Epistemologia
As questões relativas à possibilidade
e à validade do conhecimento, cruciais na filosofia
de todos os tempos, ganharam renovado interesse na
sociedade moderna, voltada para o saber científico
e tecnológico. Quanto maior a importância
da ciência, maior a necessidade de dotá-la
de sólidos fundamentos teóricos e critérios
de verdade.
Epistemologia, gnosiologia ou teoria do conhecimento é a parte da filosofia
cujo objeto é o estudo reflexivo e crítico da origem, natureza,
limites e validade do conhecimento humano. A reflexão epistemológica
incide, pois, sobre duas áreas principais: a natureza ou essência
do conhecimento e a questão de suas possibilidades ou seu valor.
O problema do conhecimento. Os filósofos antigos e medievais abordaram
em muitas ocasiões e de formas diversas o problema do conhecimento,
mas foi a partir dos racionalistas e empiristas que o tema ganhou importância
no pensamento filosófico. Conhecimento é o processo que ocorre
quando um sujeito (o sujeito que conhece) apreende um objeto (o objeto do conhecimento).
Esses dois pólos, sujeito e objeto, estão sempre presentes na
relação de conhecimento. O papel que se atribui a um ou outro
varia substancialmente, conforme a posição filosófica
a partir da qual se considera essa relação. Assim, enquanto os
filósofos realistas admitem a primazia do objeto, ou seja, sua existência
independente do sujeito, os filósofos idealistas defendem a primazia
do sujeito, isto é, o objeto só existe no entendimento do sujeito.
Em alguns casos, o subjetivismo transforma-se num solipsismo, isto é,
na afirmação da impossibilidade do sujeito sair de si para poder
conhecer o objeto. O sujeito só pode apreender as propriedades do objeto
ao se transcender, ou seja, sair de si mesmo. O objeto, pelo contrário,
permanece em sua condição e não se altera, não é modificado
pelo sujeito. É este quem sofre modificação pelo objeto,
modificação que é o próprio ato do conhecimento.
Se o sujeito representa para si o objeto tal como é, o conhecimento
será verdadeiro. No caso contrário, o sujeito terá um
conhecimento falso do objeto.
Formas de conhecimento. Existem duas formas básicas de conhecimento:
o sensível e o inteligível. O primeiro é o conhecimento
que se adquire por meio dos sentidos e atinge o objeto em sua materialidade
e individualidade. O conhecimento inteligível, ao qual se chega pelos
mecanismos da razão, atinge tipos gerais e leis necessárias e
não o individual e concreto. Alguns pensadores admitem a intuição
como forma de apreensão imediata do objeto. Nessa linha, sobretudo a
partir da obra do filósofo alemão Immanuel Kant, fala-se de conhecimento
a priori, isto é, o conhecimento que não tem origem na experiência,
e de conhecimento a posteriori, que procede da experiência.
Doutrinas sobre o conhecimento. Diante da possibilidade do conhecimento, existem
duas posições extremas e antagônicas: o ceticismo, que
defende a impossibilidade de conhecer o real, e o dogmatismo, que sustenta
que em todos os casos é possível conhecer as coisas tais como
são. Entre essas posições extremas encontram-se os céticos
moderados e dogmáticos moderados. Os céticos moderados afirmam
a existência de limites ao conhecimento, impostos pela constituição
psicológica do sujeito e pelos condicionamentos de seu meio, o que os
leva a defender ocasionalmente posições probabilistas, fundamentadas
na dúvida. Os dogmáticos moderados defendem a possibilidade do
conhecimento, desde que se cumpram algumas condições.
Quanto aos fundamentos do saber, confrontam-se as posições empirista
e a racionalista. Para os filósofos de orientação empirista,
a base do conhecimento se encontra na realidade sensível. No extremo
oposto, os racionalistas defendem o caráter real das entidades conceituais.
Modernamente, o racionalismo identifica realidade e racionalidade, o que elimina
toda idéia que subordine o saber à experiência sensível.
O primeiro grande filósofo a abordar o estudo do conhecimento de maneira
sistemática foi o francês René Descartes, no século
XVII. Descartes tencionou descobrir um fundamento do conhecimento independente
de limites e hipóteses. Para ele, conhecer é partir de uma proposição
evidente, que se apóia numa intuição primária.
Formulou tal proposição na célebre sentença "penso,
logo existo".
Kant negou que a realidade possa ser explicada somente pelos conceitos e se
propôs determinar os limites e capacidades da razão. Embora existam
efetivamente juízos sintéticos a priori, que são a condição
necessária a toda compreensão da natureza, o âmbito do
conhecimento limita-se, no pensamento de Kant, ao reino da experiência.
Para o empirismo, que influiu significativamente nas primeiras formulações
de Kant, a realidade sensível é o fundamento para o conhecimento
não só de todas as entidades que possam impressionar nossos sentidos,
mas também das entidades não sensíveis, as idéias.
Segundo John Locke, representante moderado do empirismo inglês, as impressões
da sensibilidade formam apenas a base primária do conhecimento. David
Hume e alguns autores neopositivistas posteriores consideraram, ao contrário,
que as noções das ciências não são empíricas
nem conceituais, mas formais e, portanto, vazias de conhecimento.
Para alguns empiristas, existem outras experiências além da sensível,
como a experiência histórica, a experiência intelectual
etc. Para os precursores dessa formulação, Friedrich Nietzsche
e Wilhelm Dilthey, que dificilmente poderiam ser considerados empiristas, o
termo "experiência" é entendido em sentido mais amplo.
Dentro dessa linha do empirismo, os autores mais representativos são
o alemão Martin Heidegger e o francês Jean-Paul Sartre, que defenderam
posturas existencialistas; os americanos John Dewey e William James, de orientação
pragmática; e o espanhol José Ortega y Gasset, que manteve a
postura por ele chamada raciovitalismo, na qual vida e razão constituem
os dois pólos da concepção do mundo.
Conhecimento científico. A epistemologia foi entendida tradicionalmente
como teoria do conhecimento em geral. No século XX, no entanto, os filósofos
se interessaram principalmente por construir uma filosofia da ciência,
na suposição de que, ao formular teorias adequadas ao conhecimento
científico, poderiam avançar pela mesma via na solução
de problemas gnosiológicos mais gerais.
A elaboração de uma epistemologia desse tipo constituiu a preocupação
principal dos autores do Círculo de Viena, que foram o germe de todo
o movimento do empirismo ou positivismo lógico. Esses pensadores tentaram
construir um sistema unitário de saber e conhecimento, para o que se
requeria a unificação da linguagem e da metodologia das diferentes
ciências. A linguagem única deveria ser intersubjetiva -- o que
exige a utilização de convenções formais e de uma
semântica comum -- e universal, ou seja, qualquer proposição
deveria poder ser traduzida para ela.
O alemão Rudolf Carnap e o austríaco Otto Neurath, pertencentes
ao Círculo de Viena, consideraram que a física era essa linguagem,
razão pela qual sua teoria denomina-se fisicalismo. O fisicalismo foi
entendido mais adiante como um sistema de propriedades e relações
observáveis das coisas, o que equivale a dizer que todos os enunciados
sobre quaisquer fatos podem ser traduzidos em enunciados sobre estados ou processos
do mundo físico. Evidentemente, existem alguns conceitos, como essência
ou enteléquia, que não podem ser transpostos para o mundo físico
e, portanto, não são admissíveis na ciência. Ser
real significa sempre ver-se numa relação com a realidade dada.
As proposições metafísicas careceriam, assim, de significado.
É possível, no entanto, formular a hipótese da existência
de uma realidade independente de nossa experiência e indicar critérios
para sua transposição para a realidade sensível, já que
uma afirmação de existência implica enunciados perceptivos.
Não existe possibilidade de decisão a respeito de uma realidade
ou idealidade absolutas. Isso seria, segundo palavras de Carnap, um pseudoproblema.
Todas as formas epistemológicas da tradição filosófica
inspiradas em posições metafísicas -- o idealismo e o realismo
metafísico, o fenomenalismo, o solipsismo etc. -- estariam assim fora
do âmbito do conhecimento empírico, uma vez que tentam responder
a uma pergunta impossível.
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