncia de qual? Cada um que responda, considerando o quadro em volta. Pedantemente
eu chamaria esta trag�dia a "s�ndrome da in�rcia passivo-retroativa
descendente": somos uns grandes inertes, nada fazemos (ou fazemos muito
pouco) para melhorar nossa situa��o, s� agimos em resposta a algum est�mulo, n�o
tomamos iniciativa e estamos no geral indo para baixo. O Santo Peregrino Conselheiro
chamou isso simplesmente de Pecado. O drama da nossa regi�o, o drama do semi-�rido � o
drama da humanidade. Veja o que ocorre com a agricultura em todo o orbe. O homem vive em
cima e na depend�ncia de "meia d�zia" de vegetais. E para
aumentar ainda mais esta outra t�o pouco lembrada concentra��o ( a da terra e da renda,
um estoque e um fluxo de riqueza, t�m sempre os seus batalhadores contra ), tais
oligarcas vegetais s�o de um mesmo t�xon, as ex-gram�neas e atuais po�ceas.
--- Mas voc� n�o muda, hein Almir! Continua o mesmo...
--- Calma, calma! N�o me interrompa. Como eu dizia, a gente vive de
umas poucas gram�neas, arroz, trigo, milho, mais umas outras tantas leguminosas, feij�o,
soja. A maior parte destas culturas v�m dos tempos b�blicos ou s�o mais remotas. E nem
procuramos atualizar o potencial que a flora nos oferece. Antes, nem procuramos conhecer
cientificamente, com gana, este potencial. Como investimos pouco nisto. Agora em armas...
Em compensa��o ( e que compensa��o!), antes de conhecer, estamos destruindo. Quantas
esp�cies vegetais ( e animais, hein?... ) se extinguem por ano! Quantas amea�adas!
Pot�ncias que nunca ser�o ato. Para sempre. E quanto poder�amos obter das plantas em
termos de alimentos, fibras, prote��o, agasalho, �leos, f�rmacos, materiais de
constru��o e diversos, energia...puxa! N�o acaba mais. A Agronomia, desde que surgiu em
meados do s�culo XIX, se aceitarmos que a descoberta da nutri��o mineral de von Liebig
marca o in�cio da nossa ci�ncia, neste 150 anos, fez imensos progressos verticalmente,
sobre algumas poucas esp�cies. Mas pouco avan�ou horizontalmente.
E esse � um desafio. Aqui tamb�m a s�ndrome pedante funciona. O que
Darci Ribeiro disse uma vez para os cientistas sociais vale para todos: somos todos
mestres em zelar pelo que tem menos import�ncia e descuidar do essencial. Nos preocupamos
mais com a metodologia, materiais e m�todos, do que com os objetivos. Sem d�vidas,
nestes trinta anos houve progresso. Criou-se na regi�o um sistema de agricultura
irrigada. O subsetor de tomates industriais aqui, por exemplo, chegou a superar S�o Paulo
em volume de produ��o. E assim, com outras plantas. Mas sente-se no ar que falta algo. A
caatinga ainda � pouco utilizada. Ainda n�o pode sustentar muita gente.
--- Realmente, Almir, pouco tem sido gasto com pesquisa e extens�o
nesta �rea. Impressionante esta falta de sensibilidade. Mas tamb�m o dinheiro vai todo
para pagar d�vidas. O neoliberalismo est� a� mesmo, provocando o FEBEAMUN...
--- FEBEAMUN? O que � isto?
--- "Festival de Besteira que Assola o Mundo".
--- Ah... Stanislau Ponte-Preta. Concordo. E como estamos no mundo...
Voc� n�o acha que o nosso homem do campo da caatinga enfrenta os mesmos problemas da
comunidade conselheirista? S� que o de hoje com as desvantagens de n�o ter a coes�o e a
for�a dada pela f� no Conselheiro?
--- Acho sim. E voc� tem raz�o a respeito da in�rcia. Lembra-se que
h� trinta anos n�s os estudantes tivemos que greve para estagiar nos programas de
agricultura irrigada oficiais que por aqui come�avam? Por certo que ent�o s� tivemos
�xito devido a lideran�as locais ativas...
--- Me lembro como se fosse hoje.
--- Puxa, como � dif�cil avan�ar! Agora andar pr� tr�s... Ei! Com
respeito ao Conselheiro, h� uma tese por a� segundo a qual ele n�o morrera no arraial,
mas sim teria fugido para Minas Gerais, onde tivera uma vida pacata at� a morte natural.
--- Mas isto � um absurdo! Querem acabar com este s�mbolo nosso! �
id�ia de maluco. Com toda as provas que a quarta expedi��o colheu, inclusive a foto do
cad�ver exumado e a pr�pria cabe�a do dito cujo levada como trof�u e objeto de estudo!
Qual �! Curioso � que h� quem diga o mesmo de Lampi�o. E tamb�m para Minas Gerais.
Mas isto n�o faz o menor sentido. Al�m do que � pouco divulgado. Felizmente. Estou
ouvindo sobre isto pela primeira vez. O Bello Monte � o nosso paradigma de fibra, de
luta, de garra. Do desafio eterno do nosso ec�meno, do nosso ecossitema, da nossa
economia. Voc� n�o acha que na �poca do segundo centen�rio da destrui��o do Santo
Arraial outras pessoas estar�o discutindo as mesmas coisas, expondo as mesmas teses, sob
as mais diferentes formas, tal como hoje?
(1) MACEDO, N. (1969)- "Memorial de Vilanova"
Rio O Cruzeiro citado por BARROS, L.O.C. (1989) "A
Terra da M�e de Deus um estudo do Movimento de Juazeiro do Norte"
Rio Francisco Alves 329 pp.
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