Fim de caso

 

Calados, ambos.

No carro, no mundo, na noite.

Como pugilistas que se estudam; cada qual procurando o golpe mais doloroso, o castigo maior.

Quebrando o encanto, resta o desencanto; que se manifesta na sensação de vazio, no desejo de ferir.

O silêncio mútuo, que antes transmitia a gostosa sensação de nada ser preciso dizer, traz agora a triste certeza de que nada resta a dizer.

Não souberam conservar o sonho. E se perderam, ao perdê-lo para a realidade.

A chama do isqueiro cede lugar à brasa do cigarro. É preciso dizer alguma coisa, antes que o silêncio os sufoque:

- E então?

- E então o que?

- Como ficamos?

- Não sei; diga você.

Muitas interrogações, uma negação, uma transferência mútua de responsabilidades. Ele olha, disfarçadamente, as pernas da garota que passa na rua. Ela lança uma olhadela ao relógio: o tempo parece não passar.

- Você acha que a culpa foi minha?

- Não; foi minha, com certeza. Não é isto que você quer dizer?

- Nem sei.

- Estranho; você sempre sabe de tudo! Ou, pelo menos, pensa que sabe!

Uma tragada irritada;  a volta do silêncio. Na tentativa de manter o que já não existe, chegam a perder a dignidade. É como se insistissem em fazer voltar os momentos felizes do passado, esquecendo que não se pode forçar o amor.

Na verdade, apenas o medo os liga agora. Medo da solidão que desejam, da liberdade da qual necessitam. Medo da opinião dos amigos, de admitir o próprio fracasso. Magoam-se juntos, por medo de serem felizes separados.

O silêncio se adensa, torna-se quase palpável; é como se fosse uma terceira pessoa, a censurá-los por lhe permitirem estar ali.

Um soluço. Ele volta a cabeça:

- O que há?

- Nada.

- Vocês, mulheres! Por que está chorando?

De repente, liqüefazem-se as dores dela; transformam-se em lágrimas, que lhe correm pelo rosto. Não são lágrimas de amor, mas de raiva; ela não chora por ele, mas por si própria. E explode:

- Você não presta! Depois de tudo que fiz por você!...

Também dentro dele, algo se revolta. Não por perdê-la, mas por não ter sido capaz de conservar o que possuíram. Que ela se vá, que diabos! Mas por que culpá-lo, por que atirar sobre os seus ombros a carga da derrota?

- Não venha com essa, droga! Eu sempre amei você!

Amava, mesmo? E quem chega a amar, deixa de fazê-lo? Um amor de verdade se pode transformar nessa mescla de raiva e decepção? As perguntas, não formuladas, passeiam por suas mentes, enquanto os olhos trocam chispas; cada um quer que o outro seja o primeiro a abaixar o olhar. Ele olha para fora e isso a encoraja:

- Depois de todo este tempo! Eu não esperava isto de você!

- E o que esperava? Que eu continuasse a me anular, a viver todo o tempo em função das suas vontades?

- Eu sempre cuidando de você...

- Cuidando?! Quer saber de uma coisa? Você tem, na verdade, é me sufocado! Tudo tem que ser como você quer, a sua opinião é sempre a certa, você nem ouve o que eu tenho a dizer! É como se eu fosse um débil mental, incapaz de escolher ou cuidar de mim mesmo!

Desabafam, em frases cortantes, a raiva acumulada. Por tanto tempo mentiram um ao outro e a si próprios, que ainda não conseguem ser sinceros. Antes, mentiam para que o outro se julgasse melhor do que era; agora, querem que se julgue pior do que é. 

São pequeninos recalques, mágoas insignificantes. Que, multiplicados pelo tempo, assumem proporções gigantescas e os esmagam com a sua falsa enormidade. São noites insones, horas de choro, momentos de raiva.

- E você?

- Eu o que?

- O que pensa que é? Bonito, gostoso, perfeito? Abra os olhos! Se você fosse metade do que se julga, eu não teria passado pelo que passei... e você seria um homem!

- Vamos parar com as ofensas, certo? Cada qual fala de uma vez, e vamos conversar como adultos.

- Adulto? Você?! Você nunca deixou de ser um menino! Acha que os outros foram colocados no mundo para atender aos seus desejos!

- Eu? Ou você?

Na verdade, os dois. Porque respeitamos a individualidade dos estranhos e temos a pretensão de impor as nossas opiniões e vontades a todos aqueles com quem nos relacionamos; quanto maior a intimidade, mais forte o desejo de dominar. Como se alguém pudesse ser o dono da verdade!

Ele sente a garganta seca; gostaria de uma bebida. Ela adoraria estar longe dali, conversando sobre futilidades, esquecendo a dor daquela hora. Precisavam deixar-se, era urgente que se separassem.

No entanto, ninguém se decidia a dar o primeiro passo; como se o primeiro a sair fosse o responsável pelo término, como se o fato de estarem lado a lado pudesse trazer de volta o tempo em que estiveram realmente juntos. Prolongavam o sofrimento real, em nome de uma esperança absurda.

- Paulo...

- O que foi?

- Você me amou? De verdade?

Depois da tempestade de lágrimas e desabafos, a voz dela tem um tom calmo e sincero, convidando-o também à sinceridade. Ele hesita um pouco, antes de responder:

- Não sei. Na verdade, agora não sei. Mas posso garantir que gostava muito de você. E você? Acha que chegou a me amar?

- Engraçado... agora, assim, acho que eu também não sei! Eu seria capaz de jurar que sim, mas agora... não sei.

Mais do que a pergunta, o tom em que fora feita mudara a situação. Faziam os primeiros progressos: reconheciam o fim e, como sempre acontece quando chega o fim, tentavam entender o que acontecera, em busca de uma explicação que satisfizesse às suas vaidades. 

- Me dá um cigarro?

Ele acende o cigarro e tira a primeira tragada. Enquanto o entrega, observa o rosto de Marta. Percebe que ainda a acha bonita e sente um leve despertar do antigo desejo. Ela percebe o brilho em seus olhos e sorri, agradecida.

- Sabe? Renato me ligou, ontem.

Renato é um amigo comum. Paulo quase advinha o que virá em seguida; já havia notado a forma como ele olhava para Marta.

- E...

- Conversamos muito. Ele quer namorar comigo, sabe? Disse que não há sentido em que eu e você vivamos assim, numa relação que já não existe.

Paulo não saberia definir o que sente. Não é ciúme, nem raiva... uma confusa mistura dos dois. Uma sensação de nostalgia, de impotência; e, ao mesmo tempo, um estranho orgulho de comprovar que alguém cobiça a mulher que ele tivera. Ironiza:

- Grande amigo, não é?

- Ele é seu amigo, sim. Disse que me quer, mas só depois que eu e você resolvermos tudo. Não quer perder a sua amizade.

Renato: uma terceira pessoa que sofre com a situação. Na verdade, Paulo sabe que ele não tem culpa de nada. Uma terceira pessoa não pode destruir o amor de duas outras, porque o amor não explode; apenas implode. Força um sorriso:

- E você, o que disse a ele?

- Que precisava conversar com você.

- E agora?

- Eu queria uma opinião sua.

O machismo transparece na resposta dele:

- Você quer que eu mande você se jogar nos braços dele? É isso? Vá, se acha que deve, mas não diga que eu mandei!

Ela agora está calma, senhora de si. Rebate, tranqüilamente:

- Não, Paulo; não é nada disso. Acho que o que  eu queria era ouvir de sua boca que tudo terminou; que ambos estamos livres e a vida pode continuar para cada um de nós. Será que você não pode fazer isto? Por mim? Por você?

Uma pequena pausa. E Marta continua:

- Acho que não vou esquecer você tão cedo; como você também não vai me esquecer assim. Por algum tempo, ainda levaremos algo de nós: as lembranças. Todo amor deixa marcas, e algumas nunca se apagam. Mas devem ser marcas de ternura, lembranças boas; não devemos transformá-las em marcas de agressões, de sofrimento, que acabarão por nos tornar inimigos. Separarmo-nos, agora, será uma forma de nos conservarmos juntos por mais algum tempo. 

Acaricia, de leve, os cabelos dele. E seus olhos se encontram como já não o faziam nos últimos tempos: com franqueza, com compreensão, com respeito; como sempre se devem encontrar os olhos de duas pessoas.

- Desculpe, Marta. Acho que você tem razão.

Um sorriso, meio triste. O esforço para assumir, para ver, para admitir. Uma rápida carícia no rosto dela.

- Acabou. Embora a gente não possa saber quando ou como; embora não possamos determinar o momento exato em que algo começou a mudar em nós. Não adianta estarmos procurando um culpado, atirando-nos mutuamente a culpa. Não estávamos prontos um para o outro, eis tudo. Isso irá acontecer-nos outras vezes e um dia, quando estivermos prontos para alguém, talvez não exista um fim; talvez o amor possa durar para sempre.O que a gente deve fazer é procurar outro caminho, como você disse. O mundo não acabou, nós mesmos não acabamos. Quem sabe, mais tarde a gente não torna a se cruzar por aí?

Um beijo no rosto. Ambos sorriem, agora; o mesmo sorriso curto, medroso. Mas um sorriso; agora, dois sorrisos. Ainda pelo mesmo motivo, mas já começam a separar os sorrisos.

- Adeus, Paulo.

- Adeus, Marta.

Ela sobe as escadas, ele dá partida no carro.  Em ambos uma sensação de perda e alívio, de tristeza e esperança.

A sensação de fim de caso.  

 

                

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