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Mário de Andrade, um brincalhão elegante

NORMA COURI
Especial para o Estado

Matava baratas com lança- perfume, chamava as sobrinhas de "minhas titicas de galinha", tinha uma gargalhada estrondosa, vivia fazendo brincadeiras e costumava vestir-se cantando e dançando ao som de um disco na vitrola. Os amigos já sabiam: o telefone tocava, ele dava uma cabeçada. Sempre se esquecia de abaixar a cabeça ao passar disparado pelo lado mais baixo do vão da escada do sobrado da Rua Lopes Chaves, 546, na Barra Funda, onde morou até morrer.

O anedotário em torno de Mário de Andrade não tem fim. Era feio, mas travou uma enorme discussão sobre a beleza. Não tinha dinheiro, mas era muito elegante, só usava ternos de casimira inglesa ou linho branco, desenhava os próprios robes de seda, usava a loção francesa Rêve Rose e pó de arroz para clarear um pouco a pele mulata ("Eu me sinto branco,/ Só branco/ Em minha alma crivada de raças"). Era capaz de pedir à mãe que cortasse a aba do chapéu até a copa, só para gozar um primo que admirava seu estilo "moderno".

Era ligadíssimo à família. Desenvolveu um tremor nas mãos depois da morte do irmão de 13 anos, Renato - e não pôde mais ser pianista. Morou a vida toda com a mãe e a tia no casarão enfeitado de glicínias. A irmã, Maria de Lurdes Camargo, dizia que ele adorava provocar cenas de ciúmes entre elas. Nenhuma das duas entendia Mário. "Li o seu livro inteiro mas não entendi nada", dizia a tia ao sobrinho. Com a mãe, Mário adiantava-se. Dava um livro e já se desculpava: "Eu lhe dou, mas não leia porque a senhora não vai entender nada." Maria de Lurdes foi sua inspiração para os personagens Maria Luisa de Amar, Verbo Intransitivo, e Isabel, a repressiva tia velha do conto Vestido Preto.

"Gosto mesmo da vida e de tudo o que está dentro dela", escreveu. "Diante da vida eu jamais tenho o prazer dum espetáculo. Eu vivo." E brincava com a morte. "Quando eu morrer quero ficar,/ Não contem aos meus inimigos,/ Sepultado em minha cidade,/ As mãos atirem por aí/ Que desvivam como viveram/ As tripas atirem pro Diabo/ Que o espírito será de Deus/ Adeus."

Cultivava amizades. Gastava tempo com os amigos. Escrevia cartas. Passados quase 104 anos do seu nascimento, a 9 de outubro de 1893, ainda não se parou de publicar as cartas. Destinavam-se a "Anitoca queriquerida", Anita Malfatti - a quem enviou a última carta antes de morrer de enfarte a 25 de fevereiro de 1945. Ou o Manu, "Manu do coração, fui à m... como você mandou, porém fui xingando", escreve a Manuel Bandeira, em homenagem de quem batizou sua máquina de escrever, Manuela. Manu, "o maior amigo, o amigo que eu queria ter a meu lado na hora da minha morte. Hoje não posso mais passar sem ti, só tenho mesmo desejo de ter você perto de mim", escreve em diferente momentos. "Você afinal sou eu mesmo."

Mário escreve a Pedro Nava, Murilo Miranda, Luís Câmara Cascudo, Prudente de Morais - o Prudentinho, Prudêndito ou Pru. Escreve a Carlos Drummond de Andrade, Guilherme Figueiredo, Henriqueta Lisboa, Érico Veríssimo, Villa-Lobos, Murilo Mendes. Ainda há tantas cartas nas gavetas dos amigos que a organizadora do arquivo, Telê Ancona Lopes, lastima: "A correspondência ativa de Mário está espalhada e o cruzamento com as cartas que fazem parte do seu espólio é fundamental para identificar datas, situações, fechar a história."

Não era só gente famosa. Responde com carinho a uma senhora que deseja enviar ovos de pata para sua família. Do exílio carioca, envia cerca de 50 despachos ao secretário José Bento contando minúcias do seu cotidiano: o telhado que precisa ser consertado, os caixotes que vão ser despachados, os livros para desinfetar, a máquina de escrever quebrada. Esse documento do dia-a-dia de Mário vai ser publicado até o final do ano num livro que está sendo organizado por Marcos Antonio de Moraes.

Como seu herói Macunaíma, nunca foi a Europa e das fronteiras do Brasil só se afastou até Bolívia e Peru. No seu exemplar de trabalho, logo abaixo da constatação de Macunaíma de que, por falta de dinheiro, não poderia mais ir para a Europa atrás de Piaimã para buscar sua muiraquitã, escreveu à tinta: "Não! Não vou na Europa não! Sou americano e meu lugar é na América. A civilização européia decerto esculhamba a inteireza do nosso caráter." Mas, no artigo Paris publicado no Diário de Notícias do Rio em 41, reclamou: "É trágico isso do artista que nunca viu Paris. Vivendo entre artistas e intelectuais, foram incontáveis as vezes que tive de engolir a resposta irretorquível: `Você nunca foi à Europa'."

Apesar disso, sua correspondência traz selos dos quatro cantos do mundo. Reclamava da birra de Prudente, o neto do presidente, de escrever em francês. Acabou com os minuetos das festas futuristas de Lasar Segall. Fotografava com "codaque". Dizia que havia levado 20 anos para adquirir um estilo em português, "o povo não é estúpido quando diz `vou na escola' ou `me deixa' - lições da "Gramatiquinha" que ele nunca escreveu. O autor de Macunaíma estava enterrado nas raízes do Brasil até o osso indígena, negro, mulato, "brothers of three colors" como diz a crítica ao livro feita pela The New York Times Book Review em 1985.

Era múltiplo. Trezentos. "Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta,/ Mas um dia afinal eu toparei comigo." Escreveu Macunaíma em uma semana, numa chácara. "Como cansa escrever deitado!", diria. "Fiz montões de porcarias que não mostrava a ninguém, porcaria grossa, morte sem piedade", escreveu a Bandeira. Mas junto com Amar, Verbo Intransitivo, Paulicéia Desvairada, O Turista Aprendiz, Dicionário Musical Brasileiro, Será o Benedito!, os livros, póstumos ou não, de folclore, música, crítica, os estudos - por exemplo, sobre Maria, a mulher brasileira - e a correspondência, produziu o melhor da criação brasileira. Há três anos surpreendeu o Brasil com um romance inacabado, Balança, Trombeta e Battleship, que tem uma história no baú a ser aberto por Telê Ancona Lopes. O título do original, mais enxugado, era De Como Eles Perderam a Virgindade. Censurado no Portugal salazarista de 38, Mário trocou na época por Riacho de Chuva.

Conhecia música a fundo, estudou em conservatório. E artes plásticas - colecionou quadros de Tarsila, Segall, Portinari e um Picasso que uma carta de Tarsila, encontrada agora no baú por Telê Ancona Lopes, revela ser autêntico. Mestre em literatura, folclore. Transitava em todas as áreas, provava o melhor de cada uma. Com esse sôfrego desejo de se comunicar, acabou discutindo sobre tudo, fecundou os melhores, estimulou milhares, jovens escritores, embrião de escritor, escritor maduro. "Horrível", "bom", "lindíssimo", nunca deixava de comentar, nas margens dos originais enviados. Às vezes adorava o que havia odiado antes e assumia: "Desdigo tudo o que escrevi." Mas as críticas que faz a Bandeira, por exemplo, são distintas das que reserva para Drummond ou Nava. Para Mozart Camargo Guarnieri escreveu: "Você dorme nas formas já feitas. Você dorme nos seus cacoetes" e o compositor considerava Mário um "pai espiritual".

"O ganho me fugia em livros e eu me estrepava em cambalachos financeiros terríveis", escreveu a Bandeira, mas virou efígie de uma cédula na década de 90. Assim mesmo, construiu uma biblioteca de mais de 17 mil volumes. Era escrachado mas virou busto sisudo de bronze na praça da biblioteca. Acertou na vida, acertou na morte: previu que morreria aos 50 anos, morreu com 51. Numa carta para Ribeiro Couto, datada de 1923, ele se autodefiniu como "um sujeito sem vaidades, sem orgulhos, que escreve porque se não escrever explode, mas que não pensa na glória, manda esta à m... e gosta de sorvetes de carrocinha". Ele sabia, "sou um sujeito que vale muito mais que a própria obra", escreveu a Murilo Miranda. E ao mesmo Murilo deixou explícito numa carta "declaro solenemente, em estado de razão perfeita, que quem algum dia publicar as cartas que possuo ou cartas escritas por mim, seja em que intenção for, é f.d.p., infame, canalha e covarde. Não tem noção da própria e alheia dignidade". Mas quem ia acreditar no Mário brincalhão?

5 de julho de 1997 - Copyright 1997 - O Estado de S. Paulo - Todos os direitos reservados

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