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Análise das obras
Texto do trabalho: Movimentos Primitivistas

Leitor:

Está fundado o Desvairismo (...)

Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito. Tenho pontos em contacto com o futurismo (...)

Arte, que, somada a Lirismo, dá poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisá-lo das pedras e cercas de arame do caminho. Deixe que tropece, caia, se fira. Arte é mondar (limpar) mais tarde o poema de repetições fastientas, de sentimentalidades românticas, de pormenores inúteis ou inexpressivos (...)

Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão da moda.

Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver (...)

E está acabada a escola poética "Desvairismo".

Próximo livro fundarei outra.

E não quero discípulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para vaidade dum só.

(Mário de Andrade – Prefácio Interessantíssimo, in Paulicéia Desvairada, 1922)

No Prefácio Interessantíssimo, Mário de Andrade parece fundar uma nova escola literária: o Desvairismo, palavra que nos faz lembrar a radical negação da razão da arte dadaísta. Outro ponto de contato entre ambas é a ironia presente no título dos Manifestos: Prefácio Interessantíssimo, A Escrava que não é Isaura (paródia ou imitação satírica do nome de um romance regionalista romântico – A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães). Esta ironia demolidora se acentua quando o poeta declara, no fim do Prefácio, o encerramento das escola literária recém-inaugurada.

E explica por quê: Em arte: escola = imbecilidade de muitos, para vaidade dum só. Por isso, não quer discípulos, assim como Oswald de Andrade não quer nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo.

A recusa do academicismo, do "gabinetismo", da "prática culta da vida" constituiu um dos traços mais fecundos dessa primeira geração, cujo interesse era destruir as convenções, demolir os temas poéticos e também as formas "eruditas". Escrever como se fala, como se é, ver os "erros" como "contribuição milionária", ou aproximar poesia e vida, aproximar linguagem poética e oralidade. Aproximar, ainda, as reflexões sobre a poesia do fazer poético. Poesia sobre poesia: metalinguagem.

Estes elementos contém fortes traços dadaístas conforme comentamos, embora especificamente para Mário de Andrade a eles dava se acrescentar a "limpeza", o "trabalho de arte", a interferência da razão. Sua fórmula lirismo + arte = poesia pressupõe dois momentos igualmente indispensáveis para a criação poética: o momento "surrealista" da inspiração, da "impulsão lírica". (Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que o meu inconsciente me grita – Prefácio Interessantíssimo: antecipação, por Mário, da "escrita automática" proposta em 1924 no Manifesto Surrealista de André Breton) e o momento "espírito-novista" (Paul Dermée é o inspirador da fórmula e também um dos principais poetas desta tendência organizadora, construtiva das vanguardas) do trabalho, da reflexão, do "polimento" dos versos.

Momento de poesia e momento de arte, nas palavras de Mário de Andrade, que também criou a teoria da "polifonia poética", emprestada da música, segundo a qual um poema deve combinar versos melódicos (lineares, gramaticais) e versos harmônicos (associativos, dando a impressão de simultaneidade), tornando-se, assim, polifônico, isto é, de múltiplas vozes e formas.

Outra característica fundamental de toda a obra de Mário de Andrade é o nacionalismo, também presente em Oswald e na maioria das obras da primeira geração modernista.

A criação de uma língua nacional, de uma cultura nacional, de uma cultura nacional autônoma, independente, aproxima, em termos teóricos, os modernistas dos românticos. No entanto, há uma inversão de perspectiva entre ambos: enquanto o Romantismo exaltava a pátria de modo ufanista, idealizador, o modernismo de 22 propõe-se a questioná-la, a redescobri-la crítica e criativamente, a desvendar suas contradições mais umbilicais.

Mário de Andrade foi um incansável pesquisador de nosso folclore, de nossas modinhas populares, de nossa linguagem ou linguagens regionais, de nosso comportamento, elementos presentes na sua obra-síntese, Macunaíma, (será caracterizado adiante)

 

A POESIA

Se Há uma gota de sangue em cada poema, escrito em 1917, sob a influência da Primeira Guerra, é um livro adolescente, sem qualquer valor estético, a publicação, em 1922, de Paulicéia desvairada implica o surgimento de um poema adulto, ainda que bastante jovem cronologicamente. Um poeta capaz de teorizar sobre sua própria poesia e sobre as tendências modernistas do novo lirismo. No prefácio de Paulicéia desvairada ele diz:

"Quando sinto a impulsão lírica, escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que eu escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo."

Assim, percebemos na elaboração lírica de Mário de Andrade uma espécie de fórmula:

Impulso inconsciente + técnica posterior = poesia

Ou seja, o poeta parte de lampejos do subconsciente e os reelabora através de uma adequada técnica rítmica e semântica. O aspecto de técnica literária, no que Mário era mestre, às vezes o prejudicava, na medida em que a sua poesia se converte num jogo de técnicas vanguardistas. Ele as usa todas, desde o simultaneísmo até a elipse.

Ainda no prefácio, especifica-se a ligação da sua poesia com a arte futurista:

"Não sou futurista (de Marinetti). Disse e repito-o. Tenho pontos em contacto com o futurismo. Oswald de Andrade chamando-me de futurista errou. (...)

Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. ‘Si’ estas palavras freqüentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser."

Portanto, sua ligação com a escola futurista era periférica. Não tematiza a máquina pela máquina, o automóvel pelo automóvel, a exemplo de Marinetti, embora em Paulicéia desvairada os sinais exteriores da modernidade já estejam presentes.

Paulicéia desvairada é uma obra cosmopolita na linguagem e nos temas. Mário poetiza São Paulo em suas múltiplas manifestações: o progresso, a transformação da paisagem, o já visível domínio econômico dos imigrantes sobre as tradicionais famílias da burguesia da cidade, sempre envolta em garoa. E a garoa misturada à neblina faz o poeta, em um que outro momento, perder de vista a chaminé da fábrica, os bondes que "passam como um fogo de artifício" e sonhar com uma paisagem onde reinem as primaveras eternas. "Passagem 2":

"Escuridão dum meio-dia de invernia ..
Marasmos... Estremeções... Brancos..
O céu é toda um batalha convencional de ‘confeti’ brancos;
e as onças pardas das montanhas no longe..
Oh! Para além vivem as primaveras eterna! (...)

Lá para as bandas do Ipiranga as oficinas tossem...
Todos os estiolados são muito brancos.
Os invernos da Paulicéia são como enterros de virgem..
Italianinha, torna al tuo paese!

Deus recortou a alma da Paulicéia
num cor de cinza sem dor...
Oh! para além vivem as primaveras eternas! ...
Mas os homens passam sonambulando...(...)

São Paulo é um palco de bailados russos
Sarabandam a tísica, a ambição, a inveja, os crimes
e também as apoteoses da ilusão...

Mas o Nijinsky sou eu!
E vem a Morte, minha Karsavina!
Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança
a rir, a rir dos nossos desiguais!"

Porém, o amor de Mário por São Paulo é uma entrega doce e terna, não tem o ufanismo fácil dos românticos. Se em "Inspiração" ele diz:

"São Paulo! Comoção de minha vida..."

em outros poemas ele ironiza e destrói a cidade e seus habitantes, dentro daquele espírito quase anarquista dos anos 20 na literatura brasileira. Esta ironia estrutura o mais famoso poema de Mário de Andrade: "Ode ao burguês". Ironia já presente no próprio título da composição, pois ode significa, em geral, uma poesia de elogio

"Eu insulto o burguês! O burguês-níquel
O burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo! (...)

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros! (...)
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Tu! Fora o bom burguês!"

A FICÇÃO

Mário de Andrade fez sua ficção girar em torno de dois núcleos básicos: o universo familiar da burguesia paulista e o primitivismo de fundo folclórico e popular.

Ao primeiro tipo de narrativa – mais próximo da biografia do autor – pertencem Amar, verbo intransitivo e Contos Novos. O primeiro apresenta a chance de um grande assunto: o caso de amor entre o adolescente de família tradicional e a preceptora encarregada de realizar sua "educação sentimental". Essas "governantas" eram contratadas para evitar que os jovens se iniciassem com prostitutas, com o conseqüente perigo de doenças venéreas ou paixões tipo A dama das camélias. Além disso, essas moças – européias sempre – garantiam um trabalho asséptico, isto é, não tocavam nas emoções e afetos, realizando uma espécie de serviço de enfermagem. No romance, dá tudo trocado. Infelizmente, o texto naufraga num psicologismo duvidoso e nas intervenções contínuas e nem sempre oportunas do narrador. Muito mais eficientes como literatura são os relatos de Contos Novos. Há no livro pelo menos dois contos antológicos e que merecem ser lidos: "O peru de Natal" e " Vestida de preto".

Macunaíma representa a identificação de Mário com o nacionalismo primitivista. Desde o início do romance (ou a rapsódia, como queria o autor) apela para o suporte mitológico: a lenda indígena de Macunaíma transfigurada pelo escritor:

"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retino e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

- Ai! que preguiça!...

E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Viva deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozado por causa dos guaiamuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graçasdela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. (...) "

Mário de Andrade não se restringiu às tradições míticas dos índios. Há no texto lendas sertanejas e caboclas, misturadas com aspectos mágicos da cultura afro-brasileira e assim por diante. Em sua trajetória, Macunaíma vai incorporando essas interpretações míticas, como se, através de um mosaico, se delineasse a cultura brasileira. O esforço de síntese percorre toda a rapsódia: síntese cultural, linguística, geográfica, psicológica. Todo o Brasil e o homem brasileiro num só livro. Do ponto de vista do realismo, isso seria absurdo, mas o texto não é realista. Nem exclusivamente alegórico. As lendas, por exemplo, embaralham-se com cenas da cidade de São Paulo. O resultado – ainda que a unidade e o equilíbrio da obra não sejam mantidos – é um texto cheio de inventiva e surpresa, dentro daquele clima anticonvencional da época.

Em sua linguagem tão múltipla, o relato satiriza os padrões da escrita acadêmica. A carta que Macunaíma envia às icamiabas (índias amazonas) é uma paródia da retórica bacharelesca que sempre caracterizou os letrados brasileiros:

"Senhoras:

Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudade e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo do dizer de seus prolixos habitantes – não são conhecidas por ‘icamiabas’, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes ginetes belígeros e virdes da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muitos nos pesou a nós, Imperador vosso, tais dislates da erudição, porém heis de convir conosco que, assim ficais mais heróicas e mais conspícuas, tocas por essa pátina respeitável da tradição e de pureza antiga."

O esforço maior de Mário – embora sempre o negasse – foi no sentido de configurar o "herói de nossa gente". As andanças de Macunaíma da selva à cidade, seus amores, a presença de seus irmãos, Maanape e Jiguê, os quais explora sem piedade, a própria origem étnica – filho de índios, nasce negro e vira branco depois - , tudo isso tem como objetivo a delimitação do "caráter" do brasileiro. Os traços definidos no romance apontam para a preguiça, para a irreverência, o deboche, e uma sensualidade forte como elementos estruturadores da vida de Macunaíma. Em resumo, estamos frente á malandragem. Mas, de certa forma, é uma malandragem derrotada, pois Macunaíma retorna à selva. O mundo social tem maior complexidade que sua consciência ingênua. Sobra-lhe o caminho mítico: subir aos céus e virar constelação. E em estilo despachado o narrador encerra a rapsódia:

"Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei maus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente. Tem mais não."

 

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