Literatura Fantástica
Tida durante muito tempo como gênero menor,
a literatura fantástica produziu, no entanto,
obras de interesse universal. Na segunda metade do
século XX, ganhou imensa popularidade a vertente
fantástica latino-americana conhecida como realismo
mágico.
Entendida como qualquer tipo de criação literária que
não dê prioridade à representação realista,
a literatura fantástica engloba mitos, lendas, contos de fada, contos
folclóricos, escritos surrealistas, contos de horror etc. -- e qualquer
texto que se situe em territórios diferentes da realidade imediata ao
ser humano. Mais propriamente do que gênero literário, a literatura
fantástica é uma tendência, observada ao longo de toda
a história da literatura. Sua antecessora, na era clássica, é a
sátira menipéia (que tem o nome de seu criador, o filósofo
grego Menipo) que, ligada à tradição carnavalesca, rompia
todos os condicionamentos de probabilidade ou realismo. São romances
desse tipo Metamorfoses, conhecido como O asno de ouro, de Apuleio, e o Satiricon,
de Petrônio.
O maravilhoso na literatura. Embora se entenda o fantástico, tradicionalmente,
como tudo aquilo que se distancia da imitação convencional do
real, é importante distinguir o maravilhoso do fantástico propriamente
dito. Os relatos maravilhosos são aqueles que, mesmo situados fora do
mundo da realidade, narram acontecimentos ocorridos num passado cronologicamente
indeterminado. O narrador é onisciente e apresenta seu relato de tal
forma que não há espaço para questionar sua história,
coerente em si mesma. Entre esses relatos se encontram os contos folclóricos
e de fadas, que figuram entre as primeiras manifestações literárias
não escritas. Uma das compilações mais importantes desse
tipo de relato é atribuída aos irmãos Grimm. No livro
Kinder und Hasmärchen (1812-1822; Contos das crianças e da casa),
recolheram grande número de narrativas da tradição popular
alemã, muitas das quais, como as histórias de Chapeuzinho Vermelho
e da Gata Borralheira, se tornaram mundialmente famosas.
Dentro do maravilhoso se incluem outras modalidades narrativas de grande difusão,
tais como o romance pastoril, iniciado pelo italiano Jacopo Sannazzaro, com
Arcadia (1504); o romance bizantino, que começou a ser escrito ainda
no mundo helênico; a alegoria ocultista medieval e as histórias
de cavalaria, iniciadas com as lendas do rei Artur, os cavaleiros da Távola
Redonda e a busca do Santo Graal. Ao maravilhoso pertencem ainda obras como
Gulliver's Travels (1726; As viagens de Gulliver), de Jonathan Swift; Wonderful
Wizard of Oz (1900; O mágico de Oz), de Frank Baum; Die unendliche Geschichte
(1979; A história sem fim ), de Michael Ende, e The Lord of the Rings
(1954-1955; O senhor dos anéis), no qual o autor, J. R. R. Tolkien,
ao mesmo tempo em que trata temas como o poder, ambição, guerra
e morte numa dimensão muitas vezes épica, concretiza uma das
maiores criações mitológicas da literatura de todos os
tempos.
Características da literatura fantástica. A narrativa fantástica
não cria, como a maravilhosa, mundos novos, completamente dissociados
da realidade. Ela confunde elementos do maravilhoso e do real ou mimético.
Afirma que é real aquilo que está contando -- e para isso se
apóia em todas as convenções da ficção realista
-- mas começa a romper esse "suposto real" à medida
em que introduz aquilo que é manifestamente irreal. Arranca o leitor
da aparente comodidade e segurança do mundo conhecido e cotidiano para
apresentar-lhe um mundo estranho, cuja inverossimilhança está mais
próxima do maravilhoso. A toda hora se questiona a natureza daquilo
que se vê e se registra como real. As unidades clássicas de tempo,
espaço e personagem ficam ameaçadas de dissolução.
Os temas estão ligados, normalmente, à invisibilidade, à transformação,
ao dualismo e à luta entre o bem e o mal. Isso gera uma grande quantidade
de motivos recorrentes, como fantasmas, sombras, vampiros, homens-lobo, duplos,
dupla personalidade, reflexos (espelhos), masmorras, monstros, feras, canibais
etc.
Sem considerar outros antecedentes de menor importância, pode-se dizer
que a literatura fantástica moderna começou no final do século
XVIII, com o chamado romance gótico, que introduziu na narrativa agentes
sobrenaturais e irracionais de todo tipo. O primeiro romance desse tipo foi
The Castle of Otranto (1765; O castelo de Otranto), de Horace Walpole. De feição
humorística é The Adventures of Baron Munchhausen (1785; As aventuras
do barão de Munchhausen), obra escrita em inglês pelo alemão
Rudolph Erich Raspe. No século XIX, o gênero gótico evoluiu
no sentido de abrir espaço para a análise de questões
psicológicas e morais de grande transcendência. Frankenstein (1818),
de Mary Shelley, mostra como a tentativa de criar um ser humano deu como trágico
resultado um monstro.
O dualismo, ou seja, a manifestação de um duplo que representa
uma faceta perdida da personalidade, é um dos elementos temáticos
fundamentais do romance gótico. Os dois relatos mais conhecidos em que
o dualismo se expressa são The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde
(1886; O médico e o monstro), de R. L. Stevenson, e The Picture of Dorian
Gray (1891; O retrato de Dorian Gray), de Oscar Wilde. Duplos ou sombras aparecem
também, de forma recorrente, em obras como Penthesilia (1808), de Heinrich
von Kleist; Peter Schlemihl (1814), de Adalbert von Chamisso; e no conto "O
sósia", de Dostoievski. Nos Estados Unidos surgiram notáveis
escritores do estilo gótico, como Washington Irving, Nathaniel Hawthorne
e o célebre Edgar Allan Poe.
Drácula (1897), de Bram Stoker, é uma das obras culminantes da
literatura gótica do século XIX. Por meio do vampiro Drácula
se realiza, de maneira horrenda, o anseio da imortalidade. Inúmeros
autores, além dos citados, incluíram elementos do romance gótico
em suas obras: Charles Dickens, Théophile Gautier, Honoré de
Balzac, Prosper Mérimée, as irmãs Brontë e muitos
outros. Dentro do grupo chamado dos "fantasistas vitorianos" destaca-se
Lewis Carroll, autor de Alice's Adventures in Wonderland (1865; Alice no país
das maravilhas), em que busca, no insólito, os sentidos que escapam
ao senso comum.
Na literatura fantástica do século XX se observa uma tendência
a representar situações tão absurdas que não se
consegue vislumbrar nenhuma possibilidade de significado. Franz Kafka, autor
de obras como Der Prozess (O processo) ou Das Schloss (O castelo), publicadas
postumamente na década de 1920, é o autor maior dessa tendência,
dentro da qual podem ser incluídos, de certa forma, muitos dos contos
fantásticos de Julio Cortázar. H. P. Lovecraft, criador de um
pavoroso mundo de monstros, vincula-se à tradição do romance
gótico.
Outro ramo do gênero fantástico moderno toma como ponto de partida
aquilo que é manifestamente irreal e fabuloso, tendência muito
evidente nos contos fantásticos do argentino Jorge Luis Borges, reunidos
em Ficciones (1935-1944) e El Aleph (1933-1969); os de seu compatriota Julio
Cortázar, e os do peruano Julio Ramón Ribeyro. Vinculados a essa
tradição do fantástico sob a forma de fábula estão
diversos romances de Bernard Malamud, Kurt Vonnegut, John Bart e outros. No
realismo mágico, especificamente latino-americano, misturam-se problemas
sociais com acontecimentos fantásticos, como em Cien años de
soledad (1967; Cem anos de solidão), do colombiano Gabriel García
Márquez, e La casa de los espíritus (1982; A casa dos espíritos),
da chilena Isabel Allende.
Entre os autores brasileiros, a literatura fantástica tem como um de
seus representantes mais autênticos Machado de Assis, com o conto "A
chinela turca"; Simões Lopes Neto, com Lendas do sul (1913) e Contos
gauchescos (1926), principalmente com os contos "A salamanca do jarau" e "O
negrinho do pastoreio", em que explora mitos folclóricos brasileiros;
Mário de Andrade, com Macunaíma (1928); Jorge Amado, com Quincas
Berro d'Água (1961); Guimarães Rosa, com "A terceira margem
do rio" (1962); e José Cândido de Carvalho, com o romance
O coronel e o lobisomem (1964).
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