Clique com botão direito do mouse e escolha salvar em disco para DOWNLOAD (cinema_sonoro.pdf) |
O
CINEMA SONORO DOS ANOS 30 AOS 50 Antonio Costa. "Compreender o Cinema." Rio de Janeiro, Globo, 1987.
O
ADVENTO DO CINEMA SONORO O aparecimento do cinema sonoro implicou uma verdadeira revolução
não só na estética do filme mas principalmente nas técnicas de produção
e nos níveis econômicos da indústria cinematográfica. É
compreensível que os cineastas que tinham feito da ausência da palavra
e do som o princípio estrutural da expressão fílmica, tenham
resistido a tais inovações: foi o caso de Chaplin, que não se adaptou
à nova técnica mas tentou adaptá-la a suas exigências, entre mil dúvidas
e incertezas. Luzes da cidade (1931) não é um filme
"falado" como os outros que se rodam em Hollywood no mesmo
ano. Mesmo sem recusar a música e as possibilidades narrativas do som,
o filme ainda é estruturado segundo os cânones expressivos da
"arte muda". Da
mesma forma, os cineastas soviéticos preocuparam-se em circunscrever,
com o chamado "manifesto do assincronismo" (1928, trad. it.
Eisenstein 1964, 523-24), as modalidades do emprego do elemento sonoro,
tratando de evitar os perigos de um retrocesso aos modelos do teatro e
da literatura. O manifesto, assinado por Eisenstein, Pudovkin e
Alexandrov, tentava explicitamente canalizar o uso do som na direção
do contraponto, do conflito entre trilha sonora e ótica, visando
garantir a primazia da montagem como princípio organizador e estético
do filme. Mas estas e outras dúvidas e resistências, motivadas também
pelos resultados não muito animadores dos primeiros filmes sonoros,
sobretudo se comparados com os resultados mais maduros do cinema mudo, não
impediram ao ciclo industrial dessa fundamental inovação de seguir seu
curso e de modificar radicalmente a linguagem cinematográfica e sua estética.
O cinema é antes de mais nada uma indústria: esta ampliação das
possibilidades reprodutivas do cinema, como as outras inovações tecnológicas
por acontecer, foi baseada, concretizada e imposta, segundo uma lógica
puramente econômica. Um
dos impulsos decisivos para a pesquisa de métodos de sincronização de
imagens e som e para a rápida passagem de realização de filmes
"sonoros e falados" foi certamente a concorrência do rádio.
Para a compreensão da gênese do cinema sonoro e de seu desenvolvimento
comunicativo e expressivo, é essencial ter presente esta relação de
concorrência inicial com o rádio. O parentesco entre rádio e cinema
sonoro é muito íntimo: a tecnologia desenvolvida para o crescimento do
rádio encontrou aplicação paralela na solução de alguns problemas
do cinema sonoro; foram as indústrias do setor telefônico e radiofônico
a elaborar os sistemas de reprodução e ampliação do som que tornaram
possível a revolução do cinema sonoro. Aliás, foi a entrada de uma
dessas, a RCA, no setor cinematográfico que determinou o nascimento de
uma nova major, a RKO. Mas, além desses aspectos que dizem respeito à
economia e à indústria, o parentesco resulta ainda mais íntimo quando
observamos que o desenvolvimento do cinema sonoro ganhou vantagem e foi
fortemente condicionado pelos efeitos produzidos pelo consumo radiofônico,
que havia criado um hábito à voz reproduzida, ao realismo documental
da voz viva dos detentores do poder e dos favoritos do espetáculo. Não
é por acaso que um dos primeiros filmes de lançamento do Movietone,
o sistema sonoro adotado por W. Fox, dava a possibilidade de ver e ouvir
o presidente Coolidge, o herói nacional Charles Lindbergh e o exótico
(para o público americano) diretor Benito Mussolini. Marshall
McLuhan definiu o rádio como "uma subliminar sala dos ecos que tem
o poder mágico de tocar cordas remotas e esquecidas" e para
esclarecer sua idéia recordou os novos significados e o
"tecido" diverso que as palavras assumem se nos pomos a falar
numa sala escura (McLuhan, 1964, 131-221. No escuro da sala de cinema, a
sugestão da imagem encontrou na palavra o no som uma espécie de recriação,
instrumento de ampliação e potenciação. Ainda
uma vez, como já havia ocorrido com o cinema dos primeiros anos, as
possibilidades de documentação, de verificação e de emprego em gêneros
realistas da inovação técnica são exploradas paralelamente àquelas,
simétricas e complementares, de potenciação do caráter fantástico e
imaginário do cinema. Além
da comédia, que se serve das possibilidades do diálogo e do melodrama,
que adquire um maior realismo na representação dos conflitos, são
dois gêneros nada realistas que decolam graças a esta inovação
tecnológica. Ao som está intimamente ligado o desenvolvimento de um
novo gênero que tanta importância terá na estética e na ideologia do
cinema americano, o musical. Cada forma de estilização da gestualidade
do ator, do espaço e dos componentes propriamente fílmicos como os
movimentos de câmera, torna-se possível pelo fato de a música e o
canto se transformarem em fatores de unificação e estruturação orgânica
de todos os outros elementos. Ao
cinema sonoro devem-se também os crescentes êxitos do desenho animado.
Com Steamboat Willie (1928), primeiro desenho animado sonoro, e
com The skeleton dance (1929), a primeira das célebres Silly
Symphonies, Walt Disney inaugura uma nova era do cinema de animação,
em que a música e os sons tornam-se componentes essenciais das abstrações
fantásticas e das invenções cômicas desse gênero. Nesse sentido,
Walt Disney pode ser considerado aquele que ficou com a herança, por um
lado, de alguns aspectos da slapstick comedy, que com o cinema
sonoro decai e assume novas características, e, por outro lado, de
algumas experiências da vanguarda sobre ritmo visual e musical: não
por acaso, Fischinger, inovador alemão que havia trabalhado também
para A mulher na Lua (l928) de Fritz Lang, terá atuação ativa
no ateliê de Disney como assessor para efeitos especiais de Pinóquio
(1940) e Fantasia (1940). Além
disso, o cinema sonoro, por ter tornado mais acabados os efeitos
realistas da narração cinematográfica, é considerado por muitos
autores um dos fatores essenciais do desenvolvimento do gênero fantástico
e de ficção científica. Desde o início existira um cinema fantástico
e de ficção científica (basta pensar em Méliès) e mesmo nos anos 20
tinham sido produzidos filmes memoráveis neste campo, como Aelita
(1924), do soviético Protazanov, e Metrópolis (1927), de Fritz
Lang. Apenas depois do advento do cinema sonoro essa gêneros conhecem
uma afirmação relevante, confirmando a ligação íntima que existe
entre fantástico cinematográfico e inovações tecnológicas. A
IDADE DE OURO DE HOLLYWOOD Entre
1932 e 1946, escreve J. Monaco, a história do filme e, com apenas duas
exceções, a história de Hollywood. As duas exceções: o cinema francês,
onde se afirma a corrente do "realismo poético", e a escola
de documentaristas ingleses, dos quais se destaca John Grierson (Monaco,
1977, 241). Isso
não significa somente que Hollywood confirma e acentua sua primazia
econômica e que, mesmo sob as férreas leis de controle do sistema de
estúdio, conseguem impor-se algumas personalidades de diretores com
estilo claramente reconhecíveis, como Hitchcok, Von Sternberg, Hawk,
WelIes. Isso significa, talvez antes de qualquer outra coisa, que para
boa parte do público de todo o mundo, mesmo nos países onde existiam
importantes cinematografias nacionais, o cinema foi identificado
sobretudo com o cinema americano. Na
Itália, o mito do cinema americano não envolveu só o grande público
nos anos 30 e 40, mas tornou-se um ponto de referência, como a
literatura, para os grupos intelectuais que durante o fascismo
procuraram reagir ao clima de fechamento e à dominadora retórica do
regime. Quando, após a queda do fascismo e o fim da guerra, os filmes
americanos, que por causa da Lei Alfieri (1938) não circulavam
livremente há vários anos, voltaram às telas italianas, o público
reagiu como se tivesse recuperado um bem precioso do qual fora privado
por longo tempo. Como se quisesse recuperar os anos perdidos, só em
1946 a Itália importou seiscentos filmes americanos, que tiveram 84%
das bilheterias (os filmes de outros países foram 250, enquanto os
filmes italianos produzidos foram 62 e recolheram 10,2% das
bilheterias). Evidentemente, apenas razões político-militares, que não
podem ser ignoradas, não bastariam para explicar um fenômeno dessas
proporções. Qual
é o segredo dessa afirmação incontestável e absoluta do cinema
americano? A resposta deve ser procurada, antes de mais nada, naquela fórmula
organizativa da economia cinematográfica que já vimos delinear-se nos
anos 20: studio system, star system e cinema com gêneros
diferentes. O
aparecimento do cinema sonoro, depois de um período de equilíbrio do
mercado, havia confirmado, e até reforçado notavelmente, seu caráter
oligopólico, ou seja, o controle de todo o mercado por parte de um número
limitado de empresas. Essas últimas, as major companies ou
simplesmente majors, eram: Warner Bros, MGM, Paramount, RKO, 2Oth
Century Fox, Universal, Columbia e United Artists. Com a única exceção
desta última, que não possuía estruturas produtivas próprias e se
limitava à distribuição de filmes de produtores independentes, as majors
constituíam um sistema com "integração vertical" e com
forte concentração monopolista. Embora
produzindo não mais de 60% dos filmes realizados num ano, os lucros
obtidos com a sua distribuição atingiam 95% do volume total dos negócios:
quer dizer, produzindo pouco mais da metade dos filmes de um ano,
ganharam pouco menos do total dos lucros do sistema distribuidor. A
concentração monopolista fica ainda mais evidente se considerarmos a
fase terminal do ciclo, ou seja, o exercício. As cinco primeiras majors
(isto é, Warner Bros, MGM, Paramount, RKO, 2Oth Century Fox), por meio
do controle direto de três mil salas (sobre um total de dezoito mil, ou
seja, pouco mais de l6%), conseguiam abocanhar 70% das vendas nas
bilheterias. Esse
sistema, sobre o qual recaíam suspeitas de infração das normas
antimonopólio, floresceu até que a Corte Suprema decretou sua
ilegitimidade em 1948. Se a isso se acrescenta a concorrência sempre
mais agressiva da televisão, a qual Hollywood opôs uma resistência
que, embora eficaz, não impediu a progressiva perda de espectadores,
tem-se um quadro mais completo das causas do fim da idade de ouro de
Hollywood. Escreve T. Balio: A
idade de ouro de Hollywood durou cerca de vinte anos. Foi inaugurada com
o advento do cinema sonoro e assassinada pela televisão. É esse o período
idolatrado pelos apaixonados de cinema, a época em que os filmes
atingiam o máximo de popularidade e de influência. Para muitos
americanos, a cultura cinematográfica se tornou a cultura mais
autorizada porque Hollywood oferecia estímulos, idéias e regras de
conduta a quem fosse tão ingênuo a ponto de acreditar nos mitos de
celulóide (Balio, 1984, 15). Essa
última referência ao público nos dá a pista para referir-nos a um último
fator da crise do sistema de estúdios, quer dizer, a progressiva
transformação da composição e das preferências do público, no
interior e no exterior. Um dos pontos fortes do sistema de estúdios era
constituído pela rede de distribuição no exterior. Por volta do final
dos anos 40, os mercados estrangeiros representavam para a indústria
dos Estados Unidos uma cota de mercado mais importante que para qualquer
outro setor de produtos industriais acabados. Se o mercado interno
assegurava a cobertura dos custos de produção, as entradas dos
mercados externos podiam ser consideradas quase totalmente lucros
(Hellmuth, 1950, 65-67). Com
e decadência do studio system, decaem também o star system
e o sistema de representação a ele ligado. A
produção no âmbito do studio system era rigorosamente
planejada segundo critérios industriais: tudo aquilo comportava uma
subordinação quase total dos componentes artísticos ao sistema de
decisões do estúdio. A chamada "política de autores" , pela
qual os redatores da revista francesa Cahiers du Cinéma
exaltaram as qualidades de alguns diretores hollywoodianos considerados
até então apenas hábeis artesãos, nos levou a subvalorizar a importância
que o sistema de estúdios teve em definir o padrão qualitativamente
alto (e não só no plano técnico) do cinema americano da idade de ouro
de Hollywood. As
tipologias dos gêneros, dos atores, dos aspectos cenográficos e
figurativos foram sendo definidas no cruzamento entre as exigências de
um sistema baseado na maximização dos lucros e na necessidade de criar
modelos de comunicação capazes de atingir um público mais vasto e
indiferenciado. Avalistas do pleno respeito pelas regras do jogo eram os
responsáveis pela produção, nos diferentes graus e níveis: a eles
competia a escolha dos temas a tratar, dos atores, o orçamento, ou
seja, a quantidade de dinheiro à disposição, o que, por si só,
qualificava a colocação do filme (produção de série A ou B) e,
principalmente, a edição do filme, ou seja, a montagem definitiva da
película. Este
predomínio absoluto do componente financeiro encontra suas razões na
participação dos grandes bancos na indústria hollywoodiana durante e
depois da introdução do cinema sonoro: procuravam-se todas as possíveis
garantias acerca do resultado comercial do produto. Muitas vezes as
condições de trabalho dos diretores eram tais que comprometiam a sua
autonomia criativa (problema esse que no sistema hollywoodiano era difícil
até de formular nesses termos), e ainda sua própria credibilidade
profissional A
esse propósito, costumam-se citar os agitados episódios de conflito
entre Erich von Stroheim e os produtores hollywoodianos que determinaram
a mutilação, a manipulação de grande parte dos filmes rodados por
ele no período mudo e o fim precoce de sua carreira de diretor no início
do cinema sonoro. Escandalosos foram os casos de Ouro e maldição
(1923), que, das 24 bobinas originais, reduziu-se a dez, e Queen
Kelly (1928), que ficou inacabado. A
dimensão excepcional do caso Stroheim não nos deve fazer esquecer que
o conflito envolveu inclusive diretores que não tinham nada de
"malditos", como Frank Capra. Numa célebre carta ao New York
Times (2 de abril de 1939), Capra descrevia em termos muito concretos
quanto era nobre mas ainda pouco realista dizer que "os filmes são
o meio de expressão do diretor". Os dados fornecidos são eloqüentes:
só uma meia dúzia de diretores tinha o privilégio de rodar e montar
sem controle de um supervisor; 80% dos diretores eram constrangidos a
rodar cenas em que tudo era estabelecido de antemão e 90% não tinham
nenhum poder sobre a escolha do tema e a fase de montagem. Capra recorda
que exigências mínimas como a concessão ao diretor, para preparar-se
para as filmagens, de duas semanas para um filme A e de uma para um
filme B, exigiram três anos de negociações, antes de aceitas apenas
parcialmente (Thorp, 1939, 32). Assim,
aquela que é chamada a idade de ouro de Hollywood não é toda de ouro.
As limitações da autonomia e da liberdade tiveram um peso considerável:
desde a adoção do chamado código Hays, isto é, o código de
autocensura que entrou em vigor em 1934 e que estabelecia com uma minúcia
exasperante o que se podia mostrar e narrar em Hollywood,até os
famigerados processos dos anos 50 contra atores, roteiristas e diretores
suspeitos de comunismo (ver Ceplair e Englund). O
escritor americano Gore Vidal, no romance Myra Breckendridge,
atribui à sua extravagante e polimorfa personagem as teses de que os
filmes do período principal da idade de ouro de Hollywood, de 1935 a
1945, "assinalaram o ápice da cultura ocidental, completando o que
teve início no teatro de Dionísio no dia em que Ésquilo falou pela
primeira vez aos atenienses"(Vidal, 1968, 41). Os tons hiperbólicos
de tais declarações devem ser colocados no contexto de uma divertida sátira
aos mitos hollywoodianos (da qual infelizmente só resta uma pálida idéia
no filme Homem e mulher até certo ponto, rodado em 1970 por Michael
Sarne). Contudo, é preciso reconhecer que boa parte daquilo que o
cinema, bem ou mal, representou e continua a representar para o público
do mundo inteiro coincide com a múltipla produção hollywoodiana da
fase de ouro.
OS GÊNEROS CLÁSSICOS D0 CINEMA AMERICANO Na
crítica cinematográfica italiana e européia em geral, o estudo da
figura do autor quase sempre levou a melhor sobre o dos gêneros
cinematográficos. Isso dependeu de muitos fatores: extensão ao campo
cinematográfico de métodos e impostações da crítica literária;
sobrevivência de concepções românticas e de teorias idealistas pouco
aptas para compreender os mecanismos de produção e os modelos de
comunicação próprios do cinema. Porém,
a contraposição entre gêneros e autores não deve ser exagerada. Como
demonstrou o lado mais original da "política de autores"
promovida pela revista francesa Cahiers du Cinéma, o sistema dos
gêneros não impediu a afirmação de grandes autores como Alfred
Hitchcock, Vincent Minelli ou Howard Hawks, reconhecidos como tais
exatamente enquanto excelentes diretores de filmes de gênero. A
classificação dos filmes em função do gênero a que pertencem é um
aspecto fundamental da instituição cinematográfica. Pode
acontecer que as páginas de espetáculos dos jornais ou as rubricas dos
programas de televisão deixem de citar o nome do diretor ao lado do título
do filme, mas nunca deixam de dar uma sumária indicação do gênero ao
qual ele pertence. Trata-se de indicações genéricas, não sistemáticas,
do tipo: "dramático", "de aventuras", "cômico".
Nem sempre são de grande ajuda. A mesma etiqueta "dramático"
serve para indicar Mulher tentada (1950), de Raffaello Matarazzo,
e O rosto (1959), de Ingmar Bergman, ou seja, dois filmes para os
quais a indicação do gênero a que pertencem não é determinante
porque pertencem a cinematografias, estilos, ideologias absolutamente
diferentes entre si No
caso dos filmes hollywoodianos, ao contrário, a pura e simples etiqueta
de gêneros como western musical, gangster etc., não funciona muitas vezes
como indicador de nacionalidade, mas orienta claramente o espectador
quanto à ambientação, estilo e, dentro de certos limites, ideologia;
e isso independentemente do fato de que as assinaturas sejam de John
Ford, Vincent Minnelli ou Nicholas Ray. Mesmo que se trate de filmes
produzidos depois do fim da "idade de ouro" de Hollywood, eles
farão sempre referência à tipologia dos gêneros estabelecida naquela
época, para reproduzi-la em seus mecanismos básicos, apesar de
vistosas modernizações tecnológicas, ou para transgredi-la com intenções
de desmistificação ou para revisitá-la com nostalgia Gêneros
como o filme noir, o musical, o western, o horror são o
resultado de uma produção de universos figurativos e mecanismos
narrativos que devem ser considerados como verdadeiras criações
coletivas nas quais se expressa uma visão do mundo e uma filosofia de
vida, uma concepção estética e ideológica.
Pontos de vista sobre os gêneros Os
gêneros clássicos de Hollywood podem ser examinados do ponto de vista
do sistema de produção, para compreender a natureza e a complexidade
dos processos que determinanates a sua afirmação do ponto de vista
figurativo e narrativo, para compreender os mecanismos de funcionamento
e as regras de composição, que em parte são comuns a outras formas
expressivas como a literatura e o teatro e em parte são peculiares ao
cinema; do ponto de vista político-ideológico, para compreender as
ligações entre a evolução dos gêneros e a situação histórica e
social. Naturalmente as três perspectivas estão estreitamente ligadas
entre si e são separadas só por exigências de caráter expositivo. Vejamos
primeiro o problema dos gêneros do ponto de vista do processo de produção.
Antes de se tornar uma indicação útil para o espectador ou um tema de
grande importância para o estudo da narrativa fílmica, a subdivisão
em gêneros constituiu uma exigência fundamental do sistema de estúdio.
A organização do trabalho e a programação produtiva do estúdio se
baseava sobre a rígida classificação por gênero dos filmes: cada estúdio
tinha uma dupla exigência de diferenciar os produtos de modo a repartir
os investimentos por diversos gêneros, a fim de adequar-se às tendências
do mercado (mutabilidade dos gostos do público, exigências dos locais
com dupla programação etc. e, ao mesmo tempo, especializar-se, isto é,
privilegiar um gênero concentrando sobre ele empenho financeiro e artístico
com o objetivo de favorecer a identificação entre um determinado gênero
e a empresa de produção (o que hoje se chamaria "estratégia da
imagem"). Havia
uma relação íntima entre a tipologia dos ídolos contratados e o gênero
em torno do qual girava a política de produção do estúdio. A partir
de Voando para o Rio (1933) por exemplo, o sucesso da RKO e do
casal Fred Astaire e Ginger Rogers ligam-se profundamente. Igualmente na
Universal, no início do período sonoro, alguns filmes de terror como Drácula
(1931), de Tod Browning, e Frankenstein (1931), de James Whale,
impõem como ídolos do gênero Bela Lugosi e Boris Karloff. A
interação entre gêneros e estrelismo é o aspecto mais visível de
uma política de produção que tem como base uma férrea organização
do trabalho de diretores, roteiristas, diretores de fotografia, cenógrafos
e, principalmente, diretores de produção. Bastaria lembrar os musicals
da MGM dos anos 40 e 50 que coincidem com as expressões mais felizes
deste gênero e com um dos momentos de maior êxito da casa produtora. Na
base de tais resultados está a figura de um produtor, Arthur Freed,
cuja formação musical e talento organizativo lhe permitiram reunir uma
equipe de diretores, atores, músicos e coreógrafos de grande valor. Os
filmes de Vincent Minnelli, desde Uma cabana no céu (1943) até A
lenda dos beijos perdidos (1954), ou o célebre Cantando na chuva
(1952), de Stanley Donen e Gene Kelly, ou Meias de seda (1957),
de Rousen Maumoulian, são o resultado de uma política de produção
que teve em Freed seu genial artífice. Podemos falar de um estilo
Minnelli, Donen e Kelly ou Mamoulian, mas não será menos legítimo
falar do estilo MGM no campo do musical. Da mesma forma se pode falar de
um estilo Universal para os filmes noir dos anos 40, mesmo que,
ao citar os títulos dos filmes e os nomes dos diretores, encontremos
obras que hoje podemos considerar filmes de autor: Sabotador
(1942) e Suspeita (1943), de Alfred Hitchocok, Espelhos dalma
(1946) e Assassinos (1946), de Robert Siodmak, Almas perversas
(1945), de Fritz Lang, e Cidade nua (1948), de Jules Dassin. É
pouco provável que se possa captar o significado do trabalho dos
autores que acabamos de citar se não se perceber e penetrar no código
dos elementos constitutivos, a nível narrativo e figurativo, do gênero
em que atuaram e para cuja afirmação contribuíram. Ilustraremos uma
abordagem ao problema dos gêneros do ponto de vista figurativo,
partindo de algumas observações que se encontram num dos mais belos
livros já escritos sobre o cinema hollywoodiano clássico, America
in the movies, de M. Wood (1975). A
presença freqüente em filmes do gênero noir de detalhes
visuais e de estruturas compositivas particularmente significativas
induz o autor a uma comparação audaciosa, mesmo sendo atenuada pela
ironia do contexto: esses efeitos visuais, escreve Wood, "são como
os entalhes das catedrais medievais, aqueles triunfos de engenho e de
arte que ninguém vê a não ser Deus" (Wood, 1975, 111). A
comparação não deve parecer nem casual nem irreverente, tanto mais
que é feita para sublinhar uma espécie de desproporção entre os
valores formais desses filmes e o que Wood chama a banalidade de seu
"conteúdo humano", e não esqueçamos que a mesma comparação
já fora feita por um historiador de arte como Panofsky, que certamente
entendia de catedrais (ver Panofsky, 1947). O
que nos interessa nessa aproximação dos dois elementos não é tanto a
nobilitação artística e cultural do cinema, quanto o método análogo
de abordagem de duas formas diversas de arte coletiva que aí está
implicitamente sugerida. Nas catedrais góticas, mesmo os detalhes
aparentemente mais descartáveis, aqueles que "ninguém vê a não
ser Deus", contribuem para dar-nos o sentido abrangente do espaço,
para produzir aquele sentimento de levitação e transfiguração da matéria:
isto é, em poucas palavras, aquilo que se preocupa em fazer-nos
compreender a corrente da historiografia e da crítica de arte que
reivindica o método iconológico e que teve em Panofsky o seu expoente
máximo (ver Calabrese 1985, 21-33). Tal método se articula em dois
planos: num primeiro nível (iconografia), os elementos espaciais e
figurativos são decifrados em função de suas fontes (culturais, literárias
ou filosóficas); num segundo nível (iconologia), eles são
interpretados como "formas simbólicas” (as formas visíveis
relacionadas com determinadas concepções do mundo, da realidade ou da
própria arte). Coisa
semelhante faz Wood quando analisa um motivo figurativo comum a muitos
filmes noir dos anos 40 e 50: a presença obsessiva dos espelhos e, em
geral, de superfícies refletoras que mostram as personagens segundo
perspectivas incertas e estranhas. Wood se interroga sobre esse motivo,
baseado num jogo de combinação entre realidade e aparência num mesmo
plano e tratado muitas vezes com notável elegância formal mesmo em
filmes banais. Localiza sua fonte na herança do cinema expressionista
alemão, mantida através
da "presença em Hollywood de muitos diretores alemães ou que
tinham trabalhado na Alemanha ou sofrido a influência de quem havia
trabalhado na Alemanha" (Wood, 1975, 109). Interpreta seu
significado como a afirmação de um universo de aparências em que
nenhuma certeza é possível e os dados mais comuns da experiência
visual cotidiana estão sempre a ponto de transformar-se num trompe-l’oeil,
num enigma inquietante. Mas Wood vai além e chega a ver nesses jogos de
imagens refletidas uma alusão ao próprio meio cinematográfico: eles
nos obrigam a interrogar-nos sobre a posição da câmera de filmar e
também sobre a própria natureza dessa máquina, sobre suas
possibilidades de engenho que manipula as aparências e transgride a
ordem aparente da visão comum (Wood, 1975, 112). Vimos
um exemplo de como uma análise atenta de um motivo figurativo nos
explica por que às vezes os filmes nos dizem mais do que aquilo que
parecem dizer à primeira vista; existiria um significado que pode ser
diverso daquele que podemos chamar de significado literal do enunciado
narrativo. É exatamente por esse caminho que o cinema hollywoodiano clássico,
mesmo em suas manifestações mais comerciais, conseguiu fugir das várias
censuras ideológicas e estéticas, objetivas e subjetivas, impostas nos
vários níveis da criacão e da realização. Em
profunda relação com os aspectos figurativos estão os narrativos. Os
gêneros cinematográficos, em analogia com os literários e com a tradição
dos mitos e dos contos populares, apresentam uma série de elementos
constantes, e que podem conduzir às funções desempenhadas pelas
personagens no desenvolvimento do enredo. Segundo tal perspectiva, o
estudo dos gêneros pode servir-se dos métodos elaborados na análise
das formas narrativas tradicionais através da classificação das funções
desempenhadas pelas diferentes personagens (actantes, na
terminologia de Greimas, 1970), mesmo que, por se tratar de cinema, não
seja possível ignorar ou subvalorizar o aspecto propriamente figurativo
(Casetti, 1979, 59; Campari, 1983, 18-19). Através
de uma abordagem desse tipo podem ser identificadas estruturas
narrativas recorrentes, por exemplo, em gêneros como o melodrama ou a
comédia. Como demonstrou Campari, o herói típico do melodrama
representa a função do "amor impossível", reconhecível
sobre as variantes mais ou menos complexas ou intrincadas apresentadas
pelo enredo, enquanto o da comédia representa a função do "amor
conquistado", se bem que as etapas da conquista não sejam definíveis
em termos de "provas difíceis", "aventuras" ou
contrastes sociais, mas sim de temperamento, caráter, papéis etc.
(Campari, 1980, 23-52 e 42-49). . . . E o vento levou (1959)
seria definido como um melodrama estruturado sobre o tema do amor impossível,
"o de Rossella" (Vivien Leigh) por Ashley (Leslie Howard), que
imprevistamente se dilui, no final, quando se torna realizável
(Campari, 1980, 24). Enquanto em Núpcias de escândalo (1940), de
George Cukor, é possível descobrir, sob as formas leves da comédia, a
estrutura da fábula A bela adormecida: assim é de fato Tracy, princesa
infeliz, antes que um jovem estranho a seu mundo, o jornalista Mike
(James Stewart), venha despertá-la, revelando sua feminilidade e a
capacidade de amar mesmo sem colher depois o fruto de sua intervenção,
um pouco pelo moralismo daquele tempo, e também porque o jornalista não
atinge o papel de "príncipe" (Campari, 1980, 4445). Naturalmente
o sistema dos gêneros cinematográficos, embora possa ser estudado em
suas constantes e nas invariantes que permanecem após mutações
superficiais, vivo numa relação dinâmica com a situação política,
social e cultural. Segundo
tal perspectiva que privilegia o aspecto ideológico, serão
evidenciadas as relações entre as temáticas dos gêneros e
determinadas linhas de tendências políticas, econômicas etc. Segundo
uma exemplificação fornecida por La Polla (1978), podemos notar
como o western retrata o modelo do desenvolvimento
"expansionista e colonialista" dos Estados Unidos, enquanto o
cinema de ficção científica será o gênero "passível, mais que
qualquer outro, de uma leitura política em clave contemporânea durante
o macartismo e o perigo vermelho". Da mesma forma, "será possível
ler o musical não só como sinal superficial de fuga fantástica, mas
também como tradução em termos decididamente espetaculares dos vários
protagonistas ideais que se sucederam na ribalta da vida nacional";
ou "será possível identificar no filme de guerra não apenas a
figura imediata do imperialismo americano, de seu militarismo neurótico,
de sua expressão no Oriente, mas também a intenção da conquista de
um mercado cinematográfico através do contrabando de violentas
mitologias mascaradas de defesa da liberdade." (La Polla, 1978,
185-197).
Três exemplos: melodrama, noir e western Certamente
o fenômeno dos gêneros diz respeito ao cinema em todos os países e a
narrativa cinematográfica o compartilha com outras formas expressivas
pré-existentes, como a literatura e o teatro. Todavia, pode-se notar
que cada cinematografia valeu-se de gêneros que melhor a representam e
que melhor exprimem as características originais da cultura nacional.
Tais são os casos, no cinema italiano dos anos 50 e 60, da comédia,
famosa junto ao público de todo o mundo como "comédia à
italiana" ou, no cinema francês dos anos 50 e 40, do "drama
social." Quais
são os gêneros mais típicos da "idade de ouro" de
Hollywood? Todo cinéfilo tem suas idéias precisas a propósito e cada
crítico adota um esquema de classificação mais ou menos complexo e
sofisticado, mas seguramente diferente do usado por seu colega.
Limitando-nos a uma bibliografia italiana facilmente acessível,
encontraremos quem (Ferrini, 1974) limita a tipologia dos gêneros clássicos
do cinema americano a cinco grupos (melodrama, western, filme noir,
ficção científica, musical) e quem, ao contrário (Campari, 1980)
articula sua classificação contemplando uma tipologia mais ampla e
denominações mais específicas (romance-melodrama, histórias para família,
aventuras,comédia, musicais, os campeões, policiais, western,
filmes de guerra, o fantástico). Referindo-nos
a essa última tipologia, poderemos observar que gêneros como o
melodrama ou a comédia, que Hollywood elevou a uma espécie de perfeição
no período aqui tomado em consideração, se desenvolveram também pela
contribuição de influências heterogêneas como aquela, determinante,
dos diretores europeus emigrados para Hollywood, comprovando a
capacidade do sistema de gêneros de amalgamar os mais diferentes
componentes culturais. Mais ainda do que na comédia brilhante, à qual
a arte de Ernest Lubitsch deu uma contribuição insubstituível, embora
seu "toque" fosse irrepetível, foi no melodrama que o fenômeno
teve maior relevo. Por exemplo, o austríaco Max Ophüls é o diretor de
Carta de uma desconhecida (1948), um filme que é um verdadeiro
modelo do gênero pela narração de um amor impossível feita em voz off
pela protagonista (a desconhecida de que fala o título) e,
sobretudo, graças a uma cenografia e a uma iluminação bastante
estilizadas e que reconstroem em estúdio ambientes e fragmentos da
Viena do século XIX. O
dinamarquês Douglas Sirk é o autor de alguns dos melodramas que
ilustram melhor as características temáticas e figurativas do gênero:
Palavras ao vento (1956) apresenta um complexo enredo em que se
misturam petróleo, sexo, álcool e no qual o sentido de onipotência
que parece ser prerrogativa da classe social dos protagonistas se traduz
numa espécie de fúria auto-destrutiva a que eles parecem destinados.
Como se pode observar, trata-se de um verdadeiro protótipo das mais
recentes novelas da televisão, como Dallas, as quais, do ponto de vista
figurativo, não conservam nem uma pálida imagem do conjunto de regras
de composição próprias da encenação do melodrama hollywoodiano clássico:
um rigoroso controle dos valores emotivos e simbólicos dos espaços e
dos objetos; cuidadosa pesquisa dos efeitos da composição plástica e
cromática do enquadramento; sistemática utilização dos efeitos de
intensificação melodramática das situações por meio de um
equilibrado uso da montagem e da música. De Palavras ao vento se
poderia citar a seqüência em que Marylee (Dorothy Malone) interpreta
em sua sala uma dança desenfreada, enquanto uma montagem alternada nos
mostra a simbólica escada da mansão, onde o pai da moça, ao subi-la,
irá encontrar a morte por ataque cardíaco. Contudo,
penso que as mais originais expressões do melodrama cinematográfico
hollywoodiano devem ser buscadas naqueles casos, que aliás não são
raros, em que o gênero não se apresenta em estado puro mas sim
contaminado por outros gêneros, melhor ainda quando mais fortemente
apoiados na tradição cultural americana: com o gênero épico-histórico
em . . . E o vento levou (1939), com o filme noir em Gilda
(1946), com o western em Duelo ao sol (1946) ou Johnny
Guitar (1954). Entre
os gêneros clássicos do cinema americano, noir e western
são seguramente os mais típicos e, não obstante a notável
diversidade da ambientação (o espaço urbano e a “pradaria”),
acham-se intimamente ligados por uma relação de complementaridade. Em
ambos os gêneros o tema central é o conflito entre a lei e o arbítrio,
a inocência e a corrupção, entre as regras da convivência civil
(civilização) e o universo dos sem lei ou fora-da-lei, um mundo
selvagem e primitivo (selvageria). A grande vitalidade e riqueza dos
dois gêneros está em mostrar a incerteza das fronteiras entre o mundo
da civilização e o da selvageria, embora as regras do gênero e o
moralismo codificado imponham sempre um final positivo e edificante. Do
ponto de vista narrativo, o filme western põe em confronto o
colono branco e o índio, a comunidade ordenada com suas regras de vida
e o "fora-da-lei", o "pistoleiro" que vêm perturbar
a ordem; o vingador ou um grupo de vingadores e as vítimas designadas
por uma justiça sumária, que muitas vezes acaba no puro e simples espírito
de vingança sem outra lei senão o fuzil ou o cabresto. Esse
grande tema do precário equilíbrio entre uma lei a ser instituída,
imposta ou conservada e a violência interna ou externa ao grupo ou à
comunidade, encontra sua expressão no universo figurativo do western.
O espaço do western é o espaço da "fronteira", um
dos "mitos fundadores da nação americana", retomando o título
de um famoso estudo de E. Marienstras (1976). A
fronteira é a perene mobilidade dos confins, a quimera da conquista de
um novo território e da aventura. O espaço do Oeste é um espaço
perenemente descentralizado. O próprio herói do Oeste entra em ação
vindo não se sabe de onde e abandonando a cena no final: trata-se
literalmente de uma passagem. Se a ordem e a lei são restabelecidas, se
trata sempre de uma estabilidade em que não há lugar para o herói,
que no fim sempre vai embora. Freqüentemente, ele deixa uma mulher que
o ama: a mulher, símbolo de estabilidade, se contrapõe o cavalo,
promessa de aventura e solidão para o herói: no final de Paixão de
fortes (1946), de John Ford, Clementine (Cathy Downs) permanece na
cidade do interior como professora, enquanto Wyatt (Henry Fonda) retoma
sua viagem em direção a novas aventuras. O espaço do western
está estruturado e medido na base do movimento, da transição, das
mutações. A planície atravessada pela caravana dos colonos; os vaus
para o gado; as passagens dos canyons com os perigos das
emboscadas; a main street sobre a qual converge a vida da cidade
ou da aldeia, mas sempre considerada lugar de passagem e de transição:
aqui, por exemplo, acontecem as correrias dos fora-da-lei entre o banco
e o saloon, aqui param aventureiros e aqui ocorrem os acertos de
conta, aqui convivem a necessidade de estabilidade e a mobilidade da
fronteira. Mas o espaço que resume e melhor simboliza a mobilidade do
Oeste é o da ghost town, a "cidade fantasma"
abandonada por seus habitantes, que foram buscar em outro lugar a
promessa de conforto e estabilidade: entre as mais sugestivas ghost
town do western, podemos recordar as de Céu Amarelo (1948),
de William A. Wellman. O homem do Oeste (1958) de Anthony Mann, e
Duelo na cidade fantasma (1958), de John Sturges ver Bellour,
(1969, 171-72). Complementar
do gênero western, já o dissemos, é o filme noir. Essa
etiqueta de gênero (noir) é uma invenção francesa, tem uma
origem banal "negro era a cor das capas da coleção de romances
policiais de maior sucesso, exatamente como aconteceu com o "giallo"
na Itália), mas acabou sendo aceita pelos próprios americanos. Sob
a etiqueta noir podem ser abrangidos vários gêneros, ou melhor,
subgêneros: policiais, filmes de gângster, histórias de detetives, thrillers
etc. Traço comum desses subgêneros é o pôr em cena, sob vários
pontos de vista, atos criminosos e criar em torno do crime acentuado
clima de suspense: sobre o sucesso da ação criminosa, sobre a
descoberta do culpado, sobre a motivação do delito. Do
ponto de vista iconográfico, como escreve M. Vernet, existe uma
predominância absoluta do universo mineral (rochas, cimento,
asfalto),"junto ao aço e a noite, na qual os contrastes de luz e
os efeitos fulgurantes contribuem para definir os "contornos do gênero"
(vários autores, 1975, 56). No
período de tempo aqui considerado, registra-se uma dominância de um ou
de outro subgênero, segundo uma lógica de desenvolvimento que, mesmo
com a permanência de algumas características de fundo, mostra
claramente as ligações do gênero com a evolução da sociedade
americana e da instituição cinematográfica. No
início dos anos 30, registra-se o domínio do filme de gângster, o que
se pode relacionar com o desenvolvimento sem precedentes na sociedade
americana da criminalidade organizada ligada ao tráfico ilegal de
bebidas alcoólicas induzido pela Lei Seca. O gângster é um herói típico
da mitologia urbana, do mesmo modo como o fora o "pistoleiro"
no mundo rural da fronteira.
O cinema, sob o impulso dos outros meios de comunicação de
massa define sua iconografia. Com o cinema sonoro, a ambientação
urbana se enriquece com o repertório de rumores: tiroteios, arranhar de
pneus no asfalto, vidros quebrados, que, junto com ambientes fechados,
sombras projetadas nas paredes, asfalto molhado, feixes de luz dos faróis
dos automóveis, tornam-se a marca registrada do gênero. Filmes como Inimigo
público (1931), de William A. Wellman, Alma do lado (1931),
Mervyn Leroy, Scarface, vergonha de uma nação (1932),de Howard
Hawks, são considerados os arquétipos do gênero, inclusive do ponto
de vista ideológico. O
dado mais evidente que marca a impossível integração desses marginais
no sistema de valores dominantes (dinheiro, poder, sucesso) é a
analogia entre sumas carreiras e as de qualquer outro cidadão disposto
a subir na vida, o que esses filmes sublinham, sugerindo portanto a noção
de uma incerteza entre os limites da legalidade e da ilegalidade e de
uma simetria e um efeito de espelho entre sistemas legais e ilegais de
poder. Não
foi por acaso que esses filmes se viram perseguidos e submetidos a várias
censuras, tanto que logo se preferiu centrar as narrativas de ações
criminosas sobre as figuras de policiais ou de detetives privados. A
tradução para a tela dos romances de Dashiel Hammet e Raymond Chamdler
provocou o grande florescimento do gênero noir dos anos 40. A
relíquia macabra (1941), de John Huston, Até a vista, querida
(1944), de E. Dmytrik, À beira do abismo (1946), de Howard
Hawks, são alguns clássicos do gênero detective story. Também
nesses casos é a ambigüidade, ou seja, a adoção de formas dotadas de
uma pluralidade de significados, que preside à construção desses
universos narrativos e figurativos, levando a considerá-los entre os
mais ricos e fascinantes dentre os que foram produzidos pelo cinema. Ambigüidade
acima de tudo da personagem do detetive: ele vive um papel de incerta
definição, tanto é assim que é olhado com suspeita pela política,
que o considera uma espécie de gângster camuflado, e pelos bandidos,
que o consideram como parte da polícia. Humphrey Bogart, o rosto com o
qual nos habituamos a imaginar o Sam Spade de Hammett (ver A relíquia
macabra) e o Philip Marlowe de Chandler (ver À beira do abismo),
resume perfeitamente essa ambigüidade de papéis: cai sua gestualidade,
no trejeito amargo do rosto, no melancólico distanciamento das ações
em que se vê implicado. Ambigüidade figurativa: o universo da violência,
do vício, da corrupção, que nesses filmes é apresentado com as ampliações violentas e excessivas dos contrastes de luz de
uma ambientação noturna e de uma simbologia elementar, não está
nunca separado de um certo fascínio, mistério, aventura. Finalmente,
ambigüidade na relação que se estabelece entre a solução do enigma
criado pela narração e uma verdade mais ampla e profunda que o clima
figurativo do filme contribuiu para evocar e a respeito da qual o
detetive não tem instrumentos de nenhum tipo. Essa "impotência"
do herói é simbolizada na situação inicial e final de Até a vista,
querida, em que vemos Marlowe (agora interpretado por Dick Powel) com os
olhos vendados por causa de um incidente sofrido durante o tiroteio que
decide a situação: a ação, bastante intrincada e rica de suspense,
é narrada, idealmente, do "ponto de vista de quem não pode
ver". Não por um acaso os diretores que retomaram, nos anos 70, o
gênero noir, voltaram a
evocar o motivo da ferida, da cicatriz: assim, em Chinatown
(1974), de Roman Polanski, o detetive interpretado por Jack Nicholson
sofre um corte no nariz e é obrigado a usar um band-aid durante boa
parte do filme (o corte é feito por um sicário interpretado pelo próprio
Polanski); e em O perigoso adeus (1973), de Robert Altman,
Marlowe (interpretado por Elliot Gould) nos é mostrado, depois de um
acidente, todo enfaixado. O
NEO-REALISMO ITALIANO "Os
filmes de amanhã serão rodados pelas ruas", diz o diretor Ferrand
em A noite americana (1973), de François Truffaut: num filme que
é uma melancólica e terna evocação do cinema feito nos estúdios,
sempre um pouco artificial e maneirista, Truffaut não deixou de render
uma homenagem à revolução estética que foi o neo-realismo italiano e
que tanto peso teve, através da aprendizagem com André Bazin, na sua
formação cinematográfica. O
cinema rodado pelas ruas, os atores apanhados na rua, a realidade fixada
sem manipulações e sem preconceitos ("A realidade está lá. Por
que manipulá-la?", era o estribilho rosselliniano mais citado
pelos jovens críticos franceses): estas são algumas das fórmulas
dentro das quais se tentou sintetizar a experiência do cinema
neo-realista italiano. Nem
sempre é possível encontrar a concretizacão de tudo isso nos textos fílmicos.
Por exemplo, Roma, cidade aberta (1945), o filme de Rossellini
considerado o protótipo da nova tendência, recorre à interpretação
de profissionais de consumada experiência como Anna Magnani e Aldo
Fabrizi; além disso, ele não recusa os efeitos de acentuação dramática
obtidos através de um uso da montagem não distante da chamada
decupagem clássica; quanto a preconceitos ideológicos, as vivências
paralelas e entrelaçadas de um intelectual comunista e de um padre católico
buscam incessantemente o efeito de envolvimento humanista: o filme
termina com um grupo de crianças que, depois de ter assistido à execução
de Dom Pietro (Fabrizi), se dirige para a cidade, enquanto a câmera
enquadra uma paisagem urbana nitidamente dominada pela cúpula de São
Pedro. E,
contudo, o impacto produzido por Roma, cidade aberta e,
principalmente Paisà (1947), de Rossellini, Vítimas da
tormenta (1946) e Ladrões de bicicleta (1948), de De Sica, e
por todos aqueles filmes (de De Santis, Zampa, Lattuada) que, de várias
maneiras, contribuíram para propagar pelo mundo a imagem da Itália que
saía do fascismo com as lacerações da guerra, da ocupação alemã,
de um atraso endêmico, foi enorme. Aquela que foi imediatamente chamada
de "escola italiana" tornou-se um ponto de referência obrigatório
para definir os novos rumos da estética do filme, como no passado
tinham feito a "escola soviética" dos anos 20 ou o
expressionismo alemão ou o "realismo poético" do cinema
francês entre as duas guerras. Para
documentar-nos sobre o espírito com o qual foi acolhida fora da Itália
a nova experiência do cinema italiano, permanece até hoje como o
melhor texto "Le réalisme cinémato graphique et l’école
italienne de la Libération”, publicado pelo crítico e teórico
francês André Bazin em 1948, na revista Esprit (in Bazin,
1958-62, 275-303). Bazin
não foi somente um grande apreciador no neo-realismo; seu método de análise
do filme e sua teoria estética, para cuja formação contribuíram
grandemente os filmes neo-realistas italianos juntamente com as obras de
William Wyler e Orson Welles, influenciaram o nascimento da nouvelle
vague e o desenvolvimento do cinema moderno. No ensaio dedicado ao
neo-realismo, Bazin se detém a analisar sobretudo a técnica narrativa,
procurando definir a relação da câmera (tipo de enquadramento e de
cortes entre os planos, movimentos de câmera, com os fatos narrados, o
ambiente, os objetos. Servindo-se de comparações com a técnica dos
romancistas americanos como Faulkner, Hemingway, Dos Passos ou de um
pintor como Matisse, Bazin trata de demonstrar que a câmera tornou-se
uma coisa só entre o olho e a mão que a conduzem: dessa forma, a narração,
que nasce de uma necessidade "biológica" antes de ser
"dramática", germina e cresce com a veracidade e a liberdade
da vida (Bazin, 1958-62, 292). É
sobretudo num filme como Paisà (1946), de Robert Rossellini, que
Bazin vê realizar-se a mutação que diz respeito às próprias
modalidades de construção da narrativa cinematográfica. A
unidade da narração cinematográfica em Paisà não é o plano,
ponto de vista abstrato sobre a realidade que se analisa, mas o
"fato". Fragmento de realidade bruta, múltiplo e equívoco em
si mesmo, cujo "sentido" aparece só a posteriori graças a
outros fatos entre os quais o espírito estabelece relações. Sem dúvida,
o diretor escolheu bem entre estes "fatos", mas respeitando a
sua integridade de "fato" ( Bazin, 1958-62, 299). Naturalmente
se trata de uma interpretação parcial do neo-realismo e, se bem que
centrada principalmente em Rossellini, permanece como uma das mais
sugestivas, porque lança uma ponte entre a experiência neo-realista e
as experiências mais avançadas do cinema moderno, freqüentemente pré-figuradas
e antecipadas pelo trabalho crítico e teórico de Bazin. Mais
complexo se torna o problema se olharmos o fenômeno neo-realista mais
de perto, em suas implicações políticas, ideológicas e culturais e
em relação com a situação vivida pelo cinema italiano antes da queda
do fascismo. Antes
de mais nada, o neo-realismo não é todo o cinema italiano do segundo pós-guerra.
É seu componente mais conhecida e culturalmente de maior prestígio,
mas a sobrevivência e o próprio desenvolvimento da instituição
cinematográfica italiana estiveram ligados a outros componentes, como o
chamado cinema de gênero e de consumo, com o qual, aliás, o
neo-realismo teve contínuas relações de troca. O
neo-realismo não nasce de uma espécie de tábula rasa a respeito do
cinema precedente, isto é, o cinema do regime fascista. Pelo contrário,
existem não poucos elementos de continuidade com o cinema precedente. O
apelo a uma realidade cotidiana, aos traços "regionais" e
"aldeãos" da vida nacional (contrapostos ao cosmopolitanismo
cinematográfico e literário), tinha sido um componente importante do
debate cultural do período fascista, por exemplo, nos textos de Leo
Longanesi e em muitas intervenções publicadas na revista Cinema,
dirigida pelo filho do duce, Vittorio Mussolini (Mida Quaglietti,
1980). Aspectos da realidade "humilde" e "despossuída"
tinham encontrado expressões tanto nos filmes "rurais" de
Alessandro Blasetti (Sole, 1929 e Terra Madre, 1931),
quanto nas comédias de Camerini (Gli uomini che mascalzoni...,1932,
Grandi Magazzini, 1939 etc. ) ou em O coração manda
(1942), do mesmo Blasetti. A
defesa de um cinema nacional, popular e realista feita sobre as páginas
de Cinema nos dois ou três anos imediatamente anteriores à queda do
fascismo era mais do que compatível com o regime, tanto que coincidia
com a exaltação de filmes indubitavelmente publicitários como Sole
(1929) e Vecchia Guardiã (1934), de Blasetti, ou La nave
bianca (1941), de Rossellini. Eis-nos
portanto no centro de uma das contradições mais agudas da própria gênese
do neo-realismo. Ugo Pirro, um dos roteiristas mais prestigiados do
cinema italiano das últimas décadas, comenta, num livro de evocação
do nascimento do neo-realismo, esse fato: Que,
justamente numa revista assinada por um Mussolini se juntassem os jovens
cineastas mais abertos ao novo e todos com a carteira comunista
escondida entre os livros, pode surpreender não só a estrangeiros.
Assim como permanece o segredo nosso inteiramente italiano e só para nós
compreensível, que tenha cabido a um homem que deu duro trabalhando em
filmes de propaganda fascista rodar o filme que daria início a
extraordinária estória do neo-realismo italiano: Roberto
Rosselini(Pirro, 1983, 14-15).
Além
das vivências pessoais, políticas e culturais dos homens que deram
vida ao movimento de renovação do cinema italiano, o neo-realismo deve
ser visto, mais do que um movimento orgânico e unitário, como uma
extraordinária afirmação do meio cinematográfico, que se demonstrou
capaz, mesmo no âmbito das convenções narrativas adotadas pela quase
totalidade dos filmes daquele período, de captar a mutação do cenário
humano e visual, mais até que do político. De fato, um dos pontos
fortes do neo-realismo foi a capacidade de assimilar e adaptar à
realidade italiana modelos cinematográficos e literários dos mais
diferentes, num clima de frenética atualização vivida como reação
ao fechamento da cultura oficial fascista. Já
no âmbito das instituições cinematográficas do fascismo (as revistas
Cinema e Bianco e Nero, o Centro Sperimentale di
Cinematografia, isto é, a escola para a formação dos quadros técnicos
e artísticos), críticos como U. Barbaro, L. Chiarini e F. Pasinetti
tinham promovido um grande trabalho de atualização, dando a conhecer
os aspectos mais avançados das cinematografias de todo o mundo e
promovendo o estudo e aprofundamento dos aspectos teóricos do cinema
(com a tradução de textos de Pudovkin, Eisenstein, Balázs e Arnheim). Obsessão
(1943), filme de estréia de Luchino Visconti, considerado por muitos
como a obra que antecipou, antes da queda do fascismo e do final da
guerra, temas e estilos do neo-realismo, e uma obra seguramente
importante pelo fato de mostrar ângulos perdidos da província italiana
(os arredores de Ferrara), de filmar as cenas externas nos próprios
locais da ação e de romper com os esquemas de composição do cinema
italiano precedente. Mas o elemento de maior novidade consiste em
assumir conscientemente modelos explícitos de referência que são inéditos
no panorama do cinema italiano: primeiro, a narrativa americana (o filme
é extraído de um romance de James Cain, O destino bate à porta,
com um enredo denso e envolvente, com uma linguagem nítida e tensa); o
cinema francês, em particular a obra de Jean Renoir, um autor conhecido
por Visconti durante sua permanência na França, que tinha feito
originais interpretações cinematográficas do naturalismo literário
do século XIX (A besta humana, 1938, extraído de Lá bête humaine,
de Émile Zola) e que, sobretudo com Toni (1934), tinha dado uma
nova importância, e com grande eficácia para a ambientação, à
paisagem, às condicões de vida de uma comunidade do interior. Em
outros termos, um filme como Obsessão exprime, além da
necessidade de descobrir a realidade esquecida pela literatura e pela
propaganda, a necessidade de entrar em contato com novos modelos de
interpretação. Uma necessidade de abertura intelectual e moral que não
atingiu só o cinema e que foi expressa com estas palavras por Cesare
Pavese, numa nota escrita em 1946; "Nós descobrimos a Itália(...)
procurando os homens e as palavras nos Estados Unidos, na Rússia, na
França e na Espanha” (Pavese, 1968, 223). Foi esse clima de abertura,
que comportou também um certo ecletismo, o dado mais relevante da breve
fase neo-realista, durante a qual se afirmaram os autores que fizeram o
cinema italiano circular pelo mundo e que elaboraram uma série de
modelos expressivos capazes de tornar possível um intercâmbio contínuo
entre evolução da sociedade italiana e cinema. Nesse sentido se pode
afirmar que, durante cerca de trinta anos após o fim da guerra, o
cinema italiano conseguiu interpretar as mudanças, os humores e as
contradições da sociedade. A
profunda ligação entre a crônica e os costumes talvez seja o traço
comum entre as diversas personalidades que deram vida ao movimento.
Nesse sentido, um papel fundamental foi desempenhado por Zavattini, que
foi o roteirista de todos os principais filmes de De Sica (entre os
quais Ladrões de bicicleta, 1948, Milagre em Milão,
1951, Umberto D., 1952), mas que colaborou com todos os
principais diretores (de Visconti a De Santis, de Blasetti a Zampa,
Germi etc.) e desenvolveu uma intensa atividade como autor de propostas,
de reflexões teóricas, constituindo o elo de ligação entre cinema,
literatura e jornalismo e de cuja interação derivam muitas das
características originais do nosso cinema do pós-guerra. Junto
à atividade de Zavattini deve ser recordada a de muitos outros
roteiristas que, talvez com menor genialidade inventiva mas com alto
profissionalismo, moveram-se na mesma direção: Amidei, Cecchi
D’Amico, Flaiano, aos quais é preciso acrescentar as temporárias
colaborações com o cinema de escritores como Brancati, Fabbri, Berto,
Pratolini etc. Mas,
além das declarações programáticas e das técnicas de criação e
projeção-promoção dos filmes em que aparece mais nítida a aproximação
entre cinema e jornalismo, é evidente que a adesão ao dado de crônica,
que muitas vezes representa apenas um puro e simples ponto de partida,
adquire significados diversos no estilo de cada diretor. Por
exemplo, no Rossellini da chamada "trilogia da guerra" (Roma,
cidade aberta, 1945; Paisà, 1947; Alemanha, ano zero,
1948) são a reação moral e o dado comportamental que traduzem uma
escolha que é sempre interior e muitas vezes trágica, a constituir o
fio condutor, como já aparece claro a partir do último da série (Alemanha,
ano zero) e como se definirá na posterior "trilogia da solidão"
(Stromboli, 1949; Europa 51, 1952; Romance na Itália,
1953). No
cinema da dupla Zavattini e De Sica, os dados mais comuns da existência
cotidiana, colhidos com tons aparentemente discretos e crepusculares,
sofrem uma transfiguração surreal, de fábula cheia de humores ora patéticos,
ora grotescos. No caso de Visconti que, após a estréia de Obsessão
(1943) silencia, ao menos cinematograficamente, até 1948, quando
conclui La terra trema, as ligações com os dados de crônica e
documentaristas aparecem hoje como não essenciais, embora fossem na
altura enfatizados pela crítica, em relação a sua extraordinária
capacidade de assimilar, num elegante maneirismo, modelos retirados da
tradição literária, pictórica e musical do século XIX e do início
deste século. No
cinema de De Santis, as intenções documentaristas e a pretensão de
objetividade sociológica expressa através da autenticidade da ambientação,
serão abafadas por um gosto pelo enredo melodramático e pelo enfoque
espetacular da paisagem, do erotismo, do folclore. É a De Santis que se
deve a mais singular contaminação entre instâncias ideológicas do
neo-realismo (para cuja definição ele deu uma contribuição
determinante) e os mecanismos de funcionamento do sistema cinematográfico
(estrelismo, cinema de gênero etc.). Isso conquistou para seus filmes,
em particular para Arroz amargo (1949), um sucesso internacional sem
precedentes, provavelmente graças à combinação especial entre os
mitos arcaicos de uma cultura camponesa e a ênfase espetacular das técnicas
e dos mitos da cultura de massa. Sem
dúvida, a imagem do neo-realismo como expressão de um momento heróico
de antecipação de uma mudança radical da sociedade italiana, por um
lado, e, por outro, de cancelamento de qualquer tradição e convenção
cinematográfica, numa espécie de ligação direta com a realidade
cotidiana, encontra mais ressonância na crítica e na ideologia
neo-realista do que nos textos fílmicos. O
certo é que muitas das esperanças quanto ao florescimento do
neo-realismo logo desapareceram. Entre as causas principais deve ser
recordado o clima de restauração política, posterior às eleições
de 1948, que produziram uma nítida afirmação o pólo conservador
representado pela Democracia Cristã, que se prolongou pelos anos 50 e não
favoreceu um cinema de oposição. Para dar uma idéia de tal clima,
bastará recordar só um episódio: o processo contra Renzi e
Aristotarco (1954), réus de ter publicado em Cinema Nuovo um
roteiro cinematográfico com episódios pouco edificantes sobre a ocupação
italiana da Grécia (como ex-oficiais, os dois jornalistas foram presos
no cárcere militar de Peschiera e condenados por um tribunal militar!). Talvez
tenha sido inevitável que no clima de confronto ideológico que daí
resultou se desenvolvessem atitudes sectárias que, com o passar do
tempo, ameaçaram absorver cada grupo somente na defesa de um dogma estético. Foram
necessários os ataques conjugados da nova vanguarda dos anos 60 e, numa
outra vertente, da nova crítica de inspiração marxista, que submeteu
a uma revisão a tradição populista da cultura italiana (Asor Rosa,
1965), e posteriormente o amplo processo de revisão historiográfica
iniciado com o convênio e a retrospectiva da Mostra Internazionale
di Pesaro de 1974 (ver L. Micciché, 1975 b), para que toda a fase
do neo- realismo e do cinema dos anos 50 fosse vista segundo novas
perspectivas, mais atentas às peculiaridades e à complexidade da
instituição cinematográfica. Por
exemplo, no mais recente e completo quadro histórico do cinema
italiano, traçado por Brunetta (1979; 1982), a idéia do breve ciclo
histórico do neo-realismo, se não é posta de lado, é, pelo menos,
integrada por aquela historicamente mais rica e complexa do processo
""de transformação lenta e de mais ampla duração que parte
de antes da Primeira Guerra e se estende até os anos 50, associando-se
no final da década ao novo impulso provocado por uma verdadeira mudança
profissional e produtiva" (Brunetta, 1982, 369). Nessa
perspectiva, sem sacrificar nada da originalidade e da peculiaridade do
estilo dos autores que são associados ao florescer do neo-realismo, é
possível encurtar as distâncias entre as "práticas altas" e
as "práticas baixas", ou seja, entre as expressões
qualitativa e estilisticamente mais significativas do cinema de autor e
a produção média do cinema de gênero, e pôr o problema da definição
de um "olhar neo-realista" que permeia o cinema do período
(Brunetta, 1982, 313-336). Muitos
dos anátemas pronunciados no curso dos anos 50 já caíram. Hoje, para
quem queira conhecer e apreciar o espírito de uma época, colher as
características originais do imaginário cinematográfico italiano, mas
também dos costumes e da vida cotidiana, existem novas etapas obrigatórias
(que antes a crítica, com ortodoxa cartilha neo-realista, teria
vivamente desaconselhado). Pode-se
começar com o chamado "neo-realismo rosa" que é a comédia
popular, que, mais do que uma involução do neo-realismo, deve ser
encarado como atualização para uma nova linguagem de uma tradição
bem viva em nossa cultura. Alguns títulos fundamentais: É primavera
(1949), Due soldi di speranza (1952), de Renato Castellani; Pão,
amor e fantasia (1953) e Pão, amor e ciúme (1954), de Luigi
Comencini; Pão, amor e...(1955), de Dino Risi. Não
menos interessante pode revelar-se a revisão do chamado
"neo-realismo de apêndice" que tem em Raffaello Matarazzo seu
campeão, objeto de recentes reavaliações e de reiteradas repulsas (Aprà
e Carabba, 1976). Sem dúvida Matarazzo e outros diretores como
Costa, Brignone etc. levam a um ponto de efervescência as temáticas e
o estilo do melodrama cinematográfico, com amplas zonas de adequação
ao que podemos chamar de linguagem comum da iconografia neo-realista. Títulos
fundamentais: a trilogia de Matarazzo (Mulher tentada, 1950; Tormento,
1951; Filhos de ninguém, 1952), à qual podem ser acrescentados
vários melodramas de qualidade desigual, mas reunidos através de
misturas especiais entre realismo da ambientação e provocação erótica,
desde Sensualidade (1952), de Clemente Fracassi, até A loba (1953),
de Alberto Lattuada. E
finalmente Totò, cuja reavaliação, que teve em Fofi seu mais
fervoroso defensor (Fofi e Faldini, 1977), implica um reexame das
relações bastante complexas e fecundas entre o cinema italiano e o
teatro de revista, as "variedades", a tradição dialetal
etc., mas também uma revisão da noção de "popular"
conforme foi usada pelos setores mais dogmáticos da crítica cinematográfica. Essa
proposta de rever o cinema do pós-guerra, detendo-nos também ao lado e
à margem da experiência neo-realista num sentido estrito, não é só
um convite a uma visão global da instituição cinematográfica, mas
também à recuperação de um olhar irônico, daquela ironia que faltou
nos anos passados ao mau humor das simplificações ideológicas de
ambos os lados e sem a qual é impossível folhear hoje um repertório
iconográfico do cinema de então (ver Pellizzari, 1978). Aquela
ironia que encontramos nas páginas do romance La vita agra
(1962), de Luciano Bianciardi, no qual o protagonista conta como o
diretor de um jornal, para recusar uma proposta sua, explica-lhe com
argumentos incríveis a passagem histórica, realizada por Sedução da
carne (1954), de Visconti, da crônica para a história, do neo-realismo
ao realismo. Ou
então a afetuosa ironia com que o crítico cinematográfico Tullio
Kezich narra o "drama" da geração dos jovens daquela época,
que se auto-condenou a ver escondida os filmes de Humphrey Bogart e a
fazer debates públicos sobre as colhedoras de arroz que eram impostos
pela estética neo-realista: Para
muitos de nós, Bogart era um ídolo. No final das contas, nós nos
reservávamos um espaço privado para apreciar o cinema como ele deve
ser apreciado, sem cerimônias, sem ter para cada filme a resposta
pronta no bolso, sem ter de aplicar obrigatoriamente a etiqueta política
a tudo. Às vezes, no grupo de cinema, apresentávamos Páscoa de
sangue, com a presença do autor. Tínhamos sonhado fazer um debate
sobre Humphrey Bogart. Mas os debates se faziam sobre as colhedoras de
arroz (Ajello, 1979, 211).
|