Boletim Mensal * Ano V * Novembro de 2006 * Número 45

           

Fado também é cultura (3) 

Alfredo Antunes

 

Comadres e Compadres. Na última conversa, demos um mergulho para descobrir que o nosso Fado entronca no Fatalismo Grego. Não esqueçam: segundo os gregos, existem dois princípios eternos, ou duas divindades. Uma benéfica, que preside ao mundo espiritual, e outra, perversa, que preside ao mundo material, onde nós, os humanos, existimos. Esta divindade perversa é que traça o destino (ou Fado) que cada um de nós traz para a vida, ao nascer. Destino que teremos de cumprir, queiramos ou não. E como esta divindade é maligna, também é, quase sempre, maligno o destino com que ela nos marca. (Se, por acaso, alguém nascia com um destino feliz, é porque já se tinha purificado, ao longo de sucessivas reencarnações- acreditavam eles). Lógica cruel, meus Compadres! Pois é. É duro, mas, que remédio, senão aceitar a sorte! É por isso que o autêntico fadista, enquanto canta, assume um ar de desgraça, veste de negro, fecha os olhos e, na maioria das vezes, seu corpo rígido se movimenta como se estivesse em transe. Claro que nós não acreditamos nesta filosofia! Nem, talvez, os cantadores ou cantadeiras acreditem. Mas ficou algo no imaginário português (e, sobretudo, nos fadistas autênticos) que aponta para esta relação Fado-mal, Fado-desgraça, Fado-destino cruel, Fado-pecado.         Quando eu tinha uns cinco ou seis anos, minha mãe desligava sempre o rádio quando tocava fados. Nunca me disse por quê. Apenas dizia: Escutar Fado não é bom! Mais tarde, quando andava na escola (ali por 1945), tinha mais sorte. É que, próximo à escola, havia uma feira; e, freqüentemente, de lá transmitiam fados pelos auto-falantes. Quando chegava a hora do recreio, em vez de brincar de “esconde-esconde” ou de “cabra-cega”, eu ia, por vezes, aninhar-me, lá longe, no canto do muro, para melhor escutar. Era lindo ouvir a D. Teresa de Noronha cantar o Fado das Horas, ou a Amália Rodrigues, a plenos pulmões (tinha ela, então, 25 anos) cantar o lindíssimo Fado Malhoa! Depois, fui para um colégio interno de Padres Jesuítas, onde, durante sete anos, não mais pude escutar Fado... Havia lá muita música: folclore, música popular e, sobretudo, música clássica. Mas Fado, não. Fado era pecado! Uma vez, de férias (com 12 anos), convidei duas priminhas, a fim de ensinar-lhes o “Fado de Santa Cruz” (fado de Coimbra, que o Menano cantava). Quando elas viram que era Fado, fugiram. E ali fiquei eu, com cara de tacho, a trautear: Igreja de Santa Cruz/ Feita de pedra morena...). E assim, de pecado em pecado, lá fui subindo os degraus da vida, e entendendo melhor as coisas e suas razões. Não era à toa que o Fado não era cantado por “gente de bem”. O Fado era coisa de bas fond, coisa de boêmia, coisa de degradados e  excluídos. No fado “Antigamente” lá se diz, com todas as letras: Antigamente, era couto a Mouraria/ Daquela gente condenada à revelia/ E o fado ameno/ Canção das mais portuguesas/ Era o veneno para acalmar-lhe as tristezas. Não foi à toa que, quando D.Teresa de Noronha (aristocrata, de linhagem real) começou a cantar fados, foi, no começo, execrada pela fidalguia e pelas “pessoas de bem”. Ela só cantava em salões da nobreza, mas, mesmo assim, era criticada pelos seus pares e pelos intelectuais. E não foi também à toa que os amores do 4º. Conde de Vimioso  com a Rosa Maria da Severa – prostituta e fadista, da Rua do Capelão - escandalizaram toda a nobreza lisboeta. Pois é, meus Compadres. Isto de aceitar, na vida, um destino cruel que a Moira grega nos impõe, faz estragos na alma e no corpo! Por quê? Porque Fado é, na concepção grega, uma herança maldita.

                 Foi só no Estado Novo, com Salazar, que o Fado, em Portugal, passou a ser “limpo”, e os fadistas a saírem à luz do dia. Hoje, é chique ir aos fados. E ... até, escrever sobre eles! Mas, repito, ser fadista de verdade, (mesmo que seja apenas um “faz de conta”, enquanto se canta) é aceitar lidar com um não-sei-quê de pecado e de mal. É como que aceitar ser excluído da divindade do Bem e aliar-se à divindade vingadora do Mal. Já dizia um velho fado: Se é pois um pecado/ Ter amor ao fado/ Que Deus me perdoe/ Mas eu sou assim/ E fugindo ao Fado/ Fugia de mim.E quem não se lembra daquele lindíssimo fado que a Amália tantas vezes cantou: Aquela mulher pecou/ Por amor se fez fadista/E tão longe o fado a levou/ Que Deus a perdeu de vista! Amália sabia das coisas do Fado. Sabia, sobretudo, que o cruel Destino que lhe tomou a vida, era muito maior do que ela. Na entrevista definitiva que deu, poucos meses antes de morrer, aos 80 anos, ela ainda dizia: Nosso Senhor deu-me tudo na vida para ser feliz. E eu, até parece que não sou agradecida, pois continuo triste como sempre fui...

                Desculpem, Compadres. Fui um pouco longe. Mas aceitem, pelo menos, duas verdades: 1) Não é fadista quem quer/ Só é fadista quem calha.2) “Fado também é Cultura”.. Fui, talvez, um pouco pesado. Serei mais rasante, da próxima vez. Até lá, se o “Deus do Bem” quiser.

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