Misticismo
O misticismo nasce do esforço do indivíduo
para alcançar uma realidade absoluta ou divina
que estaria em íntima conexão com as
coisas. Envolve um conjunto de disposições
afetivas, intelectuais e morais, cuja meta final é a
comunhão com Deus.
Misticismo é a atitude espiritual que objetiva realizar a união
da alma com a divindade, por diversos meios, como o ascetismo, a devoção,
o amor, a contemplação etc. Forma com a teologia os dois pólos
do conhecimento religioso. Se o misticismo é intuitivo, emocional, subjetivo
e particular, apreendido por contato direto e incomunicável, a teologia é uma
explicação analítica, de tipo racional, dos mistérios
da religião. Nas religiões primitivas, em que a doutrina não
constitui domínio específico, a distinção não é tão
clara. Elementos místicos já estão presentes no xamanismo
e na magia, que valorizam o conhecimento e o poder derivados de uma experiência
singular, fora da esfera do senso comum.
Principais tipos. O misticismo pode ser de liberação, de identidade
e teísta. O primeiro é próprio do budismo e objetiva libertar
o ser humano das condições inerentes à existência;
o segundo, característico do hinduísmo e do neoplatonismo, tenta
a identificação do indivíduo com o Todo ou o Um universais;
e o teísta, presente no judaísmo, cristianismo e islamismo, busca
realizar a união do indivíduo com um Deus pessoal e transcendente.
Para o misticismo teísta, o indivíduo não se dissolve
nem se anula no encontro com a divindade transcendente; a união das
pessoas humana e divina resulta de um dom gratuito concedido por Deus. A libertação
e a identidade buscadas pelos outros dois tipos decorre de técnicas
de autocontrole físico e psíquico (ioga, danças, meditação
etc.). Todos três evitam as limitações da racionalidade
e realizam a purificação ascética por meio de jejum, penitência,
pobreza e celibato, em busca de independência em relação
ao mundo material, às demandas do corpo.
Judaísmo e Islã. O misticismo judaico se manifesta nas visões
dos profetas do Antigo Testamento e nas visões apocalípticas
do judaísmo pós-bíblico. A cabala se desenvolveu numa
direção mais próxima do ocultismo. Sua obra maior, o Zohar
(Livro do esplendor), do século XIII, descreve a vida íntima
de Deus e transmite conhecimentos ocultos que permitem "aderir" a
ele.
O sufismo, crença e prática mística do islamismo, prega
a união pessoal com Deus por meio de vários caminhos místicos,
capazes de proporcionar uma avaliação da natureza do homem e
de Deus e facilitar a experiência da presença do amor e da sabedoria
divina no mundo.
Misticismo cristão. Os elementos místicos do cristianismo já aparecem
na teologia do apóstolo Paulo, em sua aspiração a uma
relação direta com o Cristo. Essa tendência mística
tomou, no cristianismo oriental (como em Orígenes e outros religiosos),
a forma de comunicação com o Verbo -- princípio único
inteligível, organizador de todas as coisas. Alguns místicos,
como são Bernardo de Claraval (1090-1153) e os religiosos do mosteiro
de Saint Victor, sentiam-se como "noivas" do Redentor; outros, como
são Boaventura, identificaram a própria vida com a Paixão
de Cristo.
O misticismo dos dominicanos alemães medievais, sobretudo do mestre
Eckhart (c.1260-1327), contém elementos teológicos e especulativos.
O principal tema da mística de Eckhart é o nascimento do Cristo
na alma humana, sinal da união com Deus. Segue a filosofia aristotélica
tomista com influências do neoplatonismo de Plotino (século III)
e do teólogo e filósofo britânico João Escoto Erígena
(século IX).
Outros grandes místicos católicos foram as visionárias
medievais, como a sueca santa Brígida e a italiana santa Catarina de
Siena. O flamengo Jan van Ruysbroeck, cujo misticismo está relacionado
ao dos dominicanos, é um dos maiores escritores holandeses medievais.
Do misticismo flamengo descende a devotio moderna (devoção moderna)
-- religiosidade simples e piedosa das comunidades anteriores à Reforma,
avessa ao intelectualismo da escolástica, e que adaptava as altas aspirações
místicas à austera vida racional da nascente cultura citadina
do século XIV. A devotio moderna influenciou homens tão diferentes
como Erasmo de Rotterdam e Lutero. A obra que traduz seu espírito característico é a
Imitatio Christi (Imitação de Cristo), atribuída a Tomás
de Kempis (c.1380-1471), um dos livros mais lidos do cristianismo ocidental.
O misticismo católico combinou experiências extra-sensoriais (visões)
com uma vida ativa de trabalho. Expressou-se na Espanha do século XVI
em santa Teresa de Ávila, são João da Cruz e Juan de los Ángeles
(1536-1609), grandes espíritos religiosos e também grandes escritores.
Na França, a tendência mística foi precedida e preparada
pelo humanismo cristão de são Francisco de Sales e do cardeal
Pierre de Bérulle (1575-1629), fundador da ordem dos oratorianos. Os
grandes místicos franceses do século XVII são Jean-Jacques
Olier, da igreja de Saint Sulpice, a carmelita Marie de L'Incarnation e o abade
de Saint-Cyran, da abadia de Port-Royal. No século XX houve debates
dentro do catolicismo a respeito da natureza da mística: para uns, é uma
graça especial concedida por Deus aos eleitos; para outros, seria o
fruto natural da vida cristã.
Mística cristã não-católica. O protestantismo também
desenvolveu várias tendências místicas, embora os iniciadores
da Reforma não as tenham cultivado. Manifestam-se na filosofia de Jakob
Böhme (1575-1624) e no pietismo dos séculos XVII e XVIII, como
a seita dos irmãos morávios, sob a liderança de Nikolaus
Ludwig Zinzendorf (século XVIII).
Nas igrejas orientais, uma das principais figuras da revivificação
mística é Gregório Palamas (século XIV), para quem
Deus se manifesta em pessoa no corpo do fiel. A mística bizantina difundiu-se
no Oriente cristão e seus adeptos na Rússia dos séculos
XVIII e XIX foram os startsy (plural de staretz) -- monges ascetas no modelo
dos eremitas dos desertos do Egito, Síria e Palestina. O mais conhecido é o
monge Serafim de Sarov (1759-1833). A figura do staretz foi difundida no mundo
ocidental pelo livro Relato de um peregrino russo, editado a partir de manuscrito
encontrado num mosteiro ortodoxo, de autor desconhecido, que conta experiências
místicas ao longo de toda uma vida de ascese e busca de Deus.
©Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda.