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Crônica de Hugo de Castro no livro

O DRAMA DAS ESTRADAS DE FERRO NO BRASIL

Em 1981, foi publicado o livro "O Drama das Estradas de Ferro no Brasil", escrito por Hugo de Castro, um livro com denúncias e críticas calcado em números e fatos, sobre o nascimento e morte de algumas ferrovias nacionais, denunciando muitas das suas mazelas e escândalos, que acabaram provocando a diminuição da importância do transporte ferroviário no Brasil. Veementemente contra a erradicação da S.P.M.,seu autor faz sobre esse episódio uma crônica assaz crítica, que reproduzimos abaixo.

"A inconsciência com que têm agido, no Brasil, os homens do governo, com relação às mais importantes deliberações administrativas, é de revoltar qualquer brasileiro de espírito sadio que goste um pouquinho de sua terra. Não se trata apenas de inconsciência; vem, junto, uma assustadora ignorância, o desconhecimento total dos assuntos, uma espantosa incapacidade de estudá-los, uma extrema burrice, um criminoso descaso, uma exibição de mediocridade de pasmar.

Às vezes a gente nem acredita em certas resoluções tomadas pelos órgãos governamentais.

Temos certeza de que se esses homens tratassem dos seus interesses pessoais com o menosprezo com que cuidam das coisas públicas, estariam quase todos, de chapéu na mão, pedindo uma esmolinha pelo amor de Deus nas portas das igrejas, das ermidas, das capelas, das catedrais, das sés e dos cemitérios.

Os estropícios por eles provocados são de causar espanto e mágoa.

Os predicados negativos dessa gente que "faz o país" deram origem a um drama dos mais graves para São Paulo e no qual muita gente não reparou: a extirpação da Estrada de Ferro São Paulo e Minas, ato de incomensurável infelicidade consumado pelo "inclito estadista", fazendeiro e banqueiro Laudo Natel. A São Paulo e Minas, com 139 quilômetros de via, ligava Bento Quirino e Ribeirão Preto, em São Paulo, com São Sebastião do Paraíso, em Minas Gerais. Tem uma história assaz pitoresca.

É fruto de um acalentado sonho inglês de pegar minério de ferro no "Morro do Ferro", no município de Jacuí, em Minas Gerais, e levá-lo para a Inglaterra, através da São Paulo e Minas, da Mogiana, de Bento Quirino a Guatapará, a Paulista e a São Paulo Railway, de Guatapará a Santos. Os fleugmáticos representantes britânicos, no Brasil, do "The London and River Plate Bank", que tinham em mãos, desde 1908, a concessão da estrada, esperaram pacientemente, até 1914, que as complicações processuais da São Paulo e Minas com a Mogiana, por razões de zona de influência, terminassem; mas a conflagração de 1914-1918 estourou e o processo entre as duas estradas não terminara.

A Inglaterra não conseguira ainda ir buscar o minério de ferro em Jacuí; desse sonho da mais poderosa nação do mundo, no primeiro decênio do século, ficou a lembrança simpática, posto que ligeiramente arredia, de James Martim Stuart, o diretor da São Paulo e Minas, um inglês típico, alto, bonito, suave diretor local, solitário morador de um enorme casarão de varandas laterais, sombreado de mangueiras, com quadra de tênis ao lado e um sótão provido de dois telescópios através dos quais, nas noites propícias, Stuart espiava as estrelas, sonhando possivelmente com alguma.

Durante o dia Stuart perambulava constantemente pela região, dirigia a estrada, tomava banhos no Tamanduá, risonho córrego próximo e jogava tênis, no seu campo particular, um dos primeiros desse esporte no Brasil. Quando rebentou a grande guerra de 1914, Stuart foi chamado para prestar serviços à sua terra. Nunca mais voltou. Mas não morrera, apenas tinha se casado, colhido uma estrela.

O primeiro trem da São Paulo e Minas rodou no dia 1º de agosto de 1898, sob a responsabilidade da Companhia Melhoramentos de São Simão, iniciativa de um grupo de fazendeiros locais e a finalidade de transportar café, serpenteando no sopé das vertentes que atingem Serra Azul, a 23 quilômetros de São Simão. Por razões técnicas, pouco depois a sua estação inicial (a atual Santa Casa de São Simão) foi transferida para Bento Quirino. Em 1908, como já vimos, a estrada passou para o "The London and River Plate Bank", que funcionava no Brasil desde 1862.

A partir de 1914 esteve algum tempo nas mãos da Companhia Siderúrgica de Ribeirão Preto que, pretendia trabalhar o ferro de Jacuí, tendo passado à propriedade do Estado de São Paulo em 1933. A partir de então a estrada de ferro funcionou, tergiversante e intermitentemente, quer dizer, tentando melhoramentos que não chegaram a ter eficiência porque nunca se fez nela o essencial: o melhoramento de seu traçado e de sua infraestrutura.

Alargou-se a sua bitola de sessenta centímetros para um metro; seu leito começou a ser empedrado; mas a adaptação do material rodante e de tração para a nova bitola tornou-se um sério problema. Foi nesse período de vida da estrada que Bento Quirino, uma simples estação da Companhia Mogiana, começou a crescer; começou a crescer materialmente e a nascer como célula social modelo.

E em virtude do espírito de honestidade, de solidariedade mútua e de trabalho constante de sua gente, chegou a figurar nas estatísticas do Conselho Nacional de Geografia, na década de cinquenta, como o núcleo populacional de maior conforto médio no Brasil.

Materialmente foi provida de:

  • Uma sede para a administração da estrada; uma ótima casa para o diretor;

  • Um grupo de cinquenta casas para funcionários, de entre as quais cinco muito grandes, com amplos jardins e quintais, para os chefes de departamento;

  • Uma oficina mecânica muito bem aparelhada;

  • Um depósito de vagões;

  • Uma rotunda com girador;

  • Uma escola de formação de oficinas;

  • Um poço semi-artesiano, de 109 metros de profundidade, de base diabásica, jorrando em quantidade água puríssima, distribuída à população através de rede da própria estrada;

  • Um grupo escolar amplo e moderno;

  • Um gabinete dentário;

  • Uma pequena cadeia;

  • Um vasto armazém de abastecimento que fornecia, a prazo, para os funcionários, desde o fósforo até a geladeira;

  • Um clube recreativo e de esportes que causava surpresa, espanto e admiração a quem o visitava pela primeira vez e nem acreditava no que estava vendo.

Esse clube, a Associação Esportiva Quirinense, em cujo jardim frontal se exibe, vaidosa e sedutora, uma das primeiras locomotivas que vieram de Filadélfia para a estrada, está instalado numa área de dois alqueires aproximadamente, e contém uma grande sede moderna, com salão de dança, cinema e bar; tem um campo de futebol oficial cercado de tela e muro, com arquibancadas de concreto armado e vestiário; um campo de bocha duplo, campo de basquete, grande área coberta com cozinha e barracas de telha, para jogos e leilão de prendas nas quermesses.

As quermesses de Bento Quirino eram famosas; a população inteira se esforçava, gratuitamente, para dar-lhe um brilho incomum; para tomar parte nelas chegava gente de toda a redondeza, até de São Paulo; às vezes duravam três dias seguidos e era uma delícia passar os fins de semana assistindo seus ricos leilões, deglutindo frangos e leitão assado, mastigando, com volúpia, os célebres pastéis de D. Cezira, bebericando uma suave cerveja gelada, ouvindo música, tudo isso unido ao picante prazer de comentar a vida alheia, ao ingênuo sabor do "Correio Elegante" e a doces idílios precursores de suaves noivados e felizes compromissos de casamento.

A finalidade inicial daquelas quermesses era a construção da graciosa igreja local dedicada a Santo Antônio, erguida em sombreada praça à custa do povo que, além das quermesses ainda se reunia constantemente em gloriosos mutirões de trabalho para que a linda igrejinha ficasse logo pronta e o bimbalhar dos sinos enchesse de místicas vibrações a comunidade.

Todas as crianças e toda a juventude estudava; um ônibus construído nas oficinas hoje arrasadas da estrada, levava, cedo, para São Simão, os alunos do Ginásio e da Escola Normal; e, à noite, levava e trazia os discentes da Escola de Comércio.

Mas... delenda Bento Quirino!

Num certo dia de novembro de 1971 apareceu Laudo Natel e, num acesso de obnubilação total resolveu acabar com a festa; como quem desse um pontapé violento no ventre de uma filha grávida, pois que a São Paulo e Minas era filha do Estado, ordenou que a estrada fosse destruída, sua oficina fosse arrasada, que até as paredes fossem derrubadas; uma estupidez de louco alucinado.

Com a destruição da oficina acabou, ipso facto, a Escola de Formação de Oficina; o exemplo, destruir uma escola - partindo de um estadista, um governador, é edificante! Houve, entretanto, coisa mais grave; ao lado do crime, o roubo. O maquinário arrancado da oficina, de entre o qual se destacava uma magnífica prensa alemã e moderníssimo aparelho de solda elétrica, foi encaixotado, posto num vagão da Mogiana e desapareceu.

Denunciamos o fato, bem como irregularidades havidas no Armazém de Abastecimento e Farmácia anexos (todos os psicotrópicos sumiram) a sete deputados estaduais e, pessoalmente, ao então presidente do Legislativo paulista, Paulo Planet Buarque, catedrático em solecismos; o resultado dessas denúncias foi o silêncio mais absoluto; os escândalos foram abafados; os quarenta ladrões ficaram impunes.

Bento Quirino sofreu grave impacto com a eliminação da São Paulo e Minas e suas oficinas, mas resistiu ao ciclone, dado o fato de que a estratificação de sua gente no trabalho e na honestidade era sólida; não fosse isso e Laudo Natel teria tido o privilégio de ser o primeiro criador de uma escola de bêbados e vagabundos no Brasil; todos os empregados, postos em disponibilidade, ou seja, continuando a receber seus salários sem trabalhar, poderiam ter se tornado até assaltantes e matadores.

O que não se compreende é como é que um homem de Estado toma uma resolução tão idiota como é a de fechar uma maravilhosa escola de artífices e a de arrasar uma oficina.

Laudo o fez, sem o menor estudo, sem a menor atenção, sem perguntar, sem tomar conhecimento de que o único item de orçamento positivo da estrada era o dos serviços particulares que ela prestava às usinas de açúcar, aos fazendeiros, consertando seus caminhões e implementos, e aos habitantes, em geral, da região; fê-lo como teria feito qualquer enfatuado sultão todo poderoso.

Como desejamos ser, neste livro, o mais justos possível, cabe contar aqui um episódio administrativo que se passou em 1956. Nesse ano, por iniciativa da Companhia Mogiana, que tinha um velho tiquiri com a São Paulo e Minas, foi sugerida ao governador Jânio Quadros a supressão desta. Jânio Quadros estudou o assunto e como sabia pensar, refletir, discernir, cogitar, era percuciente e vivo, despachou:

  • "A E.F.S.P.M. deve continuar

  • Esse processo passou pelas nossas mãos e marca bem a diferença de duas mentalidades: uma inteligente e perspicaz, outra obscura e plúmbea.

    Ao mandar, num gesto primitivo, acabar com a São Paulo e Minas, Natel não destruiu apenas uma escola de artífices, destruiu outra escola muito mais importante, além de única: a escola modelo de gregarismo social representada por Bento Quirino e seu povo tradicionalmente trabalhador, ordeiro, solidário e caprichoso. Viver em Bento Quirino era suave e reconfortante; não havia mendigos, todo mundo se auxiliava mutuamente por ocasião de festas e casamentos, nos quais a comunidade inteira aparecia e se banqueteava à vontade.

    Um estadista, um homem ligeiramente ilustrado, um homem que tivesse um vago conhecimento de alguma coisa, antes de mandar destruir as oficinas da São Paulo e Minas, teria se lembrado do exemplo da pequenina e longínqua Wolfsburg, onde estava situada a Volkswagen,--pequeno burgo que, de 2.000 habitantes, passou a mais de 200.000 em menos de quatro anos.

    Sorte que, pela fibra do seu povo, Bento Quirino tenha resistido ao impacto da destruição de sua fonte de labor e de ensinamento; em ritmo menos acelerado continua progredindo; tem excelentes casas particulares novas, uma Escola de Comércio, um Grupo de Ação Social em atividade contínua, piscina e sauna no seu clube esportivo. E suas animadas festas e suas entusiásticas competições desportivas continuam.

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