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Impotência
é a integração de limites
Vera Felicidade de Almeida
Campos
Publicado no Boletim do SBEM, julho/setembro
2000, pag.43-46
Antes de qualquer coisa, fixemos
alguns referenciais, alguns contextos que nos permitam compreender,
apreender as estruturas configuradoras imanentes à impotência.
A impotência é o denominador comum da história
da humanidade. É a mola propulsora do desenvolvimento,
do processo civilizatório, do processo tecnológico.
O homem diante de impossibilidades sente-se impotente, sem condições
de atuar, de solucionar os impasses existentes. Aceitando este
limite, esta realidade, se sente impotente. Não aceitando
as impossibilidades, acha que alguma coisa está errada,
está faltando, fica desesperado, amedrontado, ameaçado,
irritado, culpado, transformando assim, a vivência de impossibilidades,
a vivência de impotência em incapacidade, vitimando-se,
enchendo-se consequentemente de complexos e não-aceitações.
Esta vivência de incapacidade é o que ocorre quando
a impotência não é aceita. Frequentemente
confunde-se incapacidade com impotência. Em contextos mais
específicos, falar de impotência é falar
de determinado fracasso, impossibilidade sexual.
Vivenciando a impotência
temos os pés no chão, estamos inteiros no aqui
e agora da situação apesar de imobilizados, impotentes.
Não aceitando a impotência, perdemos o presente,
fugimos para um futuro/passado, divididos entre desejo e medo,
tampando a impotência com culpa, raiva, apreensão.
Não nos imobilizando, movimentamo-nos através de
dispersões que terminam por esvaziar-nos.
É a vivência
da impotência, da imobilidade, do impasse, que possibilita
a mudança, a criação, enfim o desenvolvimento
da criatividade, do progresso científico, tecnológico
e em termos individuais é o que possibilita a transcendência
do limite, do impasse.
Impotente diante da sobrevivência,
o homem coletor-caçador desenvolveu os instrumentos. A
faca de sílex foi uma maneira de resolver o impasse criado
pela insuficiência, pela impossibilidade dos dedos, unhas
e dentes abrirem as caças. Detendo-se no problema: "como
abrir esta barriga de alce?" ele notou que faltava ponta
nos dedos e as que sobravam dos dentes e unhas permitiam apenas
furos descontínuos. Imobilizado no problema percebeu que
a questão já não era a falta da ponta, mas
sim o como dar continuidade aos furos, rasgava com uma pedra,
um pedaço de pau qualquer insight. Surgiram as facas.
É interessante notar que nas mais diversas culturas pré-históricas
as facas são essencialmente iguais, são estruturadas
pelas mesmas relações, é a apreensão
da globalidade, é o resultado da aceitação
do impasse, da aceitação da impotência.
Aceitar a impotência
é o caminho para aceitar a realidade, é a aceitação
do limite. Esta aceitação, cria uma nova dinâmica:
o limite é integrado, não é mais um obstáculo
diante de mim, passa a ser um referencial possibilitador, um
contexto estruturante de novas relações. É
mudança, continuidade dinâmica que impede o posicionamento
adaptador.
Posicionar-se é estabelecer
pontos, ilhas de sobrevivência. O homem pré-histórico
continuaria sobrevivendo, bastaria lascar a caça com os
dentes, mas esta adaptação ao impasse, subdimensionaria
sua possibilidade relacional, embora nunca o deixasse imobilizado,
impotente diante de como abrir a caça. A vivência
da impotência cria a imobilidade, mas é exatamente
esta imobilidade, esta antítese à mobilidade reinante,
que permite a superação das contradições,
a superação do impasse. Bem, neste momento podemos
dizer que a melhor coisa para um ser humano, enquanto dinâmica
e desenvolvimento relacional, é a impotência. Ela
é que causa a desadaptação propiciadora
de mudança. Não mudar é se estabilizar,
coisa impossível no cosmos, no mundo.
Se é tão bom
a impotência, por que é tão ruim vivenciá-la?
Só a vivenciamos como ruim quando não aceitamos
estar impotentes. Aceitar a impotência é aceitar
a realidade. Realidade é o que percebemos embora nem sempre
percebamos o que existe. Os conceitos de realidade, existência
e limite são muito próximos. A filosofia, em certo
sentido a psicologia também, muito debateram esta questão.
Pensemos que diante do real, do existente, do limite está
sempre um indivíduo, o que transforma a questão
em uma dinâmica relacional.
O ser no mundo percebe o que
está diante dele, é real, existe, podendo ou não
ser vivenciado como limite. O dado imediato, por exemplo, é
a percepção da mesa, é real, existe. Percebendo
esta percepção podemos dizer que ela limita um
espaço, ou que é um limite para meus movimentos,
etc. Em nosso dia-a-dia não percebemos a lei da gravidade,
tão pouco vivenciamos o limite de não poder voar,
embora eles sejam reais e existentes. Esta lei e esta impossibilidade
não são pregnantes na sua vivência de realidade
e existência. Santos Dumont dedicou-se a isto e projetou
o avião, Ícaro colou asas em suas espáduas
e ficou no chão, impotente diante da cera derretida.
Ciências, religiões,
filosofias perceberam os limites humanos e tentaram neutralizá-los,
transcendê-los, questioná-los. A história
da humanidade, sua trajetória de pensamento, de perguntas
e respostas tem sido o tempo todo motivada pela constatação
da impotência, ora aceita, ora negada. Quando as religiões
criaram os mandamentos, quando a Igreja estabeleceu os sete pecados
capitais, criaram antídotos para a não aceitação
da impotência. Não matarás, um dos mandamentos,
diz: aceita sua frustração, as injustiças
que sofres, etc. Criticar e punir, a ira, a gula, a cobiça,
a luxuria, a inveja, a preguiça e o orgulho era uma maneira
de coibir excessos sonegadores da realidade, da existência.
Era uma maneira de estabelecer limites, de criar condições
para que a impotência fosse aceita a fim de mostrar o poder
absoluto da divindade. Aceitava-se a impotência terrena
e vivia-se na insegurança e dúvida do merecimento
pós-morte.
Enfim, é sempre uma
perspectiva maior, um não posicionamento em necessidades
circunstanciais que nos possibilita perceber e aceitar nossas
impossibilidades.
A aceitação
de impossibilidades ou vivência da impotência é
o que nos humaniza. Aceitação é integração
com o que ocorre. Não há hiatos, não há
cogitação, não há avaliação.
Aceita-se e pronto. Esta fusão é quase que impossível,
existe sempre o saber que se sabe, o perceber que se percebe,
o ver que se viu. Essas reflexões, esses ecos impedem
a integração, o fusionamento. Foi a percepção
disso que criou nos yogues a idéia de pausa, de parar
a mente para ouvir o silêncio, ver o não visto.
Esta mesma idéia é que permite as postulações
da física quântica. Se vivemos integrados, aceitamos
o que vivenciamos, aceitamos o outro, aceitamos o mundo. Quando
vivemos articulados, adaptados, encaixados, o mundo é
um quebra-cabeças. Temos que acertar, temos que decifrar
enígmas. Dividimos as coisas em certas e erradas, legais
e ilegais, morais e imorais, bem e mal etc. Estes dualismos,
geralmente maniqueistas, estabelecem linhas de fuga necessárias
à sua compreensão. Surgem as ideologias, as regras,
os preconceitos. Quando aceitamos é através de
outro critério, criando mais desintegração.
Nestes contextos, vivenciar a impotência é sinônimo
de falhar, não conseguir. Não há aceitação
da impotência, aceita-se o impasse e a impossibilidade
por alguma outra variável interveniente, alheia ao dado.
Quando a impotência é vivenciada como incapacidade,
isto se transforma em justificativa para manutenção
de problemas, para desumanização. Algumas situações
desumanas são justificadas pela aceitação
de regras, normas e padrões: "era o meu trabalho,
aceitei as ordens, tinha que torturar pessoas". Aceitação
recortada, desintegrada em X e integrada em Y, é sinônimo
de desumanização, é justificativa para o
medo, a ganância, a inveja, a carência, o desespero.
Só existe aceitação quando ela é
vivenciada no presente. Aceitação é a integração
com o que ocorre, isto é responsável por imobilidade.
O fato de aceitar a dificuldade do outro e porisso ajudá-lo,
pode não ser resultante de aceitação, mas
sim expressão de regras, dogmas e princípios obedecidos.
Esta obediência a um princípio (situação
X), quando aplicada ao que ocorre, explica a consciência
aplacada do torturador, por exemplo.
A condição humana
passa, oscila sempre no fio da impotência. Vale lembrar
os desmoronamentos das ilusões de Sidarta, as vivências
de impotência que contribuíram para que ele se transformasse
em Buddha (Buddhi conhecimento em sânscrito). O príncipe
Sidarta vivia na realidade do palácio, seu mundo era aquele,
seu limite percebido era uma porta. Um dia, ele resolve abrir
a porta da cidade/palácio e sai. Vê um enterro e
pessoas chorando, avista um velho pedindo esmola, ouve o choro
dos doentes. Quanto sofrimento, ele resume. Para que viver? Todos
vamos morrer, doença sempre existirão e riquezas
poucos têm, mesmo isso não impede a morte e a doença.
Imobilizado, impotente, siderado pelo percebido, Buddha transcende
os impasses e começa a ensinar esta transcendência
aos limites, ao samsara (roda da vida) como maneira de não
sofrer pelas ilusões estabelecidas. Novamente é
a aceitação da impotência criando novas dimensões
para o humano e a humanidade.
Depois de Buddha foram necessários
mais alguns séculos para que a grande questão da
impotência fosse recolocada dentro de seus estruturantes,
de sua imanência. São as questões psicológicas.
É a impotência diante do outro, é a impotência
diante de si.
O outro é meu limite,
tanto quanto meu estruturante relacional. O outro é o
diferente de mim, pelo fato de não ser eu própria.
A constatação de diferença, pressupõe
uma semelhança. Saber o que é parte neste todo,
se constitui em enigma. Queremos o diferente por desejarmos o
igual. São as afinidades eletivas, como dizia Goethe.
Buscamos o igual por desejarmos o diferente. Estas avaliações
impedem integrações. Precisávamos não
perceber o outro, ou não nos percebermos. Impotentes,
imobilizados diante do outro, nos perceberíamos e ao outro
através deste encontro gerador de impotência, de
impasse. Esta antítese, a impotência, passaria a
ser o contexto através do qual eu e o outro existiríamos.
Surgiria a disponibilidade propiciadora de integração
com o que ocorre. É aceitação do outro como
limite, não importando mais diferença ou semelhança,
o outro está aí comigo. Este limite esvaziador
de significados é o estruturante relacional.
Em 1988, em meu livro "Relacionamento
Trajetória do Humano", pág.34, eu escrevia:
"o que importa saber,
descrever, é a atitude estruturada diante do limite: a
de impotência ou de onipotência seja em termos de
culpa, omissão (medo) ou metas, expectativas, ansiedades.
Estruturando uma atitude de impotência, não negando
o que percebemos, (é até fácil), ficamos
livres das injunções, cobranças, exigências,
enfim dos limites e apoios familiares, sociais, circunstanciais.
Estruturando atitude de onipotência, através do
faz-de-conta, da imagem, das metas, ficamos comprometidos, acrescentamos
o limite, o apoio que nos desindividualiza, à nossa vida,
dividimo-nos, sentimo-nos culpados, medrosos, inseguros; buscamos
um outro que nos aceite, que nos dê o que não tivemos,
o que precisávamos. Surgem assim os grandes dramas e sonhos
do relacionamento humano, do estar-no-mundo-com-o-outro e consigo
mesmo, as frustrações profissionais, as realizações
profissionais, as trocas de experiência de vida, a angústia,
as fobias, os sintomas comprometedores e reveladores do aprisionamento".
A não aceitação
da impotência frente ao outro cria esperanças, desejos,
sonhos e temores. A não aceitação da impotência
diante de si mesmo nada mais é que o processo de não
aceitação, caracterizado por medo, revolta, frustrações,
culpas e vivências de ser injustiçado. Não
aceitar a impotência, a incapacidade de remover problemas
que nos afligem, é se sentir vítima, é se
sentir abandonado pelos próximos, os relativos-familiares,
e pelo absoluto, Deus.
Estar sozinho, é a
grande impotência humana que, quando aceita, possibilita
grandes mudanças, inúmeros relacionamentos e que,
quando não aceita, cria os desamparados, as vítmas,
os revoltados.
A grande impotência
humana é intrínseca a sua própria condição:
estar em um mundo submetido à lei da gravidade, conviver,
adaptar-se aos radicais livres e não ter asas ou ter uma
espinha dorsal. A condição orgânica, neste
mundo físico, nos obriga a não esquecer, a aceitar
nossos limites e quando não aceitamos, nos preparamos
para as vivências de revolta, medo e cólera, por
exemplo. Aceitar a nossa limitação é o que
nos dinamiza e amplia nossos referenciais por integração
dos limites, quebra dos obstáculos. Quando o médico
integrou o limite de não conseguir saber o que havia no
organismo, dentro do corpo, surgiram os estudos anatômicos,
mais tarde o raio X, a ultrasonografia, a tomografia etc.
Adaptados às insuficiências,
vivênciamos a impotência como incapacidade, ficamos
oprimidos pelos limites, sem integrá-los. A hipocondria,
o medo da doença é um exemplo do anteriormente
afirmado. Nosso corpo, em certo sentido, é o outro, o
estranho. Não sabemos o que está ocorrendo com
nosso fígado, coração, próstata e
seios. Desenvolvimentos anômalos podem estar acontecendo,
sem indícios, sem sintomas. Viver querendo controlar estas
possibilidades, estabelece a preocupação como maneira
de acessar o desconhecido. Aceitar a impotência dentro
deste universo estranho que é nosso corpo, permite que
ele seja integrado e revelado. Conhecendo nossos limites, questionando
nossos conflitos, "não tampando o sol com a peneira",
abrindo-mão do fazer de conta alienante, percebendo que
se o problema do outro me atinge, o problema é meu, não
esquecendo que o relacionamento depende sempre necessariamente
de duas partes, neutralizamos o atrito, o estresse do estar-no-mundo
cheio de necessidades e possibilidades. Resolver contradições
desaliena, individualiza, humaniza, impede a fragmentação
psicológica.
A doença é um
grande limite, é uma situação desencadeadora
de impotência. Aceitar a doença nos torna disponíveis
para cuidar dela, minorá-la, erradicá-la, neutralizar
suas multiplicações limitadoras. A falta de dinheiro,
a pobreza também é limitadora, gera impotência
que quando aceita, possibilita mudanças vivenciais.
Às vezes somos impotentes
diante dos fatos, circunstâncias e realidades, mas sempre
temos condições, possibilidades para lidar com
elas. Esta é a grande lição que aprendemos.
As impossibilidades sempre são possibilidades, o importante
é não se pontualizar, ilhar no não posso,
não consigo. Não posso, não consigo, mas
posso não poder, posso não conseguir. Criando esta
possibilidade, aceitando a impotência, o movimento retorna,
a imobilidade acaba.
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