Verão
de 58
Para quem não conheceu ou mesmo nunca ouviu comentários, a Cana
Brava, que ainda permanece no mesmo lugar, além de uma área rural
do Catu, fora a propriedade deixada como herança por Alfredo Pereira
de Souza a seus diletos e belos filhos. Na partilha houve negociação,
ficando Oscarzinho, filho mais velho, com a área dele, acrescida
das de Tio Juca e Tia Calu, se não me falha memória.
Meu conhecimento inicial foi deste trecho de terra, visitado semanalmente
por Oscarzinho. O acompanhei em inúmeras, mas as minhas primeiras,
quando se ia a cavalo ou carro de boi, foram inesquecíveis e de
uma delas, gostaria de tratar agora.
Lá pelas bandas de 58/59, estando eu com nove anos de idade, quando
possível, me candidatava a acompanhar meu pai, Oscarzinho, àquele
percurso. Participava já dos preparativos, como antecipadamente
mandar avisar a Manuel, fiel escudeiro, pra trazer os animais da
fazenda para cidade, e solicitar de Margarida, minha mãe, o preparo
do lanche. Chegando Manoel bem cedinho, tínhamos que ser ágeis,
pois deveríamos aproveitar ao máximo, o sol frio. O “bom dia” de
Manoel já trazia aquela novidade de sotaque que chamava minha atenção
pela propriedade do linguajar. Como sempre, orgulhoso de Pompéia,
montaria utilizada fielmente por meu pai, e que se destacava dentre
outras, pelo porte, saúde e beleza. Ela era uma mula domesticada,
a ponto de meu pai ter algumas vezes a encaminhado, sozinha, de
nossa residência para fazenda, tarefa sempre cumprida a risca. O
percurso da viagem tinha inicio em nossa casa, localizada na ladeira
Cons. Pedro Ribeiro, próximo a Prefeitura e com primeira parada
o armazém de Mario Gordo, pois sempre se tomava, na nota, alguma
coisa pra levar. Minha montaria nunca foi das melhores, também não
exigia melhor, nunca achei muito interessante montar a cavalo.Como
havia adquiridos hábitos urbanos, pois já tomei pé na vida em Salvador,
não tinha o mesmo esmêro dos meus irmãos com a monta, porém, a curiosidade
da aventura era o que mais importava, naquele momento.
Seguíamos atravessando a estrada de ferro, passando pelo ponto dos
aguadeiros no rio Catu e adentrando a mata da faz. Santa Rita, onde
residia o amigo Temi Góes. Daí tomava o rumo noroeste num trecho
com presença de muitas ingazeiras, o que chamava minha atenção,
pois gostava demais da fruta e a árvore se destacava pela sombra,
muito particular. O percurso se cumpria em torno de hora e meia,
acompanhando-se os vales do rio Catu e do riacho Cabeça de Nego.
Manoel, e seus intermináveis relatos sobre os procedimentos e tudo
do pessoal que prestava serviço à fazenda prejudicava um pouco a
audição da sonoridade da natureza. Sempre aquela maneira particular
de falar que me era diferente e ao mesmo tempo agradável. Meu pai
de vez em quando o interrompia, para identificar árvores e/ou animais,
chamando minha atenção, coisa que fazia com muito gosto e eu, tanto
o admirava, pela demonstração de conhecimento sobre o mato. O passo
só era alterado quando, existindo condições, eu retardava meu animal
de maneira que me permitisse certa distancia e logo uma disparada,
coisa pra mim, da maior relevância. A esta altura a retaguarda,
digo assento, já começava dar sinais de cansaço. A chegada era maravilhosa,
não só pelo alívio do descanso da incômoda montaria como também,
pela beleza da Cana Brava. Logo na porteira de entrada cruzava-se
o riacho Queimado, com sua água gelada, o que forçava uma molhadela
de pés. Encontrava-se aí, sempre nos esperando, seu Amâncio, veterano
do tempo de meu avô Alfredo, pessoa de gentileza e zelo apurados
para comigo. Inesquecível. Ele me acompanhava, quando não estava
conversando com meu pai, sempre perguntando coisas. Na seqüência,
o deslumbramento com o verde da paisagem, dos pastos, sempre bem
cuidados, com rigor de Oscarzinho, que ficava orgulhoso ao se referir
ao tipo ou qualidade de cada capim alí plantado e como os conseguia
mantê-los tão viçosos. A Cana Brava era linda. O pasto da esquerda,
do riacho Cabeça de Nêgo era embrejado. O da direita, do curral,
era úmido, porém, mais largo o que permitia a visão do curral, na
entrada do pasto do Queimado. No alto, à esquerda, a mata do fundo
do curral projetava-se exuberante e fechada. Não era permitido o
acesso de crianças e da forma que era apresentada, me causava medo,
por tão escura. Seguindo a estrada, despontava o canavial e a seqüência
de cajueiros, moldurando a bela paisagem, onde logo surgia a instalação
do engenho com seu porte exclusivo, de arquitetura rudimentar. Era
parada obrigatória não só para o desempenho dos afazeres, mas pelo
estratégico local, num alto, que possibilitava visão de boa parte
de propriedade. Via-se o pasto do Riachão, o das Jaqueiras, via-se
a casa de Quininho, Cana Brava de Detinha logo abaixo, o alambique
velho e bem próximo a ele, na colina em frente, as marcas do que
restou da casa do avô Alfredo, que fora queimada por descarga de
um raio, em período remoto. No engenho encontrava-se a moenda, a
caldeira, a dorna, com aquele odor a principio insuportável de cana
azeda e álcool, porém perfeitamente suportável com o convívio. Continuando
a viagem, chegava-se ao quintal das jaqueiras onde o abrigo frondoso,
que reunia dezenas delas, formando um cenário inesquecível, de tão
agradável.
Primeiro a luz suprimida, escurecia, depois a temperatura que caia
bruscamente além do ruído crocante das pisadas dos animais por entre
as folhas secas, compondo um ambiente de uma magia indescritível.
Às vezes, seguia-se indo ao Riaçhão e na maioria delas, retornava-se
ao curral, pois lá se concentrava o grosso das providências e, era
a parada para o lanche. Foi neste retorno que se deu o motivo desta
resenha. Ao avistar um lindo cajueiro, de frutos robustos e vermelhos,
somente como os da Cana Brava, resolvi retirar alguns, pessoalmente.
Aproveitei o envolvimento de meu pai com os empregados e tracei
meu plano de subir sozinho nàquela linda árvore. A operação teria
sido perfeita se não fosse a presença de uma formiga que ao picar
contundentemente a minha cabeça, a ponto de me fazer crer tratar-se
de coisas de marimbondo, provocou um súbito desejo de me atirar
lá de cima, achando ser menos dolorosa queda que aquela picada infernal.
Não deu outra, olhando entre os galhos do cajueiro, notei uma abertura
perfeita que permitiria a passagem de uma pessoa, desde que em posição
vertical. Aí fuiiiii... Só que esqueci de verticalizar a cabeça,
o que provocou um choque de um duro, com o mais duro ainda, aí dei
alguns aús, e plashhhhh. Escureceuuuuu.... Quando acordei, já um
pouco distante da cena, tive a visão de seu Amâncio, me carregando,
me entregando a meu pai, muito pálido e avexado, parecendo estar
muito pior do que eu. Descansamos um pouco, oportunidade em que
ele me ofereceu frutas e mimos, preocupado com o meu estado. Recuperado,
retornamos na seqüência, porém, desta vez, com fortes desconfortos
na cabeça e no assento. Mas, valeu a pena.
Obs
:O Eng. de Joaquim P.de S. Armundes tb se chamava "Cabeça de Nêgo"
(
Sergio Souza )