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Terra e Ouro são Iguais - Percepção em Psicoterapia Gestaltista

Vera Felicidade de Almeida Campos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro -1993

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Extrato

Capítulo II - A Polaridade Resulta da Unidade

A polaridade resulta da unidade, o duplo é uma expressão do uno; a divisão expressa a unidade [1]. Dois resulta de um, pois a quantidade, duas coisas, passa a ser dois um. Isto explica a criação das dicotomias: tomar as resultantes como unidades que se opõem. Sujeito e objeto são pólos de um eixo.

O pensamento filosófico/psicológico enfocou os pólos, os posicionamentos, quebrando ou desprezando o eixo, a relação configurativa de sujeito e objeto.

A filosofia, na busca de explicar o conhecimento, imaginou um sujeito que conhecia e objetos que eram conhecidos. Isto posto e aceito, surgiu o grande debate sobre quem iniciava o processo. Era o sujeito que pela idéia criava o mundo ou o mundo que era captado pelo sujeito? Surgiram assim as diversas filosofias idealistas e materialistas.

Resíduos posicionantes disso são os conceitos de idéia, alma, espírito, consciência, mente, sensações, matéria, como explicativos desencadeantes dos processos cognitivos.

Ao longo da história tais posicionamentos foram perpetuados em diversas áreas. Para a psicologia sobraram os conceitos de consciência (cogito ergo sum - cogito cartesiano) e o de mente como receptáculo de sensações.

Já não importava saber se o sujeito criava o objeto e o conhecia ou se o objeto impunha-se ao conhecimento, ao sujeito. Era necessário saber como a mente trabalhava e como as sensações se organizavam. Enfim, como a consciência surgia.

Em meio a esses debates, novo desvio - surge Freud, o Avatar às avessas, trazendo luzes para o mundo subterrâneo. Ele dizia: não importa a consciência, mas sim o inconsciente. Temos que entendê-lo, estudá-lo. Para a psicologia restaram os padrões filosóficos, as idéias platônicas, as categorias lógicas de Aristóteles, as mônadas de Leibniz, o intelecto como tábula rasa de Locke.

No início do século, os behavioristas acharam que tudo isso era muito subjetivo, nada científico. Que só se podia estudar o que fosse passível de objetivação, ou seja, de mensuração. Os psicanalistas continuaram na via régia do inconsciente.

Os gestaltistas, beneficiados por uma formação em física, sabiam que tinham de estudar o processo da percepção. Esse momento foi uma mudança importante na maneira de enfocar o comportamento humano, embora se continuasse carregando a idéia de sujeito e objeto: sujeito como o qu e eu sou e objeto como o que não sou eu. Por extensão, subjetivo, o que está dentro de mim; objetivo, o que está fora de mim.

Consequentemente o conhecimento do sujeito passou a ser o conhecimento da psiquê, do psíquico. O significado dado a sujeito e objeto pela filosofia e corroborado pela psicologia é totalmente anômalo, se levarmos em consideração o sentido e significado que eles têm nas línguas, na sintaxe. Vejamos um rápido exemplo: psicologicamente falando, jamais uma mesa, uma cadeira, um caderno são sujeitos; porque não pensam, não sentem, não falam, não têm vida interior. Não são seres vivos. Entretanto podemos dizer que na frase "o caderno está na mesa" o sujeito é o caderno, e que na frase "a mesa sustenta o caderno", o sujeito é a mesa. É interessante salientar o aspecto fenomenológico da expressão linguística como descrição de fenômeno expressando posições. É importante também não esquecer que Husserl, o fundador da fenomenologia, lutou anos a fio para desfazer esses posicionamentos, embora os percebesse de outro modo, expresso em suas explicações sobre Noema e Noesis [2].

É muito difícil para o psicólogo dualista, categorial, tipológico, entender o comportamento humano sem recorrer às idéias de interior e exterior. Ainda hoje Jung é seguido e tido como grande pensador: ele classificava o humano em tipos introvertidos e extrovertidos. Achava tanto quanto Freud, que a percepção é uma projeção dos conteúdos internos do sujeito. A própria percepção, nessas conceituações, é um objeto. Não conseguindo globalização, os pensadores das ciências do séculos XIX e meados do século XX criaram muitos obstáculos, caminhos e labirintos, enfim, não percebiam que ser sujeito ou ser objeto é uma das possibilidades humanas determinadas pelo contextuamento relacional.

Psicologicamente, a unidade - essência humana - configura os pólos de sujeito e objeto, ou seja, ser sujeito ou objeto é uma resultante de ser humano.

O que cria o sujeito? O que cria o objeto? Enfim, o que permite a polarização? O relacionamento com o outro, com o mundo e consigo mesmo. É o atrito, polarização dinâmica, que configura o sujeito, que configura o objeto.

É através da percepção que se estruturam o sujeito e o objeto. Ao fazermos esta afirmação estamos dizendo que o ser humano não é sujeito nem objeto, ele é ser humano que a depender da própria percepção se configura em sujeito ou objeto, ocorrendo o mesmo em relação à percepção do outro - o outro, ao me perceber, configura a mim como sujeito ou como objeto. Não há o mundo do sujeito (classicamente configurado como subjetivo pela filosofia e psicologia) e o do objeto, da mundaneidade. Há um ser humano que percebe, e isso é a dinâmica relacional do estar no mundo. As conceituações e denominações de sujeito e objeto criam estagnações, divisões na maneira de enfocar o homem. Essa linearidade causalista é responsável por divisões arbitrárias, é como se imaginássemos um peixe nadando fora d'água, um homem podado, aprisionado a formas explicativas.

Em psicoterapia, é fundamental abolir as categorias arbitrárias e didáticas de subjetivo e objetivo pois que elas camuflam a essência humana. O máximo que podemos admitir é sujeito enquanto sinônimo de desencadeante de ação e movimento, e objeto como alvo dessa ação, desse movimento. Mas, ao admitirmos isto, estamos eivados dos a priori filosóficos e psicológicos, estamos pensando em um ser humano agente. Uma mesa nunca é sujeito, sempre é o objeto, ficando assim explícita a contradição típica do pensamento filosófico e psicológico.

Para esclarecer, busquemos a etimologia da palavra sujeito e da palavra objeto.

Sujeito, do latim subjectu, "posto debaixo". E objeto do latim objectu, "pôr, lançar diante, expor". Dá para perceber as conotações que a palavra sofreu até significar o interno, o subjetivo, o que está guardado, escondido, posto debaixo das aparências; o objeto fica como o visível, o passível de ser conhecido. O sujeito enquanto subjetividade não é passível de ser conhecido. Era o drama da introspecção psicológica, é o drama da psicanálise com o inconsciente, é o desespero behaviorista que tentou cortar quaisquer categorias subjetivas, achando que só existia o que se mostrava e se objetivava. É o que permite à psicoterapia gestaltista dizer que o indivíduo esta auto-referenciado (fechado em si mesmo), tomando-se como padrão e medida de tudo, ou dizer que ele está no mundo com o outro.

Em uma perspectiva mais abrangente de visualização do ser humano se torna necessário abolir tais obstáculos, tais posicionamentos de sujeito e objeto, e pensar em indivíduo, ser humano, unidade. Vemos que essas polaridades sujeito e objeto são configurações/posicionamentos do humano e seria unilateralizante perceber o humano através desses contextos posicionantes.

Tentemos explicar o ser humano explicando como ele percebe e o que estrutura nessa percepção, a fim de entendermos o que é sujeito e o que é objeto. O primeiro passo é colocarmos entre parênteses o "reino do sujeito, o reino do objeto", pois essa demarcação, além de criar abismos para o ser no mundo, é um eterno impasse nos relacionamentos afetivos, sociais, terapêuticos. A mediação para a dualidade sujeito e objeto só pode ser feita através da percepção, da globalização de seu processo. Tentemos.

Percebo o que está diante de mim - é como se dissesse: eu sujeito, sujeito a captar, descrever, observar o que está lançado, exposto, o objeto. Nesse sentido, a primeira coisa que percebo é o que está à minha volta: é o meu corpo, é o outro. Perceptivamente destaco, separo e/ou integro, adiciono. O desenvolvimento do ser humano é um processo demonstrativo de estruturação dos posicionamentos, é a clássica formação do ego, é o clássico processo de aprendizagem. Estruturam-se sujeito e objeto similarmente ao modelo da barra imantada que, por atrito, cria pólos positivos e negativos indefinidamente, mesmo ao serem cortados. O grande problema é que toda a filosofia, toda a psicologia, enfim, todo o pensamento científico começaram a entender e estudar o humano partindo dessas configurações posicionadas de sujeito e de objeto que escamoteavam a essência humana, enchendo a abordagem psicológica dessas divisões até o clássico corpo e mente. Um dualismo tão pregnante que Rudolf Arnheim (seguidor da Gestalt) diz: "Se identificarmos o ser humano com a mente, o corpo não será apenas o instrumento primordial do homem, mas também o seu vizinho mais próximo no mundo que o cerca. A linha divisória pode ser traçada em ambas direções " [3].

Ora, se o que está dentro está fora (princípio isomórfico, Koehler), corpo e mente não existem como realidades distintas. mente é corpo, é cérebro, são neurônios, nervos, sinapses, engramas etc. O homem é um organismo no mundo, uma possibilidade de relacionamento. Ao começar esse processo de relação, de percepção, ele estrutura níveis internos de sujeito - escondidos, não explicitados, não expostos - e níveis externos de objeto - explicitados ou expostos. Em outras palavras, ele se percebe cercado de situações, coisas e pessoas que estão junto dele, com ele ou separadas dele, com ele ou contra ele: ele percebe semelhanças e dessemelhanças. Surgem os significados, as valências, os valores que vão estruturando, configurando os níveis de sujeito e de objeto.

É interessante lembrar que dos primeiros meses de vida até os 2, 3 anos, a criança percebe o pai, a mãe, a mesa, a TV e a cadeira como seres animados. Tudo tem vida. É sabido que a criança fica satisfeita quando a mãe bate na mesa em que ela, a criança, esbarrou. O processo natural, imanente, é o do objeto ser uma continuidade do sujeito; os objetos são animados, personificados. É o clássico pensamento antropomórfico ou o pensamento animista atribuído aos selvagens. Ao crescermos, começamos a apreender os valores, funções e significados das coisas, passando a perceber através de categorias; é como se o mundo fosse uma estrada cheia de sinalizações.

Pela percepção apreendemos o que está diante de nós, agrupando por Semelhança, Proximidade, Continuidade, Boa Forma, Melhor Direção, Closura (Fechamento). Em todo processo perceptivo sempre há pregnâncias. Vemos isso na percepção do corpo - mesmo que distorcendo, achando que temos um corpo, mesmo não sentindo nosso corpo, não chegamos a perceber que temos um corpo e que o corpo tem um pé: percebemos o pé como sendo nosso corpo ou a ele pertencendo (lei da continuidade). A percepção do "pertencer a" é também pregnante na esfera social: sabemos quais são os membros de nossa família, de nossa comunidade, qual é nossa pátria etc; as quebras de continuidade começam quando se quebra a unidade e isso se dá através dos valores. O significado atribuído às vivências cria partes, pedaços, estrutura as adaptações e as desadaptações, já não se desliza, já não se continuam movimentos, luta-se por posicionamentos. Estruturam-se assim o nível de sobrevivência e o nível de contemplação.

Ao colapsar, emperrar, fracassar na luta pela sobrevivência, uma das tentativas para continuar sobrevivendo é buscar conserto através de uma psicoterapia. É um dos remédios indicados pelo sistema social [4]. O sobrevivente ameaçado, fracassado, ao chegar nas diversas psicoterapias, é tratado como ser humano que está em dificuldades, precisando de ajuda, de apoio. Espera ser reorientado, absolvido, conscientizado, direcionado em seus mapas, enfim, repolarizado em seus desejos para que tenha uma nova visão de si mesmo. Instala-se, assim, em definitivo o posicionamento do ser, pois que ele é tratado como objeto - o exposto, o sintoma -que tem que ser terapeutizado. É mais um ser capaz adaptado e satisfeito consigo mesmo que surge, na melhor das hipóteses. Ser capaz, estar adaptado e satisfeito pressupõe uma demarcação, uma cerca no vazio ontológico. A necessidade de realização já exila a possibilidade de existência, transformando o indivíduo em um sovbrevivente bem-sucedido.

Para a psicoterapia gestaltista, o problema, a neurose, o processo, enfim, a dificuldade de existir decorrem de uma unilateralidade preenchida por necessidades. O psicoterapeuta gestaltista, após a globalização da não aceitação e do questionamento dos problemas unilateralizantes, busca respostas à percepção do existir, sem posicionamentos, sem valores, sem metas, tentando fazer com que o indivíduo se torne um ser disponível independente de funções e resultados.

Como ser disponível independente de funções e resultados? Este é o grande quebra-cabeça da psicoterapia e do estar-no-mundo-com os outros.

Usando uma metáfora do Mahabharata [5], é como se o fundamental na psicoterapia e na vida fosse conseguir ver um monte de ouro e um monte de terra como iguais: dois montes [6]. Dedicar-se à essência e não aos valores. A essência, no caso dos montes, é o que ocupa o espaço, os valores são configurados na busca de quanto vale o ocupante. A percepção de essências substituida pela de valores atributivos leva o homem a percepções distorcidas, arbitrárias, fazendo com que ele se pendure nos símbolos, na importância e no significado do percebido. Daí a luta pela sobrevivência, a competição, a busca pela satisfação de desejos, a alienação, a perda da dedicação, da simplicidade da existência, enfim, do nível existencial, contemplativo, substituido pelo de sobrevivência.

Quando falamos na simplicidade do existir, estamos falando na recuperação de humanidade: o fato de o homem perceber que é um corpo, um organismo, um pensamento, uma percepção, um ser no mundo independente do que significa, do que tem, do que faz. É o deslumbramento pelo existir em lugar da realização da existência. É vital nos maravilharmos por existir, pensar, perceber, dormir, amar. É fundamental contemplar todo esse processo do existir ao invés de se deter na caça-coleta, luta-fuga da sobrevivência. Em nossa sociedade e em nossa cultura, não há como mudar o estado de alienação e de sobrevivência massificada, mas cada ser humano que se deprime, se questiona, sofre, se naga e se angustia tem condição de mudar ao perceber ter vivido atrás de metas, tentando galgar posições, afirmar-se socialmente. É integrativo perceber as possibilidades de ser sujeito e de ser objeto sem nelas se esgotar, entendendo sempre seu comportamento como resultante: uma explicitação da essência humana.

O posicionamento sobrevivente enquanto eu sujeito é a onipotência. Sou capaz de resolver tudo, me questiono, aceito que não me aceito. Compreendo os processos, faço frente às circunstâncias. Sou terapeuta: separo o joio do trigo. Sou o guru espiritual, estou com Deus, com os mestres, com os orixás, entendo dos seres humanos, sei que a vida é efêmera.

Os líderes comunitários, os salvadores da pátria, os teóricos esclarecidos, todos conhecem a solução e sabem como realizá-la, entretanto mantêm o compromisso "farinha pouca, meu pirão primeiro", "a vida é assim", "temos que manter posições para conseguir mudanças".

Já os fazedores de dinheiro, os produtores sociais, partem do princípio de que conseguindo um milhão de dólares, resolve-se tudo: "temos que conseguir". Os drogados e outsiders, por sua vez, recusam-se a manter a ordem estabelecida: "nada tenho a ver com isto, quero mais é fazer o que eu quero, que se dane o resto".

Os tímidos, inibidos ou fracos, que querem se dar bem, resolvendo os problemas que impedem um relacionamento harmonioso, também querem, também acreditam. Todos posicionados em metas e em a priori.

Que seria o eu objeto? É o exposto, é o deslocamento do auto-referenciamento na barganha, na crise, na angústia, no medo, na loucura, na gordura, nos SPA, na lipoaspiração, na droga, nas plásticas rejuvenecedoras, na fé, na participação. É o momento de trégua, a pausa na contínua sobrevivência. Como transcender tais posicionamentos? Dedicando-se à vida, contemplando a existência e integrando sujeito e objeto, o que permite nova polarização. Enfim, a disponibilidade estruturada através de dedicação e disciplina é a saída, pois são estes os limites temporais do humano - é a vivência presentificada.

Não se trata de uma cruzada pela disciplina e dedicação, o que viraria outra regra, outro valor. Trata-se de um questionamento, é o fazer por fazer essencial e imanente ao estar no mundo. A sobrevivência humana configura-se quando se coloca o para quê, o quanto vale, quando se colocam os resultados. A disciplina e a dedicação permitem olhar o monte de terra como igual ao de ouro e aos poucos percebem-se variações de cor, peso, textura, vai-se notando que em um nascem flores, em outro não, que com um se fabricam panelas mais fácil e rapidamente, embora menos duráveis; que com o outro as panelas são mais difíceis de fazer e duram mais. É a descoberta. É a mudança, é a vida.

Continuando em nossa metáfora, monte de ouro e monte de terra, verificamos que a psicologia, a filosofia não enfocaram o sujeito e o objeto global e continuamente, criando com tal separação o mundo do sujeito e o mundo do objeto. Defendiam que o sujeito era quem conhecia, quem percebia e era complexo; enquanto que os objetos eram passíveis de conhecimento. Condenaram a humanidade a se descobrir através do "conhece-te a ti mesmo", das eternas interrogações, da acumulação de objetos e de valores - é a ganância, é a ambição. Só os gestaltistas, com o estudo da percepção como sinônimo de comportamento, não caíram nessa armadilha valorativa [7]. A psicoterapia gestaltista, com os conceitos de neurose como distorção perceptiva - auto-referenciamento - possibilitou a percepção da essência humana independente de seus valores e significados. Mas, apesar desses contextos teóricos, só através da percepção das coisas como elas são, independentes de valor e significado, é possível existir com disponibilidade, sem apego às situações de sobrevivência. Só quando vivemos o presente e contemplamos o nosso passado sem a ele nos apegar e sem dele fugir é que andamos, deslizamos pelo mundo: o que vier será um encontro, não uma busca. "Sem esperança, sem medo", como dizia o pintor italiano Caravaggio (1573-1610). O dia, a noite, ontem, hoje, amanhã, tudo uma continuidade. Prazer/ desprazer, satisfação/não-satisfação, trabalho/não-trabalho, ter dinheiro/não ter, enfim quebramos os limites aprisionantes e percebemos os horizontes infinitos do existir, do ser homem. É quando percebemos que não há por que se esforçar, que isso unilateraliza o viver, que a única maneira de transcender os limites dicotomizantes - posicionantes, interruptores, separativos - é dedicando-se a existir. Fundamental é a continuidade do movimento do estar no mundo conseguido pela dedicação. Já não estamos na fase de caça-coleta-posicionante.

Sendo disponíveis, realizando nossa essência humana, quebramos os posicionamentos de sujeito e de objeto e deslizamos. É como se, ao integrar o objeto, o sujeito se polarizasse, passando

a ser um gerador de energia, de dinâmica, o centro do círculo que por rotação da base gera o cilindro ou o ponto que, dinamizando, se configura pela sua trajetória em espiral:

Enquanto houver busca de resultados, atitude de manutenção, avaliação de coisas e valores, estamos emperrados, estagnados.



Psicoterapia Gestaltista Como Atrito Polarizante



- Em psicoterapia gestaltista, a primeira mudança no chamado reino do sujeito e do objeto é o início de unificação das dicotomias, é fazer o outro perceber que ele é a neurose; a neurose não é um objeto que o atrapalha. Ela é ele. É dizer: eu não tenho uma neurose, eu sou a minha neurose, ou ainda, os problemas, as dificuldades não são obstáculos em meu caminho, são expressões de minha não aceitação. Em outras visões psicoterápicas, esse processo equivale à conscientização. Na realidade o que ocorre é a mudança de percepção.

- Outro momento importante da psicoterapia é quando o indivíduo percebe que se o problema do outro o afeta, o problema é dele. Essa integração com o objeto personifica e integra consistentemente os deslocamentos de sobrevivência.

- O desejo de mudança, de ficar bem, está sempre contextuado nos critérios de necessidade, na avaliação de sobrevivência. Perceber que não se pode mudar enquanto não se dedicar ao que obstaculiza é outra forma de fusionar, integrar-se com o objeto.

- As queixas, lamentos, mágoas e frustrações traduzem sempre uma impotência, um não ter conseguido, um caminhar olhando para trás, uma vivência de memória: é como ser parasita de si mesmo, dos bons momentos. É o arrependimento, é a revolta. Essa onipotência expressa a não aceitação da continuidade do existir. (A depressão pode ser enfocada através de tal atitude).

- Pensar, esperar, cobrar o apoio terapêutico é querer a conivência, a ajuda para os propósitos, para as metas, é transformar a terapia num objeto, em tábua de salvação. Quando percebe que o terapeuta é uma antítese, um desmascarador, um denunciante, por incrível que pareça, o indivíduo sente-se compreendido, espelhado, entendido - passa a haver um fusionamento, uma integração entre sujeito e objeto, possibilitadores de dedicação existencial contemplativa ou de posicionamento dedicado a sobreviver, a manter o resultado conseguido, aumentando as bases de amealhamento e garantia, pois que o desmascaramento e a denúncia levam à mudança, à quebra de posicionamentos ou a tentativa desesperada de manter o que se conseguiu.

- Perceber que a grande "paixão", o "amor da vida", nada mais é que a tábua de salvação, o que permite sonhar, é integrativo do sujeito e do objeto, pois permite perceber a imobilidade, o medo, a falta de disponibilidade para a vida, para o outro.

- Perceber o outro, enquanto ele próprio, como um sujeito, é integrativo - é como se na quebra, no relacionamento contextuado em X surgissem novos pólos; outro sujeito, outro objeto. Essa situação é vivenciada no próprio processo psicoterápico. É encontrada também nas separações afetivas se não houver posicionamentos do tipo vítima, parasita, opressor, oprimido, que são variantes das dicotomias sujeito-objeto.

- A percepção de que aquilo que apóia também oprime é libertadora, integrativa.

Em psicoterapia gestaltista procuramos fazer com que o indivíduo perceba os eixos as linhas, a continuidade, a reversibilidade, a pregnância das situações em substituição aos pontos de apoio, aos nirvanas desejados, aos infernos temidos, enfim, aos posicionamentos estagnantes e aprisionantes do humano. Essa mudança é rapidamente conseguida, embora às vezes a quebra de posicionamentos crie o vazio, o não referencial, pois que a não aceitação é desumanizadora. Quando aceitamos o vazio, começamos a viver o presente. O vazio é vazio exatamente quando não vivemos o presente; vivemos no a priori ou na meta. A não vivência do presente estrutura o vazio. Vivenciando o vazio, surge outra vivência que é a do presente e isto já é alguma coisa, já existe um tempo, uma vivência temporal, uma vivência do presente. E com a temporalidade começa-se a ser, a se estruturar. É o ser no tempo. Não importa que se esteja se relacionando com A, B ou C, mas se a relação se dá com o seu vazio - e isto é o presente - há equilíbrio como em qualquer relacionamento estruturante.

A vivência do vazio, sendo também vivência do presente, estrutura. "Estrutura" está quase como sinônimo de "individualiza". Se o ser é ser no tempo, e se temporalidade é exatamente uma das dimensões do indivíduo, a vivência do vazio é estruturante. O vazio quando negado é como se fosse um espaço - é a espacialização do tempo. Quando a pessoa é neurótica, ela espacializa o tempo. A vivência dessa espacialidade vai fragmentando, comprimindo, estruturando o vazio, já que a fragmentação vai supondo metas e a priori. Vivenciar o vazio é realizar uma antítese. A espacialização das coisas está ligada às funções. Em termos de funcionamento, tudo é situado, perde-se a dinâmica: o local do prazer é um lugar; trabalhar, só naquela mesa. Quando as coisas começam a existir, e o vazio começa a ser percebido, deixa de haver o vazio. Perceber o vazio é realizar-se existencialmente, é humanização enquanto aceitação da dinâmica, do movimento, pois então podemos entender a quebra de referenciais alienantes de nossa essência humana.

Perceber o vazio estabelece um limite, é como se nascêssemos de novo, é o início do deslizamento ou da angústia, da não aceitação. Entram em jogo os critérios, os posicionamentos: ou se abre mão dos resultados e avaliação ou jamais o monte de terra poderá ser visto como igual ao de ouro. Surgem então divisões em relação à terapia. Recriam-se os níveis de sujeito e objeto como definidores do ser. São impasses existenciais, são impasses terapêuticos. É o processo de estar no mundo. É a adaptação à não transformação que vai gerar novos dramas piores que os anteriores, pois que agora o indivíduo está adaptado a não se transformar, a manter. É como se sujeito e objeto aparentassem integração. Quando começa a se transitar nesse reino, os castelos caem, são necessários muitos vassalos, escravos, é o parasitismo oficializado. É a dependência, matriz geradora dos sobreviventes. A super-mãe, o grande pai, o patrão legal, o grande amigo, o terapeuta compreensivo e solícito etc., são estruturados, constituindo-se em posicionamentos desumanizadores. [pags. 23 a 39]



NOTAS:


[1] - É pelo fato de a divisão expressar a unidade que se torna possível a realização de psicoterapia gestaltista. Quando um ser humano está dividido, fragmentado, existe sempre a possibilidade de unificação, uma vez que em sua divisão subsiste a unidade essência humana.

[2] - Noesis é o ato pelo qual se pensa. Noema é o que é pensado. Husserl tinha seu pensamento orientado para o problema da correlação do sujeito e do objeto no ato do conhecimento, passando assim de um certo realismo eidético para um idealismo transcendental. Mais radical que a dúvida cartesiana, a redução fenomenológica consiste em colocar entre parênteses a atitude natural, ingênua, da consciência, afirmando espontaneamente a existência do mundo, e em isolar o dado natural, contingente (o mundo exterior e o eu empírico) do eu puro, do sujeito ou ego transcendental. Modelo de toda evidência original e necessária, a consciência pura se descobre como "intencionalidade", fonte de toda significação, pois que constituite do objeto. Sua análise eidética permite precisar modalidades de consciência: consciência perceptiva, consciência imaginativa etc. Insistindo sobre a experiência fundamental e original que o sujeito tem do outro e fazendo da intersubjetividade o próprio fundamento da objetividade do mundo, Husserl evitou o solipsismo para onde arriscava conduzir o idealismo transcendental. (Traduzido do Petit Robert 2, Dictionnaire universel des noms propres, Paris, 1990).

[3] - Arnheim. R., Intuição e intelecto na arte, pag. 133.

[4] - As buscas "transcendentais" de explicação para os dramas da sobrevivência também são caminhos recomendados - é o "cuide de sua energia", "entenda a sua escolha cármica", "afaste seus obsessores que lhe atrapalham", "limpe seus caminhos" etc...

[5] - Mahabharata - grande poema épico indiano com cerca de 120 mil versos divididos em 19 livros. É uma obr a coletiva, antiga da época védica, cerca de 1.000 anos a.C. e continuada até o sec. VI de nossa era. Ele conta de uma maneira heróica e lírica as aventuras de cinco irmãos enfrentando a inimizade de um rei de um clã rival e a guerra entre clãs indo-européias na bacia do Indo-Ganges, de suas lutas intestinas e das que tiveram de sustentar contra as tribos dravídicas que na época ocupavam o território. O Mahabharata é também uma espécie de enciclopédia dos conhecimentos sagrados e profanos dos indo-europeus, indianos, dessa época. O grande poema filosófico Bagavad-Gita faz parte do sexto livro; provavelmente foi acrescentado posteriormente aos outros episódios. O décimo-nono livro é também uma interpolação tardia, conta os mitos referentes ao Deus Krishna. O Mahabharata foi muito divulgado e conhecido, tendo sido traduzido e interpretado em todos os paises que sofreram influência indiana. Serviu de fonte inesgotável de temas e inspiração para a literatura e as belas-artes. (Traduzido do Petit Robert 2, Dictionnaire universel des noms propres, Paris, 1990).

[6] - "A renúncia é o trabalho desinteressado. A verdadeira renúncia é a renúncia do desejo e nada mais que isso. A ação é o único meio de alcançar o yoga da renunciação, uma vez que se consegue, a serenidade vem por si mesma à mente. Os prazeres que surgem do apego são apenas fonte de dor posterior, têm um princípio e um fim. As coisas que têm princípio e fim, nunca são fonte de eterna alegria e o homem sábio deveria evitá-las. Quando um homem chega ao estado em que o frio e o calor, o prazer e a dor, a honra e a desonra lhe parecem iguais, sempre está sereno. Um monte de terra, uma pedra, um monte de ouro lhe parecem iguais. Não pode ver diferenças entre amigos e inimigos, entre gente indiferente e gente parcial nem também entre gente malvada e gente justa. Este homem é grande". (Mahabharata, vol. 2, cap. 3, pag. 668)

[7] - Quando os gestaltistas estabeleceram o conceito de Meio Geográfico - o meio tal como a ciência o descreve - e Meio Comportamental - o meio tal como o indivíduo o percebe -, quando disseram que as estruturas (gestalten) neurológicas são iguais às psicológicas ou ainda "o que está dentro está fora" - princípio isomórfico - e quando, através do Princípio da Contemporaneidade, Kurt Lewin disse que o presente modifica o passado, que o que ocorre modifica o que ocorreu, obtiveram uma visão global e unitária dos processos psicológicos humanos sem a priori causalistas, deterministas e reducionistas; atingiram assim a essência humana, sem atribuições valorativas.

     
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