Cantiga para Luíza

 

Nada existia, senão a noite lá fora.

E os olhos verdes de Luíza.

Aos poucos, começou a existir também o som morno e preguiçoso de sua voz; à medida que os meus sentidos se desanuviavam do sono e do choque causado pelo verde daqueles olhos.

- Me dá um cigarro?

Ela viera e se assentara no banco ao lado daquele onde eu cochilava, embalado pelo ruído monótono do motor do ônibus.

Sorriu; um sorriso infantil e musical.

- Eu o acordei, não foi? Desculpe.

Semidesperto, procurei no bolso da camisa e lhe entreguei o maço de cigarros e o isqueiro. Respondi:

- É bom acordar assim.

Riu, novamente. E o som do seu riso me trouxe saudades de coisas que eu não vivera.

- Por que?

- Acordar e ver um anjo faz a gente pensarr que está no céu.

A chama do isqueiro arrancou reflexos dourados dos cabelos longos e cheios, e me pareceu ver duas gotas que se formavam nos olhos imensos.

Devolveu-me os cigarros e o isqueiro; tirou uma tragada profunda e soprou pensativamente a fumaça, antes de perguntar:

- Então, eu sou um anjo?

- Pelo menos, é a pessoa mais parecida comm um que já vi.

- E você conhece algum anjo?

- Posso jurar que sim, assim que souber o seu nome.

- Luíza. E o seu?

- Fabrício.

- Então, você me acha um anjo?

- Sou capaz de apostar.

À luz mortiça da lâmpada de teto, pude ver o brilho dos dentes alvos, quando os lábios vermelhos se separaram, num sorriso rápido e amargo. Mas, desta vez, o som abafado apenas me trouxe lembranças de uma amargura que eu não chegara a conhecer.

- Por que você riu?

- Acho engraçado ver como as pessoas se deeixam levar pelas aparências. Você me acha bonita, não é?

Fui maldoso:

- Bonita? Não; não acho você bonita.

Percebi um tom de alarme e curiosidade em sua voz; como de alguém que se sente lesado em seu patrimônio mais próprio e evidente:

- Não?! Então, por que me comparou a um annjo?

Silenciei para acender, por minha vez, um cigarro. E gozar a surpresa refletida em seu rosto, antes de completar:

- Porque você não é bonita; é linda. E é aassim que os anjos devem ser... pelo menos, eu acho.

Relaxou na poltrona e a voz recuperou o tom normal. Perguntou:

- Você já leu "O Retrato de Dorian Grray" ?

- Já.

- E ainda não aprendeu que não se pode connfiar no rosto de uma pessoa?

- Acho que Wilde apenas contou a forma commo se sentia, devido às pressões que sofreu; isso não implica em que a beleza exterior corresponda à fealdade interior. Acho que a pessoa só é feia quando se julga feia, e este não pode ser o seu caso.

- E por que não?

- Porque você sabe que é linda. Tanto, quee se surpreendeu quando eu lhe disse que não a achava bonita.

Amassou o cigarro no cinzeiro da poltrona. Descalçou os sapatos e levantou os pé, sentando-se sobre eles com as pernas dobradas. A sua coxa descansou sobre a minha e senti, através do tecido das calças, a firmeza e o calor da sua carne. Falou, como se pensasse em algo importante:

- É... acho que confio na minha beleza físsica. Talvez até demais; tanto, que me descuidei da beleza interior.

Gracejei:

- Não vá me dizer que você é o Dorian Grayy de saias!

- Não chego a tanto. Mas às vezes acho quee a beleza dificulta a vida. E que eu poderia ser bem mais feliz, e melhor como pessoa, se tivesse nascido feia.

- Eu acho que a beleza não é boa ou ruim, em si mesma. É uma característica da pessoa, como a inteligência ou o orgulho; o que pode ser bom ou ruim é o uso que fazemos das nossas características.

Ela escutava, pensativa. E depois falou, como se de repente recordasse algo:

- Você estava dormindo, não é? Não está maais com sono?

- Dormir é coisa que posso fazer sempre, mmas é muito difícil encontrar alguém como você. Não quer conversar mais um pouco?

- Se quero? Preciso. Acho que vou estourarr, se não conversar com alguém hoje!

Alisou distraidamente o peito do pé, num gesto mecânico e gracioso. Com o movimento, o seio firme pressionou a malha leve da blusa e mesmo na penumbra pude perceber que ela não usava sutiã. Senti um repentino aperto na garganta.

- Sabe, Fabrício? Eu nasci nessa cidadezinnha que você acabou de ver.

- Verdade? Você não tem jeito de menina doo interior.

- Vivi ali até os 17 anos.

- Deve ter sido chato pra você, não?

Franziu a testa, como se a pergunta tivesse uma importância que eu desconhecia. Pediu:

- Dá outro cigarro?

Peguei dois no maço, acendendo-os ao mesmo tempo. Entreguei-lhe um, percebendo o leve tremor da sua mão. Deu uma tragada funda e, quando falou, sua voz tinha o colorido monótono das recordações que julgamos queridas:

- Sabe? Existe uma música que diz : ";- ... eu era feliz e não sabia.". É nisto que penso, quando lembro da minha vida ali. Papai tinha umas terras e nós íamos vivendo... não ricos, mas donos dos nossos narizes. Eu morava na fazenda, montava a cavalo e corria pelos campos. Quando fiz 14 anos, papai morreu e descobrimos que as terras estavam hipotecadas; tivemos de vendê-las, para pagar as dívidas. Com o pouco que sobrou, compramos uma casinha na cidade e mamãe e eu nos mudamos.

Fez uma pausa, que não me atrevi a interromper. Sempre tive certo pudor de escutar confidências alheias. É como se a gente invadisse, aos poucos, um terrenos que não nos pertence e ao qual não deveríamos ter acesso. Não entendo porque respeitamos a privacidade física das pessoas e vivemos querendo invadir seus pensamentos.

Tentei fugir daquele assunto:

- Olhe, Luíza, você não precisa...

- Eu quero. Preciso falar com alguém e voccê é perfeito para isso, já que nunca nos vimos antes; um estranho pode entender a gente melhor que qualquer amigo, pois não tem a presunção de nos conhecer! Ou você ainda não notou que, quanto mais duas pessoas se fazem íntimas, mais uma se esconde da outra?

Esperei, calado, até que a voz recomeçou, ainda naquele tom neutro de saudades perdidas:

- Aí, eu terminei o ginásio; e fomos para Salvador, quando me casei...

- Casou?! Você é casada?!

- Viúva. Casei-me aos dezessete anos, com um funcionário do Banco, que trabalhava na cidade e estava sendo transferido de volta para a capital. A gente já namorava e aceitei quando me pediu que casássemos e fôssemos juntos. Convenci mamãe, ela vendeu a casa e foi conosco; com o dinheiro da venda, demos entrada num apartamento perto da praia.

Moveu-se um pouco e a pressão da sua coxa sobre a minha se fez mais forte, por um segundo. Ao simples contato, meus sentidos se aguçaram e pude sentir o perfume atraente que emanava de seu corpo; não uma essência de fábrica, mas um cheiro de fêmea. Com aqueles olhos, era uma mistura adorável de gata e mulher; veio-me um forte desejo de possuí-la, e precisei concentrar-me para entender as suas palavras:

- José trabalhava o dia inteiro e mamãe cuuidava da casa. Eu não tinha nada para fazer e comecei a ir à praia, todos os dias; conhecei os rapazes e moças que estavam sempre por ali e passei a fazer parte da turma. Alguns me davam cantadas e outros me alisavam, mas eu sempre evitava que as coisas fossem muito longe... até que um dia, com umas cervejas a mais, fui para um motel com um deles.

Teve um suspiro entrecortado e um riso de amargo cinismo; como se, tão nova, já conhecesse a parte ruim que se esconde em todo ser humano. Prosseguiu:

- Depois, tive que dormir com todos eles. O cara espalhou a notícia e os outros ameaçavam contar a meu marido; eu tinha medo, e como eles aproveitavam esse medo! Lembro que cheguei a ir para a cama com três, ao mesmo tempo; acho que não existe uma só entrada, em meu corpo, que não tenha sido usada dezenas de vezes. Depois de possuir a mulher que deseja, o homem perde todo o verniz de afeto, todo o carinho que mostrou durante a conquista!

Parou e olhou diretamente nos meus olhos. Quando continuou, a voz era quase inaudível:

- Mas... sabe qual é o pior? Apesar de toddo o medo e nojo que sentia, eu gozava... gozava sempre! Passava as noites chorando, apavorada, arrependida, depois que José dormia; e começava tudo de novo, no dia seguinte!

Apesar do ardor em minha garganta, acendi outro cigarro; que foi logo arrebatado por seus dedos longos e finos. Inspirou a fumaça e voltou os olhos para o chão. Agora, a sua voz parecia ser arrancada das profundezas de alguma caverna desconhecida:

- Mas ele acabou descobrindo, não sei comoo. Uma tarde, quando cheguei em casa, ele já estava lá. Minha mãe tinha saído e estávamos sós; ele me arrancou o biquíni e expôs o meu corpo, ainda com as marcas recentes da batalha da cama. Como eu poderia negar, se de dentro de mim ainda escorria o líquido de outro homem? Ele me bateu, xingou-me dos piores nomes e tirou um revólver de dentro da camisa. Eu me lembro de vê-lo, entre as lágrimas que me corriam dos olhos, a apontar a arma para mim; e eu pedia a Deus que ele atirasse logo, para acabar com aquela agonia. De repente soltou uma espécie de uivo, enfiou o cano na boca e apertou o gatilho; tive a impressão de que a sua cabeça se despedaçava, diante dos meus olhos, e desmaiei.

Tornou a levantar os olhos, que já não me viam; olhava através de mim, para as suas próprias lembranças. Compreendi que aquelas cenas se gravaram tão profundamente, por trás dos olhos verdes, que muitas vezes eram projetadas no espaço à sua frente, como um vídeo-tape perverso e fascinante.

- Quando acordei estava na minha cama, já vestida e coberta por um lençol; o barulho atraíra os vizinhos e mamãe chegou quase na mesma hora, para abrir a porta. Carregaram-me para a cama, me vestiram e chamaram a polícia. Fiquei quase uma semana em estado de choque, e só depois fui saber que, graças a um delegado compreensivo, o caso foi abafado sem muita dificuldade, já que a conclusão era evidente: suicídio. Nem mesmo pude ir ao enterro de José, e jamais tive coragem de colocar uma flor em seu túmulo.

Agora, os olhos dela voltavam a me ver. E estudavam o meu rosto, procurando sinais das impressões que me causava a narrativa. Continuei a fitá-la em silêncio, mesmo porque não sabia o que dizer.

- Aí, a vida continuou. O seguro de José, como todos os outros, não cobria o suicídio. E eu me vi obrigada a ganhar a vida: pagar as prestações do apartamento e sustentar a mim e à mamãe. Procurei emprego, mas que espécie de trabalho pode conseguir uma viúva moça e bonita, que apenas terminou o primeiro grau? Creio que você imagina as ofertas que recebi: todas passando pela cama. E fui viajando de cama em cama, até que recebi uma oferta do último patrão: queria que eu me casasse com seu filho único, homossexual.

Encolheu os ombros, repetiu o sorriso amargo. Era como se o cinismo fosse, agora, a sua defesa contra a vida. Prosseguiu:

- Um arranjo conveniente para todos. Pararriam de falar do filho e ele teria carne nova, sob o mesmo teto, bem debaixo dos olhos da velha mulher. Quanto a mim, um emprego permanente: passar como esposa do  jovem e satisfazer o velho porco.

- E você?

- Aceitei, claro. Ele é muito rico e, se ttenho a sina da prostituição, é melhor usá-la para ganhar muito dinheiro. Se tenho de vender meu corpo, quero obter o melhor preço! Quando eu fizer parte da sociedade, quem irá me chamar de puta? Foi por isso que vim aqui hoje: comprei de volta a fazenda de papai e aproveitei para curtir as velhas lembranças, tomar um banho de pureza. O casamento será daqui a um mês.

Permaneci calado; o que poderia dizer? Mas percebi que um fogo se acendia nos olhos verdes, que pareciam aumentar de tamanho; os lábios vermelhos e macios se colaram aos meus, sábios e exigentes. E ela murmurou ao meu ouvido, depois do beijo:

- Daqui a pouco será madrugada, e nos perdderemos; ame-me, agora! Você já conhece a minha alma, melhor do que ninguém; venha, agora, conhecer o meu corpo!

Olhei em volta; o ônibus estava quase vazio e os poucos passageiros dormiam. Erguendo-lhe a blusa, toquei e beijei os seus seios. Luíza suspirou fundo; os olhos cerrados, a mão acariciando entre as minhas pernas e abrindo o zíper das calças. Num movimento rápido e ansioso levantou o corpo, tirando a calcinha minúscula.

Depois, a saia erguida até à cintura, sentou-se em meu colo, permitindo que meus olhos acompanhassem o sobe-e-desce do seu rosto, enquanto me guardava dentro de si. Notei que mordia os lábios, reprimindo talvez os sons do amor; as gotas que lhe escorriam dos olhos semicerrados traçavam linhas salgadas no rosto delicado. Fundimo-nos um no outro, e ambos na noite e no desconhecimento de nós mesmos.

Terminamos quando o dia raiava. Ela consertou as roupas, beijou-me nas faces e foi sentar-se numa das poltronas vazias, na frente do ônibus, deixando-me o viscoso do esperma nas calças e uma sensação de encontro e perda na alma. Algum tempo depois, avistei as primeiras casas da cidade: fim de viagem.

Na fila de táxi, na rodoviária, voltei a vê-la; embarcava num carro importado, cuja porta era segura pelo motorista.

Voltava à sua simulação de vida; a usar os olhos e a vagina contra o mundo...

 

                  

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