Lenda baiana

 

 

- Ora doce Iaba, minha mãe é Oxum

Ora-iê-iê

Ora doce Iaba...

O som dos atabaques, ritmando o coro de muitas vozes, dominava o terreiro. O colorido das vestes rituais e a beleza selvagem da coreografia criavam uma espécie de encantamento que envolvia a todos.

No ar, um misto de ceticismo e crença; de desespero e esperanças. Como um verdadeiro mercado de sonhos, o terreiro reativava o desejo mais antigo e covarde do homem: o de obter a felicidade através de um milagre, que materializasse as suas mais caras ilusões.

Os guias iam baixando, através dos seus médiuns: caboclos, pretos velhos, e erês; aplicando passes, distribuindo conselhos e brincando com os seus filhos de fé. Ouvindo com paciência as queixas e ensinando remédios; era o encontro do visível com o invisível, da necessidade de ajuda com a vontade de ajudar.

Sem saber exatamente o porque, Maria das Dores estava nervosa. Era como se o bater dos tambores ecoasse diretamente em seu cérebro, se transformasse em sangue e corresse por suas veias. No vestido longo e branco, de pano barato, parecia uma noiva pobre e imaculada, em nada lembrando a Dorinha que se entregava a muitos homens, todas as noites, nos cabarés da Conceição.

Aliás, é preciso que se diga que Dorinha pertencia àquele tipo de gente que consegue vender o corpo sem prostituir as ilusões. Conservava ainda os sonhos de menina do interior, quando o sargento Odorico lhe prometera mundos e fundos; para abandoná-la no mundo, depois de lhe arrancar os tampos dos fundos, com um ser novo e predestinado a infeliz começando a agitar-se no seu ventre.

Agora, aquele filho das ilusões contava seis meses de idade, e era a alegria de Dorinha. O berço pobre ficava ao lado da cama e todas as noites, depois de terminada a procissão de homens, o garotinho era o último a aproveitar o calor do corpo de Maria das Dores; e o único a quem ela se dava verdadeiramente.

Naquele dia, Dorinha estava completando dezenove anos. A maternidade e o ano que passara na zona ainda não haviam deixado marcas mais profundas em seu corpo. Talvez pela capacidade de viver em um mundo de sonhos, continuava a mesma morena vistosa, cujos seios pequenos e coxas grossas eram cobiçados por todos os homens de Santa Inês, a cidadezinha onde nascera.

Resolvera dar, como presente a si mesma, um dia diferente. Pagamento combinado, a velha Mariá, aposentada das lides carnais, por absoluta falta de dentes e outros atrativos físicos, concordara em cuidar do pequenino. E Dorinha queria passar o dia como as outras jovens de sua idade.

Acordou às dez horas da manhã. Esvaziou o pinico repleto de urina e no qual boiava a espuma branca de esperma, resultado lógico das trepadas que sofrera na véspera. Depois de escovar os dentes e molhar o corpo no banheiro coletivo e vagabundo, vestiu o biquíni branco, comprado de novo, e colocou sobre ele a saída de praia. Beijou o garoto, apanhou a bolsa e a sacola e saiu quase correndo.

Já na rua, depois de dobrar a esquina, virou a cabeça e deu uma olhada para trás. Vistos assim, meio de longe, os velhos sobrados pareciam dependurados no ar, debruçados sobre a Avenida do Contorno, como se sustentados por fios invisíveis acima da vertente da ladeira.

Despojada de cuidados turísticos, Dorinha não se preocupou em apreciar a arquitetura colonial, ou em descobrir belezas ocultas, naquele cenário que tanto conhecia. Entrou no Elevador Lacerda, rumo à Cidade Alta e às praias sonhadas.

Passou o dia na Praia da Pituba. Era uma sexta-feira de muito sol, e as barracas estavam com um movimento razoável. Entre o mar e areia, deixou que se escoassem as horas do seu dia de liberdade. Almoçou peixe frito e bebeu guaraná, como se participasse de um banquete maravilhoso.

Saboreou os olhares dos homens, feliz em saber-se bonita e desejada. Agora não como um objeto a ser comprado, mas como uma incógnita, um ser humano a ser conquistado e amado; uma mulher igual às outras.

E foi só no fim da tarde, que se dispôs a sair. Num restaurante, perto da praia, tomou um banho de chuveiro. Da sacola retirou o vestido e a roupa de baixo, também comprada de novo e imaculadamente branca, vestindo-se com lentidão e deleite. Guardando na sacola o biquíni molhado e a saída de praia, foi conhecer o terreiro, do qual tanto lhe haviam falado.

Era a primeira vez que ia um terreiro; a primeira vez que se atrevia a buscar apoio para os seus sonhos, em um Deus que só confusamente entendia. No bolso do vestido, o dinheiro para pagar a consulta; na cabeça, uma confusão de pensamentos e emoções, o deslumbramento de quem descobre uma nova fonte de esperanças.

Os buzos caíram no centro do tabuleiro, numa desordem curiosamente ordenada, entre as guias de várias cores que representavam os orixás. Uma nova jogada, uma invocação a Ifá, e o babalorixá falou:

- Filha, você é de Oxum. Oxum é o seu guiaa, a sua proteção, a sua força. Ela vai ajudar você; vai lhe tirar dessa vida ruim que você leva. Tenha fé, filha, e se prepare para a mudança. E guarde o seu dinheiro; ela não quer que eu lhe cobre a consulta. Vá e seja feliz.

Deslumbrada, Maria das Dores saiu do quarto de consultas. E seu olhar encontrou um outro, que lhe mandava uma mensagem de admiração e afeto; deixou que seus olhos mergulhassem naqueles olhos, como quem mergulha em um lago de paz e esperança. E achou a coisa mais natural do mundo, quando o rapaz lhe falou:

- Oi. Eu sou Paulo. E você?

- Maria das Dores, mas todo mundo me chamaa Dorinha.

- Já consultou?

- Já. E você?

- Não quero consultar; quero é falar com vvocê. Vamos sair um pouco?

Saíram e andaram pela praia de Amaralina. Comeram acarajé e tomaram água de coco; e foram passear na areia, olhando as ondas mansas e conversando sobre mil coisas, como se tivessem medo de falar de si mesmos. E era bom estarem juntos, assim, apenas de mãos dadas, como se um quisesse ajudar o outro a caminhar pela estrada da vida, sem nada pedir, a não ser a felicidade de poder caminhar junto.

Mais do que nunca, Dorinha se sentia uma noiva pura e inocente. Foi com profunda pena, que viu o tempo trazer o fim daquela noite de sonho. E foi com infinita vergonha que mentiu:

- Preciso ir, Paulo. Meu pai não gosta quee eu chegue tarde.

- Vou levar você.

- Não, por favor! Papai é muito desconfiaddo, e se me visse chegar com você ia ser ruim. Eu vou de táxi, não se preocupe.

- E quando lhe vejo?

- Amanhã de noite, aqui mesmo. Oito horas,, certo?

- Certo, Dorinha. Um beijo?

Apenas um beijo. Um beijo de namorados, de começo de conhecimento. E Dorinha pegou um táxi, voltando para a Conceição; já passava das dez da noite e a velha Mariá devia estar zangada, com a sua demora.

E estava. Quando Dorinha, depois de subir as escadas do velho pardieiro, chegou ao seu quarto, no segundo andar, a velha resmungou:

- Merda! Demorou, hein? Pensei que você nãão vinha mais!

- Desculpe. Ricardinho está bem?

- Está. Mas você vai ter que me pagar maiss, com essa demora! Perdi o dia todo cuidando dele!

- Amanhã eu te pago, tá? Agora vou dormir,, que estou no bagaço!

- Não vai trabalhar, não? Acho que o salãoo ta cheio; ouvi dizer que tem uns três navios no porto.

- Hoje, não; amanhã eu desconto.

Assim que a velha saiu, Dorinha fechou a porta e se jogou na cama, ainda vestida. Como se sentisse a presença da mãe, o garotinho choramingou. Carinhosamente ela o pegou e o colocou na cama, ao seu lado; beijou-o na testa e afagou seus cabelos ralos e macios. E adormeceu junto com ele, um sono satisfeito e cheio de sonhos.

E, dormindo, não percebeu o que se passava; nem mesmo chegou a ouvir o estrondo, que marcou o começo do fim.

 

* * *

Paulo acordou de repente, sobressaltado. Pareceu-lhe sentir um beijo leve, em cada lado do rosto, e ouvir um choro suave e abafado, como se vindo de muito longe. Sem nenhum motivo, veio-lhe uma incontrolável vontade de chorar; e foi esse pranto que marcou a partida de Maria das Dores deste mundo.

 

* * *

No dia seguinte, pás e picaretas desenterraram as vítimas do desmoronamento na Conceição. E foi geral o assombro, quando os trabalhadores viram Dorinha e o filho: os corpos intactos, como se a terra e as pedras os tivessem respeitado. Como se uma força invisível lhes servisse de escudo, evitando a sua mutilação e conservando nos lábios de ambos um sorriso de confiança e felicidade.

Assim, mais uma lenda se incorporou ao folclore da Bahia. E passou a ser repetida pelos pescadores da Rampa dos saveiros. Na verdade, a maioria deles nem chegou a conhecer Dorinha; mas todos se lembram daquela noite, do desabamento da Conceição.

 

 

 

(NOTA: Para quem não conhece Salvador, ou não a conheceu algum tempo atrás, a Conceição da Praia era uma ladeira e ficava numa encosta, acima da Avenida do Contorno, que liga a Cidade Alta e a Cidade Baixa.

Nessa ladeira existiam muitos sobrados antigos, onde se concentrava a vida boêmia da cidade. Com o passar do tempo e a decadência, esses sobrados foram sendo habitados por prostitutas de baixa classe, as mais baratas. É o que os baianos chamam de "mangue", ou "zona", e era freqüentado principalmente pelo submundo da cidade, ou pelos marinheiros que ancoravam no porto, localizado ali perto.

Mais ou menos em 1982, em conseqüência de chuvas, parte da ladeira desabou, destruindo muitas casas e matando algumas das pessoas que nelas moravam.

Foi isto que me trouxe a idéia deste conto.)

 

                      

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