Auto-retrato
Dentre vós, alguns me acusam de não ligar às coisas práticas da vida.
Estarão certos, talvez. E como poderia ser de outra forma? Acaso o beija-flor atenta para as minhocas que se revolvem entre o solo, se a essência da sua vida é sugar o néctar das flores?
Dizem outros que me perco em sonhos.
E estarão, igualmente, certos. E mais uma vez eu vos pergunto: e como poderia ser de outra forma?
Serei eu, acaso, o único a sonhar?
De que nutrem os enamorados o seu amor, se não de sonhos?
Não sonham os religiosos, que pretendem entender Deus?
E o que é a felicidade, que todos desejam, se não o maior dos sonhos?
É preciso que eu sonhe.
Pois ninguém pode dar se não o que possui. E, tendo tão pouco de meu, nada vos posso dar além dos meus sonhos, que transformo em palavras.
Deixai-me, pois, como sou. Porque existem o sol e a chuva, a noite e o dia, o pássaro e a minhoca, o sonhador e o prático. E todos são necessários ao equilíbrio do mundo.
Não vos enganeis, vós que amais as minhas palavras e pretendeis apontar os meus defeitos.
Eles existem também em vós.
Pois não me escutaríeis, se eu vos falasse de coisas que não fosseis capazes de entender ou sentir; por mais belas que fossem, as minhas palavras esbarrariam na vossa incompreensão.
E não teriam os vossos ouvidos, se não vos alcançassem o coração.
Por isso, eu vos digo que somos todos iguais.
E as aparentes diferenças residem nas escolhas que fazemos.
O homem não faz mais, durante toda a sua vida, do que buscar a felicidade; diferente é o lugar onde cada um coloca a sua própria felicidade.
E essa é a causa dos vossos sofrimentos. Porque seria fácil encontrar a felicidade, se todos a buscassem juntos.
Eis que não reclamo dos vossos rumos; antes, tento entendê-los.
Porque, assim fazendo, eu os posso dividir convosco, ainda que por breves instantes.
Assim como o céu divide com a Terra a beleza das estrelas que o adornam.
E os sonhos e desencantos dividem os vossos corações...