Crimes de mando

 

Ajeitou a repetição a seu lado, na grama ainda molhada da chuva recente e passageira; moveu o corpo, procurando melhor posição.

Do alto da pequena elevação, avistava toda a estrada. Agora, era só esperar: daí a pouco, o condenado passaria. E iria direto para o inferno; ou para o céu, conforme os seus merecimentos.

Na Terra, é que não ficaria; pelo menos, vivo. Alexandrino tinha orgulho de jamais ter errado um tiro, ter deixado de cumprir um contrato.

 

* * *

Juvêncio manteve o cavalo a passo, na trilha de terra batida.

Vinha pensativo, dividido entre a prudência e o desejo, a cabeça e os bagos. Não queria morrer, mas tampouco se dispunha a perder Amália: mulherão retado, tão boa de cama, um corpão! A xereca e o fiofó insaciáveis, sempre a pedir mais; a fazer ressuscitar o guerreiro, quando o próprio Juvêncio já o julgava irremediavelmente abatido.

Um mulherão, Amália! E tão fina, educada; ninguém que a visse na rua, ou na mesa, poderia adivinhar a puta em que se transformava, ao fechar a porta do quarto! As roupas caras e elegantes, o perfume francês, o sotaque afetado de moça da capital, educada nos melhores colégios.

Que mulher! Um único defeito: o fato de ser esposa, de papel passado e tudo mais, do coronel Batista. O coronel,  já nos seus sessenta e muitos anos, continuava a governar, com mão de ferro, os seus domínios; ali, no sertão, o progresso ainda não havia chegado.

O coronel Batista. Mais do que um velho, uma lenda vida de esperteza e crueldade! Quantos mandara matar, quantos ele mesmo matara, nos tempos em que ainda corria a luta pela posse da terra? A sua fama se espalhava por toda a região. Não era homem de tolerar desaforo; muito menos de aceitar pacificamente o ornamento de chifres, na testa respeitável.

Viúvo e sozinho, sem filhos ou outros parentes conhecidos, morando na imensa fazenda, fora uma surpresa para a vila o seu casamento com a moça bonita e prendada, importada da cidade grande. Filha de um velho amigo, outrora muito rico e agora na pobreza, o povo murmurava à boca pequena. Comprara a esposa a peso de ouro, cavalo velho a querer regalar-se com égua nova e vistosa, no pouco tempo de pasto que lhe restava.

Para a família, um grande negócio: em troca da filha, de uma donzelice apenas suposta e já inexistente, perdida de graça em uma festa de estudantes, quando Amália se cansara de usar a porta dos fundos, a volta à riqueza. O coronel pagara as dívidas, dera dote em dinheiro, enviava uma ajuda mensal ao velho amigo; a filha, após alguns anos (poucos, com fé em Deus!), seria a única herdeira de grande fortuna. O que lhe custava satisfazer o velho, agasalhar a pomba, já murcha, em esporádicos vôos, durante algum tempo?

Muito pouco, eis a verdade. Para Amália, chegada aos jogos de cama, um bom folguedo era o melhor dos passatempos. Por outro lado, o coronel constituíra agradável surpresa: apesar da idade e de só praticar o rotineiro e trivial papai-e-mamãe, possuía uma ferramenta avantajada e ainda em boas condições, capaz de um desempenho satisfatório.

Na freqüência, entretanto, é que estava o problema. Porque o coronel, depois dos primeiros dias de novidade, em que conseguira (bendito seja o clima do sertão!) a portentosa marca de três por semana, arrepiara caminho. Temeroso, talvez, do vexame, poupava a estrovenga, outrora imponente e agora utensílio de confiança duvidosa: não lhe fosse faltar, na hora de mais necessidade! Era sempre em sábados alternados, após o jantar, na cama larga e de cabeceira trabalhada, que desfrutava dos seus direitos conjugais; e o fazia com grande prazer, justiça lhe seja feita.

Muito pouco, entretanto, para mulher nova e fogosa, uma bimbada quinzenal. Assim, Amália reparou em Juvêncio: moço da terra, que passara alguns anos na capital. Feito o pequeno pé-de-meia voltara para a vila, a instalar um armazém, o único na região. Era, depois do coronel, a maior autoridade na vila, que não tinha o padre, o médico, muito menos um gerente do Banco do Brasil. Cafundó- do-Judas, cu-de-mundo, o padre da cidade mais próxima ali aparecia de vez em quando, a dizer missa ou celebrar casamentos e batizados na capela da fazenda; as doenças eram tratadas com folhas e rezas, e o Banco do Brasil jamais pensaria em ali instalar agência.

A bem dizer, o affair (palavra de luxo, importada, talvez imprópria em conto de tamanha pobreza; aqui a conservamos em homenagem a Amália, moça culta e instruída como já se disse) fora favorecido pelo próprio coronel: cumprindo promessa feita ao amigo e à esposa, o velho concedia a Amália, uma vez por mês, licença para visitar os pais. Sempre na primeira quarta-feira, depois de uma viagem de jipe à cidade mais próxima, Amália tomava o ônibus e seguia para a capital. Voltava na sexta; no sábado já estava na fazenda, esposa obediente e zelosa.

Ora, era na capital que Juvêncio fazia as compras, para reabastecer o armazém. Depois dos olhares trocados, da mão segurando a mão entre as prateleiras, quando Amália

ia à vila buscar suprimentos para a casa e a fazenda, nada mais natural do que combinar um encontro na cidade. Na vila, não dava: povo mexeriqueiro, falador, sempre de olho na mulher do coronel; o chefe falado, péssimo candidato a corno manso, capaz de tudo para lavar a honra ofendida.

Logo no primeiro encontro, foram parar num quarto de motel. Amália, desencontrada das velhas amizades e dos antigos freqüentadores, atraída pelo rapaz, único a mostrar um verniz de civilização, naquele lugar esquecido por Deus e pelo diabo, descobrira em Juvêncio novas qualidades: um pé-de-mesa respeitável, a preenchê-la todinha, e um vasto conhecimento das artes do amor, adquirido nos tempos em que, ainda rapazola, andara pelos cabarés da Bahia.

Para Juvêncio, além do mulheraço, papa-fina que era, Amália representava um motivo de orgulho: quem mais, na vila, podia ter a mulher do coronel? Orgulho besta, é bom que se note: de que adianta fazer e não poder contar, desfrutar sem ninguém saber? Orgulho idiota, mas danado de bom: ao ver o coronel na vila, pavoneando-se no cavalão lustroso, toda a gente a lhe pedir a benção, Juvêncio sorria para os seus botões, ou melhor, para os seus bagos. "- Vai, corno velho!" era o que pensava, orgulhoso.

Orgulhoso, mas... amedrontado, também. E se o velho soubesse? Menos que soubesse, se sequer sonhasse? Ali, naquele canto depois da última curva do vento, a vida de um homem valia muito pouco. Não faltavam jagunços, remanescentes de um passado violento, prontos a matar qualquer um e cair nas brenhas do sertão.

Agora, o medo vence o orgulho e o desejo. No cavalo, a caminho da cidade para pegar o ônibus, Juvêncio decide: amanhã estará com Amália e darão a saideira. Vai pegar o boné, capar o gato, cair fora; ela que arranje outro, para cornear o coronel. Ele, Juvêncio, pretende morrer de velhice. Mas... que é uma pena, lá isso é! Será que, algum dia, ele vai arranjar uma mulher igual?

 

* * *

Lá vem o cavaleiro. Alexandrino apanha a repetição, ajeita a culatra no ombro, firma a pontaria.

Espera mais um pouco, e... BUM! O estrondo do tiro fere o silêncio do sertão. O homem ergue os braços, arrancado da sela pela mão invisível da morte, e desaba no chão. O cavalo, livre do peso e assustado pelo barulho, desata a correr.

O jagunço não tem pressa, desce do outeiro devagar. Confere a morte imediata, saca a peixeira do cinto; ainda falta cumprir uma parte do trato.

O coronel fora claro: quer ver as partes do safado, a estrovenga e as bolas, alimentar com elas os cachorros da fazenda. Alexandrino sacode a cabeça, abre as calças do defunto, começa a cortar.

 

* * *

Os ouvidos acostumados ao silêncio, o coronel distingue o galope do cavalo.

Aliás, galope não é bem o termo: a montaria vem a passo, devagar. Firmando a vista, consegue enxergar no horizonte o cavaleiro que se aproxima. Comanda, para a mulatinha que varre o terreiro:

- Maria, vai lá pra dentro!

De má-vontade, a molecota obedece. Queria ver a visita, coisa tão rara naquelas lonjuras, mas nem pensa em desobedecer ao coronel.

O cavaleiro se aproxima, o coronel franze a testa: desconhecido, não é da região. Talvez pela tocaia que ordenara, desconfia de alguma coisa errada. Mas é tolice; o tempo das lutas passara e, hoje em dia, quem pensaria em tentar algo contra ele?

Descontrai-se; a hospitalidade é sagrada no sertão. Desce da varanda, caminha devagar; sempre foi seu hábito receber as visitas na porteira. O homem permanece montado; na certa se perdeu e quer alguma informação. As roupas e o animal estão cobertos de poeira, do barro vermelho dos caminhos, ainda manchados pela chuva que caiu há pouco tempo. Como manda o costume, a saudação parte do dono da casa:

- Boas tardes!

- Boas tardes. Coronel Afonso Batista?

- Eu mesmo.

Na boca da arma, o velho reconhece a boca desdentada da morte. Nem tem tempo de gritar, mal ouve o estampido; cai por terra estrebuchando, o rosto destruído pela descarga. De trás da porta, onde se escondera para espiar o visitante, Maria grita:

- Socorro! Mataram o coronel!

 

* * *

Entre excitada e nervosa, Amália dá a última olhada no grande espelho: penteada a cabeleira negra, a calça jeans apertada na bunda altaneira, a blusa de malha destacando os seios orgulhosos e firmes.

Se o coronel a visse assim!... mas a esta hora o velho já não pode ver coisa nenhuma, se tudo deu certo! E por que não haveria de dar? O pistoleiro, afamado entre os melhores, o irmão recrutara lá por Alagoas; o crime seria atribuído a um dos muitos desafetos do coronel. Generoso irmão, condoído da sina da mana querida, desterrada naqueles confins; e (por que não dizer?) interessado em apressar a herança, pouco disposto a esperar a morte natural do cunhado rico e grosseiro.

Acabaram as cavalgadas quinzenais, a vida naquela fazenda desgraçada, naquele atraso de vida, naquela vila miserável e fedida. Encerrado aquele capítulo, mal necessário; páginas viradas, as próximas serão cheias de brilho e prazer.

Tudo acabado! E Juvêncio? Por algum tempo, viúva inconsolável a receber os pêsames, talvez se pudessem divertir mais um pouco, na cama larga, ou em um canto onde ninguém os visse.

Depois, é claro, isso também seria passado. Viúva, herdeira universal, rica e bonita, não há de penar por falta de homens. O coronel está morto; mortos o tratamento áspero e antiquado, a visita quinzenal (insosso papai-e-mamãe), a droga da fazenda. Arrumará as coisas, venderá as terras, embolsará a fortuna, voltará para a capital e terá a vida que sempre quis.

Juvêncio? Descartável. Boa companhia na cama, sem dúvida, mas rude e inculto como os outros, apenas um leve verniz de civilização a recobri-lo. A substituição será fácil e rápida: apenas localize os antigos colegas, combine novos programas, possa rolar em outras camas.

Entretanto, é preciso cuidado: ainda precisa agir como se não soubesse de nada, nem desconfiasse. E isso tem seu lado bom: daqui a pouco estará com Juvêncio, folgando na cama. Será um folguedo diferente, mesmo que o matuto não saiba: além dos seus atrativos, do prazer de sempre, um sabor de despedida.

Coloca, sabiamente, o perfume: extrato caro, ativo, é preciso saber dosá-lo. Sorri para a imagem refletida no espelho e sai, altiva e ansiosa, para a gandaia ansiada.

 

* * *

No carro, os dois homens esperam.

Em silêncio, não precisam falar. Trabalham juntos há tempos, um já entende os pensamentos do outro. Talvez por isto sejam os melhores, cobrando bem caro as empreitadas que aceitam, sempre através de algum cliente já conhecido. Como aquela, encomendada por um figurão da política, para servir a "um amigo do interior". Quem? Não interessa, eles nem perguntaram. O importante é o dinheiro, depósito já confirmado na conta bancária, adiantado como sempre.

Fumam, esperam. No bairro residencial, a tranqüilidade impera; a rua está praticamente deserta, ideal para o serviço, naquele meio de tarde.

A mulher se aproxima, ultrapassa o carro parado junto ao meio-fio. O motorista olha o retrato, volta a guardá-lo no bolso, faz um sinal afirmativo de cabeça para o companheiro, que tira a pistola da cintura. O carro arranca, bem devagar.

Poucos metros à frente, Amália caminha para o ponto de táxis.

 

                  

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