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 Sobre a morte - realidade e cogitação

Vera Felicidade de Almeida Campos

Publicado no Boletim do SBEM, janeiro/março 2000, pag.71-72

Final de vida, processo inerente à vida, limite da condição humana, transformação, passagem para a vida eterna, perda, luto, tudo isto é evocado quando se fala, quando se pensa na morte. Tentemos outro significado menos estigmático, menos clichê para pensar a morte.

A morte é o resíduo. Todo processo se caracteriza por uma dinâmica. Toda dinâmica implica em movimento, passagem, mudança temporal e espacial. A dialética se impõe - tese, antítese e síntese - quando as relações são enfocadas: movimento, força de atrito e inércia. Neste contexto, podemos dizer que ao viver estruturamos posicionamentos, resíduos orgânicos, forças de atrito responsáveis por desgaste. É a dinamização orgânica; mais acelerada menos acelerada em função de diversos fatores. Neste processo, o saber médico, o saber psicológico são fundamentais para a diminuição dos desgastes. Comer adequadamente prolonga a vida; exercícios melhoram a vitalidade; viver satisfeito neutraliza o estresse demolidor da tranquilidade e harmonia do estar no mundo com os outros. Diminui, mas não evita o desgaste estruturante dos resíduos anti-vida, estruturantes da morte.

Tudo que sobe, desce. A lei da gravidade existe. Tudo que vive, morre. Todo relacionamento gera posicionamentos, responsáveis por novos relacionamentos, geradores de posicionamentos, infinitamente. A questão é ampliar o movimento, a dinâmica relacional, a fim de esparsar a possibilidade dos posicionamentos. Resíduos orgânicos deste processo são responsáveis pela morte.

E quando se morre aos vinte anos? Aos cinco anos de idade? Enfim, quando não se morre de doença, mas por acaso, por acidente? Podemos também chamar de resíduo? Sim, o significado é abrangente, embora seja necessário enfocar outros níveis de desenvolvimento da dinâmica processual, da dinâmica residual.

Imaginemos duas curvas

 

Os pontos de encontro são também os de atrito. O processo x encontra o processo y. O indivíduo, andando na rua, saudável e psicologicamente satisfeito, recebe uma bala perdida ou é assaltado e esfaqueado. Nele, no indivíduo, o processo era dinâmico, não deixou de existir por resíduos gerados por ele, mas sim por variáveis residuais, geradas em outros contextos, outros sistemas.

Violência, acidentes, acasos que se tornam acontecimentos frequentes em uma sociedade educada e mantida pelos posicionamentos, pelo poder. São variáveis residuais responsáveis por extinção de vidas. A brutal diferença social significada pela acumulação de riquezas cria ilhas em um oceano de fome, carência de educação, falta de acesso aos processos dinamizadores, humanizadores. Sociedades administradoras de resíduos, de deserdados, de fantasmas significados por números, são sociedades mortas, residuais. Nelas os posicionamentos são mantidos, as dinâmicas são perdidas. Com isto, com esta fragmentação, é impossível surgir antíteses capazes de unificar, de humanizar. Constroem-se personagens. Às ilhas opulentas opõem-se favelas. A resultante desta competição/contraste é a violência. As favelas estão armadas. Atira-se no que se vê e no que não se vê. Pessoas morrem: bala perdida, "queima de arquivo", troca de chefias-lutas pelo poder. É a morte, é o resíduo de um sistema responsável por emparedamentos, por isolamento.

Edifícios e aviões que caem criam também resíduos. Não é o acaso, é o resíduo dos processos sociais originando acúmulos residuais (mortes). Quase uma guerra, quase uma selva, que já se convencionou chamar doença social.

Outro aspecto que vale considerar, quando pensamos em morte, mais ainda quando a substituimos por um termo mais abrangente - resíduo - é o da morte datada. Doentes terminais, casos de AIDS, de câncer, algumas doenças neurológicas, raras mutações genéticas, por exemplo. Aceitar o limite - a doença - neutraliza a pregnância da expectativa final, data para morrer e revitaliza o processo, dinamizando a possibilidade de relacionamento. Datados estamos todos, a questão é ampliar o prazo de validade.

Quando alguém se mata, quando alguém se transforma em um resíduo, é por restar apenas um esboço de movimento que o endereça para o gatilho, para a janela, para o copo ou a pílula; se houvesse um empurrão, a dinâmica recuperaria o relacionamento neutralizador dos resíduos.

Assim é a vida, assim é a morte. Dois lados de uma mesma moeda. Relacionamento gerador de posicionamento, dinâmica criadora de resíduos.

O próprio corpo recebe um nome diferente quando morto: é o cadáver, isto é, aquele onde não mais existe vida, movimento.

As questões do luto, da perda, do medo e do desespero são atenuadas quando pensamos a morte como resíduo. A lógica do viver supõe a do morrer, o importante é desenhar esse processo bonito, colorido, e não ficar esmagado, não identificado pelos borrões ou como dizia Hannah Arendt: "Os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer mas para recomeçar". Ou, os homens não se esgotam nem se definem pelos resíduos criados, nascem para participar e recriar.


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