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Dependência, hábito e medo

 

Vera Felicidade de Almeida Campos

Publicado no Boletim do SBEM, abril/junho 2001, pag.42-43

O denominador comum entre dependência, hábito e medo é o apoio.

A insegurança, a falta de autonomia, o ajustamento/desajustamento a normas e padrões, estabelece a necessidade de apoios. Estes apoios são genericamente representados pelas comunidades e instituições e especificamente são representados pelo outro: amigo, amada, marido, companheira, pai, mãe, irmãos etc. Os apoios são responsáveis pelo estabelecimento de regras, de rotinas estruturantes de hábitos mantenedores do processo social e civilizatório.

A insegurança é decorrente de vivermos em sociedades estruturadas na lei do mais forte, na existência de padrões e valores determinantes do estar no mundo. A regra social estabelecida em função do ter, sem considerar a autonomia humana, cria instituições que desumanizam. Para participar do processo social o ser humano precisa ser educado. O processo educativo está construído em valores aderentes ao humano. Os melhores anos de nossas vidas são vivenciados em função de atingir patamares à partir dos quais nos realizaremos: teremos conhecimento, poder e dinheiro. Estabelecidos estes padrões, só nos resta concorrer, correr para vencer. A competição passa a ser uma constante. Se não vencermos seremos considerados fracos, incapazes, desadaptados. É a marginalização, perdemos um grande apoio.

Ser autônomo e estar determinado por um organismo limitado por articulações, circulação, respiração e necessidades fisiológicas é complicado; equivale a realizar possibilidades ao estar dirigido por necessidades. A autonomia só é possível quando se exerce o cuidar do organismo, sem nele se deter, ou dele se aproveitar. É a não teleologia, o não pragmático, o fazer por fazer, o wu-wei taoista, princípio da não ação bem expresso por Lao Tzu:

"Aja sem agir
Faça sem fazer
Experimente sem experimentar
Se pequeno ou grande, muito ou pouco, pague ódio com virtude
Prepare-se para o difícil enquanto ainda for fácil
Lide com o grande enquanto ainda é pequeno
Tarefas difíceis sempre começam com o que é fácil
E grandes tarefas sempre começam com pequenas
Portanto, o sábio nunca luta pelo grande
E porisso o grande é realizado
Quem faz promessas seguramente não tem fé
Quem toma tudo muito facilmente, seguramente encontrará muita dificuldade
Porisso, mesmo o sábio vê as coisas como difíceis
E então ele não encontra dificuldades."
(The Natural Way of Lao Tzu - nº63, pag.169, in: A Source Book in Chinese Philosophy, translated and compiled by Wing-Tsit Chan)

Através da insegurança criada pelo processo social e educacional somos sempre dirigidos por padrões. Ajustados ou desajustados, deles não prescindimos. As regras, os modelos, os moldes a copiar ou abandonar nos ajudam. São atalhos úteis na luta pela sobrevivência. Ficamos inseguros, preocupados com a morte e lutando para viver. Esta desumanização explica o caos social, familiar e individual existentes. Vale citar Nietzsche: "Eu disse que a guerra é o único remédio para evitar que o ideal do Estado se transforme em ideal monetário. Culpados disto, os ricassos bismarckianos proclamaram-me apóstolo da guerra. Ora eu cantei um hino à guerra, dei ouvidos a Apolo, o grande guerreiro, 'fazendo o seu arco de prata emitir um rangido horrível', mas nunca identifiquei Apolo com os soldados da Bolsa de Valores que bebem cerveja e comem salsichas.

"Por isso me ofende o apoio desse Senhor Bolsos Cheios que vem visitar-me a este manicômio e me garante que olhará pelo meu futuro quando eu sair daqui. Com medo de vê-lo cumprir a promessa, prefiro continuar por aqui." [pag.147 do livro A Minha Irmã e Eu]

Quando os apoios não apoiam, quando falham, quando quebram, eles são substituídos. No desequilíbrio, qualquer queda constitui o chão como apoio, como base. Faltando o outro, surgem os orientadores institucionalizados: o psicoterapeuta, o médico, os animais terapeutas , os sacerdotes, gurus e mestres espirituais: o padre, a iyalorixá, o pastor. Na falta destes "outros" institucionalizados, a necessidade antropomórfica aparece: é o bicho de pelúcia, o irmão imaginário e por incrível que pareça, a droga, sob a forma de remédio tranquilizador-animador ou como maconha, cocaina. É criado um processo repetitivo, é o hábito, é o vício. Através da repetição surge a certeza de que quando vem o problema, o mal-estar, usa-se o que alivia, ou se conversa com quem entende e o bem-estar é recuperado. Esta certeza é o hábito estruturante do bem-estar automático. Não é mais uma válvula de escape, nem uma saída de emergência, é a crença, é a maneira de resolver o desequilíbrio, a insegurança. É o apoio. Como tudo gira, como o movimento é sempre existente, o apoio estabelece o medo, no mínimo o medo de perdê-lo. O que é considerado problema não é depender, mas sim, não encontrar o que apoie. Assim colocado fica claro que o drama do homem é buscar e não encontrar apoio.

Que fazer diante deste vazio? Inventar; para isto é necessário negar o existente, negar o presente. Neste processo de omissão - governados pelo medo - procura-se proteção. Fica-se dependente do que acolhe, não importando se esta acolhida é o abraço fraterno do amigo, a mão segura dos pais, o dinheiro da conta bancária, a paz conseguida pelas preces, ou a visão de um mundo sem barreiras proporcionada pela droga.

A independência é um processo decorrente da vivência e integração dos limites, de aceitação do presente. Quando as coisas são colocadas em termos de vencer ou vencer, quando não admitimos a derrota, reduzimos tudo aos nossos desejos e neles apoiados dependemos cada vez mais de novas conquistas.


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