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Coerência e Legitimidade.
Vera Felicidade de Almeida Campos
Publicado no Boletim do SBEM, julho/setembro
2001, pag.46-47
Vivemos em sociedade, fazemos parte de grupos
e em certo sentido o menor grupo existente é o composto
por nós e nós próprios, ou eu e eu mesma.
Este sentido reflexivo, esta percepção de si como
eu configura estruturas e funções, estabelece definitivos
e transitórios, define sistemas e circunstâncias.
Estamos no mundo, esta contextualização
é uma realidade. É uma vivência que pode
ser percebida de várias maneiras. Pode ser pregnante o
mundo, o que nos acontece, o que nos situa. Pode ser pregnante
nossos propósitos e necessidades ao ponto de perdermos
de vista o mundo, nosso situante. O processo é variável
e relacional. Esta mobilidade permite interação
e integração. Quando nos referenciamos continuamente
nos processos do mundo, ou em nós próprios, estabelecemos
a inércia vivenciada como parada, responsável por
pontualizações, responsável por quebra de
dinâmica relacional. Perdemos autonomia. Ao vivermos isolados
estruturamos uma independência resultante da impermeabilização,
que nos desconecta de tudo, que cria ilusões, que é
a independência gerada pela insensibilidade. É a
autonomia criada pela impossibilidade de interagir.
Acontece que não existem situações
isoladas, tudo está relacionado a tudo - o modelo físico-quântico
do universo nos impõe esta realidade. Acontece também
que mesmo isolados nos percebemos fazendo parte, pois perceptivamente,
psicologicamente, o eu é um outro, formador do menor grupo,
do menor sistema social existente.
Sensível às demandas, aos desejos,
procuramos através de funcionamentos adaptados aos nossos
propósitos, participar das circunstâncias, aproveitando
delas o que melhor se coadune às nossas necessidades,
aos nossos sonhos. Os critérios são estabelecidos
em função dos objetivos necessários ao nosso
bem-estar. Senso de oportunidade e adequação caracterizam
nosso estar-no-mundo. Este tipo de vivência impede a estruturação
de qualquer coisa que seja diferente do armazenar de ferramentas,
utensílios próprios e adequados à consecução
de tarefas liberadoras, realizadoras. Nestas convergências
relacionais, surgem as funções. Esta transversalidade
relacional nos permite atingir várias partes, várias
situações e direções. Estas situações
são vivenciadas de forma independente, por exemplo: o
melhor amigo, precisa ser alijado de nossa vida, pois ele se
constitui em um obstáculo, impedindo nossa realização
profissional. As situações são vivenciadas
como "matar ou morrer" e ainda mais complexa e conflitivamente
são percebidas como matar em uma situação,
ressuscitar, recuperar em outra. Cria-se a onipotência,
a falta de critérios, a falta de coerência, de lógica,
de ética. Viramos deuses, decidindo. Viramos "pau-para-toda-obra",
sem critérios. Esta despersonalização permite
tentar vencer, tentar conseguir. É muito forte a ocorrência
deste processo quando se busca resultados - é a conhecida
falta de ética, é a atitude maquiavélica
onde os fins justificam os meios. Não importam as regras,
não há critérios, não há profundidade.
Sem raízes, amparados e apoiados, seguimos atrás
dos funcionamentos redentores. Este processo é desumano,
é alheio, aderente à estrutura humana, embora seja
muito frequente e encontradiço.
A continuidade destas vivências de sobrevivência
desumaniza. Ao crestar, cortar sua possibilidade de transcendência,
o ser humano se isola, apenas sobrevivendo.
No relacionamento com o outro surgiria transcendência
ao próprio sistema, responsável por interação
e integração.
Nas circunstâncias e funcionamentos
as vivências se esgotam nelas próprias, apontando
apenas para sanar necessidades, para preencher desejos. O desenvolvimento
deste processo não deixa marcas estruturantes. É
o ir e vir, o fazer constante, o lavar pratos, cuidar de pessoas,
criar obras de arte, varrer chão cotidianos, é
o funcionamento. Estas mesmas atividades podem acontecer e estabelecer
estruturas, critérios e coerência. Basta não
se esgotar nelas, basta perceber que elas estão sempre
apontando para alguém. Neste momento lembro de Franz Brentano,
filósofo precursor do pensamento fenomenológico,
que estabeleceu a diferença entre o fenômeno físico
e o fenômeno psíquico, dizendo que o fenômeno
físico é aquele que se esgota em si mesmo, enquanto
o fenômeno psíquico está sempre apontando
para algo, para alguém. Com esta diferença, Brentano
conseguiu mostrar que o importante não é o fato,
mas sim o ato, não é o substantivo, mas sim o verbo,
isto é, o amor não significa, o que significa é
o amar, o importate não é o vermelho, é
o "vermelhar", o importante não é a vida,
é o viver. Nessa visão, o homem importa enquanto
processo, enquanto humanizar.
Situados, posicionados, perdemos, colapsamos
o processo. Nada é estruturado a não ser apoios,
pontes e anseios. Humanizar só é possível
quando saímos das superficiais contingências e atingimos
as raízes de nossa humanidade. Esta radicalização,
este não ser apenas um organismo sobrevivente, nos possibilita
critérios, descobertas - mapas orientadores e responsáveis
por direções, caminhos. No trilhar dos caminhos,
sabemos para onde vamos e para onde não vamos. Separamos
o joio do trigo, debulhamos, identificamos. Conseguimos com estas
atitudes ficar além das circunstâncias, conseguimos
estruturar referenciais e referências. Surge a ordem, a
frequência, a repetição, o limite. Surge
a coerência criadora de identidade. Esta marca individual
é a personalização, graças a ela
transitamos em vários sistemas, em vários contextos
mantendo nossa individualidade, nossa coerência. Infelizmente,quase
sempre, o que supre, alimenta e nutre esta coerência no
humano, são estoques a ele alheios: as religiões,
as ideologias, os corporativismos - regras, prévios organizadores
e definidores, como tais, esvaziadores.
Vivenciar paralelamente circunstância
e estrutura, ética e estética, possibilidade e
necessidade cria conflitos. Ao fazer uma trança, ao interagir
com o que ocorre, sem objetivos nem regras prévias, conseguimos
aprofundar as contradições e sermos coerentes,
sem fragmentações desumanizadoras.
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