Racionalismo
O desenvolvimento do método matemático,
considerado como instrumento puramente teórico
e dedutivo, que prescinde de dados empíricos,
e sua aplicação às ciências
físicas conduziram, no século XVII, a
uma crescente fé na capacidade do intelecto
humano para isolar a essência no real e ao surgimento
de uma série de sistemas metafísicos
fundados na convicção de que a razão
constitui o instrumento fundamental para a compreensão
do mundo, cuja ordem interna, aliás, teria um
caráter racional. Essa era a idéia central
comum ao conjunto de doutrinas conhecidas tradicionalmente
como racionalismo, e cuja primeira manifestação
aparece na obra de René Descartes.
O termo racionalismo pode aludir a diferentes posições
filosóficas. Primeiro, a que sustenta a primazia,
ou o primado da razão, da capacidade de pensar,
de raciocinar, em relação ao sentimento
e à vontade. Tal forma ou modalidade de racionalismo
seria mais propriamente chamada intelectualismo, pressupondo
uma hirarquia de valores entre as faculdades psíquicas.
Em segundo lugar, racionalismo significa a posição
segundo a qual só a razão é capaz
de propiciar o conhecimento adequado do real. Por fim,
o racionalismo ontológico ou metafísico
consiste em considerar a razão como essência
do real, tanto natural quanto histórico.
Respectivamente, essas posições correspondem ao racionalismo
psicológico, racionalismo gnoseológico ou epistemológico
e racionalismo metafísico. Em comum, existe a convicção
de que a razão constitui o instrumento fundamental para compreensão
do mundo, cuja ordem interna seria também racional. O sentido filosófico
de razão, todavia, não pode ser fixado apenas a partir da linguagem
corrente. O termo grego que a designa desde o nascimento da filosofia grega,
logos, indica, embora não deixe de se referir à noção
de cálculo, o discurso coerente, compreensível e universalmente
válido. Caracteriza, além do discurso, o que ele revela, os princípios
daquilo que "é" verdadeiramente. Em contraposição,
os sofistas defenderam um pensamento "desse mundo", o da consciência
comum.
Racionalismo psicológico. O intelectualismo sustenta que as duas faculdades
especificamente humanas são a vontade e a inteligência ou razão.
A inteligência é vista como a mais importante sob a alegação
de que a vontade ou a capacidade de querer, de decidir, é faculdade
cega, cujas operações dependem da inteligência que, por
definição, é a capacidade de iluminar e de ver. As filosofias
intelectualistas opõem-se às filosofias voluntaristas e sensualistas.
Racionalismo epistemológico. Posição filosófica
que afirma a razão como única faculdade de propiciar o conhecimento
adequado da realidade. A razão, por iluminar o real e perceber as conexões
e relações que o constituem, é a capacidade de apreender
ou de ver as coisas em suas articulações ou interdependência
em que se encontram umas com as outras. Ao partir do pressuposto de que o pensamento
coincide com o ser, a filosofia ocidental, desde suas origens, percebe que
há concordância entre a estrutura da razão e a estrutura
análoga do real, pois, caso houvesse total desacordo entre a razão
e a realidade, o real seria incognoscível e nada se poderia dizer a
respeito.
Racionalismo metafísico. O racionalismo gnosiológico ou epistemológico é inseparável
do racionalismo ontológico ou metafísico, que enfoca a questão
do ser, pois o ser está implicado no pensamento do ser. Declarar que
o real tem esta ou aquela estrutura implica em admitir, por parte da razão,
enquanto faculdade cognitiva do ser humano, a capacidade de apreender o real
e de revelar a sua estrutura. O conhecimento, ao se distinguir da produção
e da criação de objetos, implica a possibilidade de reproduzir
o real no pensamento, sem alterá-lo ou modificá-lo.
Racionalismo clássico e tendências posteriores. Dois elementos
marcariam o desenvolvimento da filosofia racionalista clássica no século
XVII. De um lado, a confiança na capacidade do pensamento matemático,
símbolo da autonomia da razão, para interpretar adequadamente
o mundo; de outro, a necessidade de conferir ao conhecimento racional uma fundamentação
metafísica que garantisse sua certeza. Ambas as questões conformaram
a idéia basilar do Discours de la méthode (1637; Discurso sobre
o método) de Descartes, texto central do racionalismo tanto metafísico
quanto epistemológico.
Para Descartes, a realidade física coincide com o pensamento e pode
ser traduzida por fórmulas e equações matemáticas.
Descartes estava convicto também de que todo conhecimento procede de
idéias inatas -- postas na mente por Deus -- que correspondem aos fundamentos
racionais da realidade. A razão cartesiana, por julgar-se capaz de apreender
a totalidade do real mediante "longas cadeias de razões", é a
razão lógico-matemática e não a razão vital
e, muito menos, a razão histórica e dialética.
O racionalismo clássico ou metafísico, no entanto, cujos paradigmas
seriam o citado Descartes, Spinoza e Leibniz, não se limitava a assinalar
a primazia da razão como instrumento do saber, mas entendia a totalidade
do real como estrutura racional criada por Deus, o qual era concebido como "grande
geômetra do mundo".
Spinoza é o mais radical dos cartesianos. Ao negar a diferença
entre res cogitans -- substância pensante -- e res extensa -- objetos
corpóreos -- e afirmar a existência de uma única substância
estabeleceu um sistema metafísico aproximado do panteísmo. Reduziu
as duas substâncias, res cogitans e res extensa, a uma só -- da
qual o pensamento e a extensão seriam atributos.
Leibniz, o último grande sucessor de Descartes, baseou sua doutrina
na "harmonia preestabelecida" da realidade por obra da vontade divina.
Distinguiu as verdades de fato -- contingentes e particulares -- das verdades
de razão -- necessárias e universais --, porém considerou
as primeiras redutíveis às segundas. Desse modo, se conhecêssemos
as coisas em seu conceito, como Deus as conhece, poder-se-ia prever os acontecimentos,
uma vez que a estrutura do real é racional ou inteligível. Assim
sendo, o método da ciência não poderia ser o da indução,
mas a dedução.
Sob uma perspectiva contrária, os empiristas britânicos refutaram
a existência das idéias inatas e postularam que a mente é uma
tabula rasa ou página em branco, cujo material provém da experiência.
A oposição tradicional entre racionalismo e empirismo, no entanto,
está longe de ser absoluta, pois filósofos empiristas como John
Locke e, com maior dose de ceticismo, David Hume, embora insistissem em que
todo conhecimento deve provir de uma "sensação", não
negaram o papel da razão como organizadora dos dados dos sentidos. O
próprio fato de haver toda esta controvérsia em torno da problemática
suscitada por Descartes revela a importância crucial das teses racionalistas.
O racionalismo cartesiano e o empirismo inglês desembocaram no Iluminismo
do século XVIII. A razão e a experiência de que resulta
o conhecimento científico do mundo e da sociedade bem como a possibilidade
de transformá-los são instâncias em nome das quais se passou
a criticar todos os valores do mundo medieval.
A nova interpretação dada à teoria do conhecimento pelo
filósofo alemão Immanuel Kant, ao desenvolver seu idealismo crítico,
representou uma tentativa de superar a controvérsia entre as propostas
racionalistas e empiristas extremas.
Entendido como posição filosófica que sustenta a racionalidade
do mundo natural e do mundo humano, o racionalismo corresponde a uma exigência
fundamental da ciência: discursos lógicos, verificáveis,
que pretendem apreender e enunciar a racionalidade ou inteligibilidade do real.
Ao postular a identidade do pensamento e do ser, o racionalismo sustenta que
a razão é a unidade não só do pensamento consigo
mesmo, mas a unidade do mundo e do espírito, o fundamento substancial
tanto da consciência quanto do exterior e da natureza, pressuposto que
assegura a possibilidade do conhecimento e da ação humana coerente.
Para além de seus possíveis elementos dogmáticos, a filosofia
racionalista, ao ressaltar o problema da fundamentação do conhecimento
como base da especulação filosófica, marcou os rumos do
pensamento ocidental.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.