TEXTOS SELECIONADOS

Como Escrever Histórias em Quadrinhos - Parte III

Por Alan Moore

N. do T.: Para esta terceira parte, é interessante que você tenha à mão, se possível, a edição em P & B de 2002 (formato magazine) Alan Moore - Super-Homem, da Opera Graphica Editora , que apresenta a história O Homem que Tinha Tudo, ou ainda, a revista Superpowers 21, da Ed. Abril, que contém a mesma história. Tenha também à mão edições de Love and Rockets.

Agora que temos nossa idéia, nossa estrutura, nossa aproximação do storyteller, nosso ambiente e a caracterização de nossos personagens, suponho que podemos também nos preocuparmos em desenvolver um enredo (embora como você possa ter percebido se você já leu muitos dos meus trabalhos, eu muito freqüentemente posso não ter me incomodado com essa formalidade). Assim, o que diabos é um enredo? Com o que ele se parece? Um enredo não é o ponto principal da história ou a principal razão de a história existir. É algo que está aqui mais para sustentar a idéia central da história e os personagens envolvidos nela do que dominá-los e forçá-los a preencher suas restrições. Um enredoé a combinação do ambiente e dos personagens com o elemento de tempo adicionado a ele. Se a combinação do ambiente e dos personagens pode ser chamada de situação, o enredo é uma situação vista em quatro dimensões. Usando um exemplo que emprestei do excelente Report on Probability A, de Brian Aldiss, vamos pensar sobre outras coisas além de quadrinhos para termos uma perspectiva diferente da idéia. Consideremos uma pintura específica, The Hireling Shepherd, do pintor pré-rafaélico Willian Holman Hunt (para ver a pintura, clique aqui).

Nesta pintura, vemos uma mulher sentada, encarando-nos diretamente de frente com uma belíssima e luminosa paisagem pastoral por trás dela, banhando-a na luz dourada do fim-de-tarde. Encolhido ou ajoelhado atrás da mulher, vemos um rapaz, o pastor assalariado do título. ele tem um de seus braços por sobre um dos ombros dela, como se ele tentasse estabelecer uma intimidade física com o braço ao seu redor. Entretanto, no momento descrito na pintura, sua mão ainda não a tocou. Presa cuidadosamente na palma da mão do rapaz, há uma mariposa "cabeça da morte". A expressão tanto do formoso pastor quanto da jovem mulher são ambíguos. O pastor parece desejoso enquanto a mulher parece cortejada. Visto de outro modo, a expressão do rapaz é levemente mais sinistra enquanto a expressão dela torna-se uma de preocupação reprimida. Por trás do casal, nos campos ingleses banhados de ouro, um rebanho de ovelhas vaga quase desinteressadamente, sem supervisão e desprotegidas enquanto o pastor flerta com sua bela jovem no gramado acima de seu pasto. O pastor parece sorrir como se estivesse preparando-se para mostrar à jovem a mariposa "cabeça da morte", e ela não parece descontente com seu avanço. O rebanho pasta, a mariposa estremece, o momento está congelado, sem nenhum passado nem resolução. A pintura é um único segundo retirado de um continuum do qual não sabemos mais nada sobre ele. Não sabemos nada das existências prévias desses personagens; não sabemos onde o pastor cresceu ou mesmo onde ele dormiu na noite anterior. Não sabemos se a mulher chegou àquele caminho apenas casualmente ou se concordou previamente em encontrar-se com o rapaz naquele lugar. Do futuro deles, sabemos menos ainda. Quando ele mostrar a mariposa, será que ela ficará encantada ou enojada? Eles farão amor, ou simplesmente conversar, ou talvez discutir? Isso fará com que as ovelhas se tornem menos desinteressadas? Com um olho no aparentemente nefasto simbolismo da mariposa "cabeça da morte", haverá algo mais sombrio implicado? Não necessariamente algo melodramático como a possibilidade de o pastor está quase para assustar a moça, mas talvez alguma referência à mortalidade e os caminhos nos quais dissipamos a substância de nossas vidas? É esse eterno momento que vemos, capturado na tela, um momento do relacionamento ou o fim do mesmo?

A beleza de uma boa pintura é que a mente e os sentimentos podem vagar interminavelmente dentro dela, seguindo seus próprios padrões e movendo-se em seu próprio espaço através do lugar atemporal que a pintura representa. The Hireling Shepherd mostra-nos uma situação. Tal situação não muda ou move-se, mas nós mesmos podemos nos mover dentro dela, mentalmente, desfrutando as sutis mudanças na perspectiva e significado.

Agora, se adicionar-mos a dimensão do tempo naquela situação, o trabalho de arte será completamente alterado. Em vez de ter infinitas possibilidades, deverá seguir apenas uma única rota. A estrutura de eventos ao longo desta rota é o enredo. A garota da pintura percebe a mariposa e ela fica tanto intrigada quanto um pouco assustada por ela. Conduzida essa forma dentro da conversação com o carismático pastor assalariado, a mulher encontra-se igualmente fascinada por ele. Eles fazem amor, após o rapaz libertar a mariposa "cabeça da morte". quando o primeiro encontro sexual deles termina, eles descobrem que o rebanho de ovelhas foi roubado ou misteriosamente desapareceu durante esse intervalo. Sem querer encarar a cólera do irado fazendeiro que contratou o pastor para cuidar das ovelhas, o feliz e despreocupado trabalhador decide deixar a vizinhança sem reportar o roubo e procura por trabalho em outro condado. Após algumas semanas, a mulher descobre que está grávida. Seu pai e seus irmãos tomam conhecimento disso e juram localizar o pastor assalariado e oferecer a ele a escolha do casamento ou da morte... e etc e etc.

Reconhecidamente, o que foi descrito acima é uma desajeitada e feia extrapolação, sem nenhuma poesia ou charme ou sutileza da pintura original, mas acho que ela indica que esboçar um enredo é um tipo de fenômeno quadrimensional, usando o tempo por este ser a quarta dimensão. A situação apresentada na pintura é uma representação de um mundo tridimensional que, com a adição do tempo, torna-se quadrimensional e muda de uma situação para um enredo.

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