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O Prazer
Vera Felicidade de Almeida Campos
Publicado no Boletim do SBEM, abril/junho
2000, pag.50-51
Prazer é o êxtase, prazer é
o bem-estar. Acabamos de criar uma escala para o prazer, ao tentar
definí-lo.
Sobrevivendo, tendo necesssidades satisfeitas,
temos prazer com pequenas coisas, com grandes coisas. É
prazeiroso ver um céu azul, também o é um
vinho, uma comida, uma água gelada, uma conversa animada,
uma relação sexual, tanto quanto a sensação
do dever cumprido, das coisas organizadas. Tudo isso é
prazer, causa prazer. Quando há realização
de desejos, quando há encaixe, harmonia circunstancial,
há prazer. As vivências do prazer, são quase
banais, são muito frequentes, é o bem-estar.
Os aspectos circunstanciais, situacionais
são fundamentais para a vivência do prazer como
bem-estar. Existe um comando de necessidades e desejos responsáveis
pela criação de limites a atingir ou remover. Posto
isto, somos remetidos à instabilidade do prazer. Estruturado
por necessidades contingentes, construído pelo desejo,
pela falta, pela busca de aplacar tensões, rapidamente
o prazer é transformado em alívio, ausência
de dor, ausência de tensão. Nosso conhecido e banal
prazer, por sua instabilidade, se transforma em um complexo paradoxo.
Filósofos como Platão e Kierkegaard
escreveram sobre o vazio do prazer. Drogados e viciados em heroina,
cocaina, ópio também o fizeram. William Burroughs,
famoso escritor beat em seu livro Junky, escreve
sobre sua experiência com a droga: "A droga é
uma equação celular que ensina a quem a usa fatos
de um valor geral. Aprendi muito usando droga. Vi a vida medida
nas gotas de uma solução de morfina. Vivi a privação
atroz da desmama e o prazer do alívio quando as células
sedentas de droga bebiam na seringa. Todo prazer não é
talvez senão alívio. Aprendi o estoicismo celular
que a droga ensina a quem a usa... Aprendi a equação
da droga. A droga não é como o álcool ou
a erva, um meio de gozar a vida, a droga não é
um prazer. É um modo de vida."
Platão em sua filosofia mostra como
o prazer depende de necessidades e de desejos. Esta filiação
outorga dependências corporais inadmissíveis para
o intelecto, para o homem de bem, para o sábio. No mundo
das idéias, no ideal platônico, nada que provenha
do chão, do corpo, das sensações é
bom, belo ou sábio. Kierkegaard diz que há duas
maneiras de viver a vida: uma ética e outra estética.
Por ética ele entendia a vida governada pela liberdade,
o que só seria conseguido através da fé,
da transcendência, do encontro com o absoluto. Estética
para ele era tudo que "vinha de fora", do exterior.
Esta circunstancialização impedia a liberdade,
fazendo com que o homem fosse controlado pelas coisas que lhe
causavam bem-estar, desejos e prazer.
A idéia de Kierkegaard - ético
e estético - pode agora ser traduzida por objetividade
e subjetividade. Neste contexto, conseguiu-se criar dicotomias
e valorações acerca do prazer. Pode-se falar de
prazer negativo e de prazer positivo. Prazer negativo é
todo aquele gerado por situações alheias ao ser,
vindas de fora, contingentes, aderentes, consequentemente alienantes.
O prazer, neste contexto, é sinônimo de hábito,
de vício, de repetição, de fixação,
de perda da liberdade, de alívio desde que totalmente
endereçado para aplacar necessidades e desejos. Prazeres
positivos seriam os subjetivos, os da inteligência, os
do espírito.
Esses dualismos valorativos estão presentes
também na visão de Sto. Agostinho, quando em uma
tentativa de trazer para a Idade Média os ideais platônicos,
diz que só existe prazer na virtude, separando assim os
prazeres pecaminosos (da carne) dos virtuosos (do espírito).
Deus é o que se encontra depois de enveredar pelo caminho
da virtude. Auto-controle, sacrifício são os luzeiros
orientadores deste caminho. A humanidade está crivada:
pecadores e virtuosos. Evidências e dogmas.
Mais tarde, a psicologia veio em socorro deste
homem cravejado. Prazer é prazer, é bom. Entretanto
o bom não basta, será que é sinônimo
do que não é ruim? Será que é uma
repetição habitual de mecanismos despersonalizadores
ou é a realização legítima de desejos
e encontros?
Socorro questionador pois que ao admitir o
prazer buscava integrar a personalidade. Com a psicologia aparece
uma nova divisão: prazeres legítimos e prazeres
ilegítimos. O prazer da droga, do vício são
ilegítmos, negativos, existem, mas devem ser abolidos,
transformados.
Da banalidade à complexidade surge
também a legitimidade do prazer. Descobre-se que o prazer
poderia provir de doenças, começou-se a estudar
sua patologia.
Fenomenologicamente, pensamos que prazer é
o que resulta do encontro, é a faísca, luz e calor.
Sempre que isso ocorre, há prazer, é bom, é
simples, é legítimo. O difícil é
exatamente existir o encontro. Via de regra, artefatos e instrumentos,
aderências e construções é que levam
ao encontro, transformando-o em um encaixe de peças de
quebra-cabeça.
Disponibilidade e aceitação
estruturam autonomia, possibilidade de relacionamento. É
aí, neste horizonte de possibilidades que nasce o prazer
criador de infinito, atemporal, mágico e eterno, merecedor
de mitos. Não é por acaso que sempre o prazer vem
acompanhado do amor, de Eros. Só no contexto de disponibilidade
e autonomia é que se evita a repetição,
o hábito e a escravização muitas vezes confundidos
com prazer.
São inúteis os anseios modernos
de resolver dicotomias e paradoxos relacionais e existenciais
através de sobrevivências unificadoras. Criou-se
o paradigma neurocerebral para solucionar e explicar o comportamento
humano, que pelo seu reducionismo elementarista se torna parcializador.
Todos sabem que remédio é droga, sabem também
que são as drogas boas e frequentemente dizem que elas
servem para o uso, não para o abuso. "A neurofarmacologia
nos convida a pensar que há uma homogeneidade qualitativa
entre os compostos químicos que absorvemos e aqueles que
agem nas células cerebrais para regular nossas alegrias
e nossos desgostos. Do ponto de vista de um médico, há
apenas moléculas semelhantes, com indicações
mais ou menos visadas. O hábito torna-se um efeito colateral
entre outros." [Giulia Sissa, O prazer e o mal - filosofia
da droga, pag. 171 e 172]
Somos modernos. Temos indústria de
lazer, casas de prazer, pílulas de prazer. Prazer atualmente
é quase sinônimo de paraíso, logo se transformando
em inferno. Luta-se pelo prazer, foge-se do prazer.
O prazer é o caos, é alienante
se visto como mediação. É um organizador
quando integrado. Voltemos ao mestre Kierkegaard: no estético,
nas aderências, no lançar mão de o prazer
não existe, quando integramos todos os limites, transcendendo
contingências e aderências é que estamos livres
para este absoluto realizador: o prazer. O prazer de ser, ser
no mundo com os outros. Prazer é liberdade, é não
estar oprimido nem submetido a nenhuma demanda aderente, mecanizada
e repetidora. É a liberdade do encontro, como maneira
de integrar as dicotomias ética e estética ou o
dentro e o fora ou ainda necessidades e possibilidades, sobrevivência
e existência, É também uma maneira de não
pensar como Oscar Wilde: "Nesse mundo só existem
duas tragédias: uma é não se obter o que
se quer e a outra é obter".
A vida sem liberdade é tediosa, o prazer
é a quebra desse tédio, logo a ele remetido, é
a instabilidade do prazer.
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