Editor: Wolfram
da Cunha Ramos
ESTADO DE ALAGOAS
PODER JUDICIÁRIO
8a. VARA CRIMINAL DE MACEIÓ
2º TRIBUNAL DO JÚRI
Inquérito Policial N.º: 01/96
D E S P A C H O
1. Trata-se de Inquérito Policial
destinado a apurar a morte de Paulo César Farias e Suzana Marcolino
da Silva, em que a ilustre representante do Ministério Público
requer, entre outros pedidos, a nomeação do Dr. George Samuel
Sanguinetti Fellows como perito.
2. Em promoção de fls. 1460 usque 1466
a douta promotora desenvolve raciocínio ora discordando do trabalho
já realizado pelos peritos nomeados pela autoridade policial, ora
elogiando a realização do mesmo, chegando a afirmar expressamente
que "não comunga da convicção do Dr. Delegado... mas
se por um lado não está plenamente convencida da interpretação
dos fatos dada nos presentes autos, por outro lado também não
a rejeita, já que indícios existem, e muitos, em favor desta
tese".
3. Em primeiro plano, convém registrar a paleolítica
situação da lei processual vigente respeitante ao Inquérito
Policial. Por descaso do Poder Legislativo mantemos ainda uma legislação
ultrapassada, inquisitorial e fadada ao descrédito. A fase pré-processual
como é conhecida, embora considerada mero procedimento informativo
e não ato de jurisdição, reveste-se de fundamental
importância. A apuração inicial da infração
ou, por um processo de metonímia, do crime, fica a cargo no Brasil
da chamada policia judiciária. Os exames iniciais, os quais muitas
vezes, por razões óbvias, não mais podem ser realizados,
a primeira oitiva da prova testemunhal, e todos os acontecimentos que imediatamente
seguem a consumação da infração penal, são
de responsabilidade desta polícia que, não raro, comete abusos
e, em geral, não tem preparo suficiente para a condução
da "instrução" preliminar.
4. Não fosse o bastante, a instituição
policial, como de resto todo aparato do sistema penal tem sido tratado
de maneira indiferente pelos governantes, os quais, ou por incompetência,
ou por indiferença, ou absolutamente porque não lhes traz
dividendos políticos, nenhuma política empreenderam neste
sentido. Talvez porque acreditem sinceramente que os crimes são
praticados por pobres, favelados e analfabetos. Estes sim combinam mais
com a miopia das leis, com a inabilidade do Judiciário e congêneres,
com a violência policial, com a execração do cárcere.
Delitos e prisões não foram feitos para os apaniguados, tais
pessoas, a "consciência" popular já sabe, permanecem incólumes.
As penitenciárias e os crimes foram construídos para pobres
e discriminados. Todavia, para que nossos "doutos" estudiosos do direito,
não pensem que o que aqui escrevo é mera ilação,
ou discurso panfletário, trago à baila o resultado do censo
penitenciário feito pelo Ministério da Justiça, até
para satisfazer aos apreciadores do canto de sereia das pesquisas. A averiguação
do citado Ministério mostrou que 96,31% dos presos são do
sexo masculino, 87% não completaram o primeiro grau, 95% são
considerados pobres na forma da lei e, incrível, 85% não
têm condições de contratar um advogado. O próprio
Estado, através de seus órgãos, demonstra como o sistema
penal é seletivo, atinge pessoas de determinado grupamento social;
estigmatizante, imprime em tais pessoas um biótipo lombrosiano como
uma marca perene e identificadora e finalmente injusto por não possibilitar
a esses indivíduos sequer o acesso à justiça, ou não
lhes permitir a chamada defesa técnica.
5. Segue que também a coletividade é
co-responsável por tal situação. A apatia, a conivência,
o temor e o egoísmo têm cooperado bastante para o desleixo
das autoridades públicas.
6. Tecidas tais considerações que concebo
pertinentes, estranho que o Ministério Público, como dominus
litis, vale dizer titular da ação penal, mormente em
se tratando de ação pública incondicionada, e com
função fiscalizadora das atividades policiais (CF, art. 129,
VII), não tenha desde o início das investigações,
solicitado exames complementares, paralelos, ou mesmo outros exames com
outros peritos, para que fossem sanadas, ainda quando havia vestígios,
dúvidas porventura existentes, ou mesmo para que tais exames servissem
de contraponto aquele elaborado ou em elaboração. Até
porque nenhuma perícia vincula o parquet nem ao juiz. Neste
aspecto o artigo 182 do CPP é taxativo quando reza que "o juiz não
ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo,
no todo ou em parte".
7. O perito, na nossa legislação instrumental,
é um auxiliar do magistrado. "Não prova; ilumina a prova"
(TORNARGHI, Hélio, Curso de Processo Penal, São Paulo, Saraiva,
1991), ou como sustenta Manzini "o Juiz não fica adstrito aos exames
periciais, "sino también porque el perito aporta una contribución
original suya de observaciones y de juicios al objeto de la prueba" (apud
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, in Processo Penal, vol 3, São
Paulo, Saraiva, 1989).
8. Demais disto, estavam presentes à investigação
em tela a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público
federal e estadual e a polícia federal e não foram feitas,
naquela oportunidade, reclamações ou orientações,
vindo apenas mais tarde, quando os vestígios desapareciam, relatórios
burocratas apontando defeitos e suspeitas, criticando os trabalhos realizados.
A todos foi dada oportunidade de manifestação e pelo que
representam, ainda que não fosse, poderiam ter feito. Nenhuma medida
acautelatória foi solicitada em juízo. A presença
de tantas figuras não teve resultado prático nenhum ? Ficaram
as mesma expostas tão somente a luz dos refletores da imprensa ?
9. Considero errônea a forma como foi conduzido
o inquérito policial. A Autoridade Policial não deve nem
pode avaliar os autos do inquérito e sobre eles emitir juízo
de valor, mormente apreciações precipitadas como as que ocorreram
no presente caso, ainda que tenha razão. A opinio delicti
cabe com exclusividade ao Ministério Público, titular da
ação. A polícia judiciária deveria, pois, investigar
todas as possibilidades para o caso, não enunciando quaisquer avaliações,
estas ficam ao alvedrio de quem exerce o jus accusationis e do magistrado
no momento oportuno.
10. Não deve prosperar a argumentação
de que foi posta determinada condução dos trabalhos ou opinião
tendo em conta o resultado da perícia. A clássica lição
de Mittermaier é esclarecedora: "A força probante dos exames
dos peritos é resultado de presunções, que se encadeiam
e por efeito de uma presunção que reconheçamos nos
peritos conhecimentos especiais suficientes; que lhe atribuímos
o desejo leal de só achar a verdade ao cabo de suas indagações.
Porém é preciso que essas presunções sejam
corroboradas por todas as circunstâncias da causa, para que asserções
dos peritos possam produzir no juiz uma convicção suficiente;
de onde lhe vem o direito de examinar a fundo as suas conclusões.
E, se lembrarem de quantas vezes sucede que vêm eles obrigados a
tomar como regra leis científicas muito e poderosamente contestadas,
como ponto de partida experiências onde o erro tão bem se
insinua, e de que, desde então, e em todos estes casos, não
é seu juízo outra coisa mais de que a expressão de
suas opiniões pessoais; cada vez mais se convenceram desta verdade
- que o exame dos peritos, como tantas outras provas, repousa em um encadeamento
de presunções" (MITTERMAIER, C. J. A. Tratado da Prova em
Matéria Criminal, trad. H.W. Heinrich, São Paulo, Bookseler,
1996).
11. Cristalinamente determina o Código de
Processo Penal, em seu artigo 279, II, verbis: Art. 279 - Não poderão
ser peritos I - ... II - os que tiverem prestado depoimento no processo
ou opinado anteriormente sobre o objeto da perícia. (Grifei).
12. A jurisprudência pátria já
decidiu sobre o assunto: "O art. 279, II, do CPP, é taxativo ao
dispor que não podem ser peritos ‘os que tiverem prestado depoimento
no processo ou opinado anteriormente sobre o objeto da perícia’.
É norma cogente de ordem processual que trata dos impedimentos dos
peritos." (STJ, Rel. Min. Pedro Acioli, HC. 961/RJ, DJ de 26.4.1996, Renpac).
13. É importante salientar que tal regime
não aplica-se somente aos peritos oficiais. Consoante a regra do
artigo 275 do CPP, o perito, ainda quando não oficial, estará
sujeito à disciplina judiciária. Não é outra
a orientação da Excelsa Corte: "Estão sujeitos à
disciplina judiciária, dada a sua condição de auxiliares
do juízo. No processo penal não há peritos particulares,
como no processo civil, nem assistente técnico" (STF, RTJ 115/714,
apud JESUS, Damásio E. de, Código Processo Penal Anotado,
1ª edição em CD-ROM, Saraiva, 1995).
14. O médico e professor George Sanguinetti
emitiu em diversas ocasiões sua opinião sobre o objeto da
perícia, constando inclusive nos autos (fls. 1469 usque 1483) manifestações
de sua lavra, isto sem contar com os diversos comentários e entrevistas
divulgadas pela imprensa nacional, sendo público e notório
tais fatos (non probandum factum notorium).
15. Embora o Ministério Público não
possa nomear peritos, por força da regra constante no artigo 276
do CPP, nada obsta que o mesmo solicite estudos e pareceres de quem quer
que seja, sem incidir os impedimentos constantes no artigo 279 do diploma
referido. O parquet é, e não deve se acanhar de tal
mister, o responsável maior pela carreação de provas
no exercício do jus accusationis.
16. Considero, pois, inadequado o pedido de nomeação
do prof. Sanguinetti como perito. Será que a representante ministerial
desconhece a regra insculpida no artigo 279 ? Porque, como titular da ação
penal (CF, art. 129, I) não requisitou estudos e pareceres a quem
quer que fosse ? Mesmo ao médico em questão ?
17. Mas o Judiciário não se furtará
ao pedido em tela. A sociedade exige ( e aí com acerto) resposta
rápida em casos tais. Em um país afogado pelo desrespeito
as Leis, pela impunidade generalizada, máxime nas classes mais abastadas
(95% da população carcerária do Brasil, como já
mencionado, é paupérrima), a confiança nos poderes
constituídos é quase nenhuma e a resposta do Judiciário
tem que ser dada no dia a dia, na práxis, sobretudo quando for solicitado
e, evidente, o caso exigir.
18. O princípio da verdade material, ordenador
do dever de investigar a verdade real, ou seja, procurar saber como os
fatos aconteceram na realidade, exclui os limites artificiais, as ficções
e presunções comuns no cível face a natureza pública
do interesse penal. E o juiz, como observou Vélez Mariconde, "aparece
como titular de um poder autônomo de investigação,
isto é, tem o poder de investigar de ofício a verdade dos
fatos, apesar da inatividade do Promotor de Justiça e da parte contrária,
não só durante a instrução, sino también,
en forma excepcional, durante el juicio. És un celoso guradián
de la verdad". (apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, in Processo Penal,
vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1984). ]
19. Ex Positis :
20. Considerando o acima exposto e estando os acontecimentos
na fase pré-processual, DEFIRO, EM PARTE, O REQUERIDO PELO M.P.
21. Assim, AUTORIZO que o Dr. George Samuel Sanguinetti
Fellows proceda, todo e qualquer estudo necessário a sua manifestação
técnica, dispondo para tanto do material existente, podendo contar
com auxílio de quem entender necessário ficando vinculado
a Promotora de Justiça, a qual poderá requisitar e solicitar
diretamente ao mesmo o que inferir cabível para formação
da opinio delicti, contando também a representante do Ministério
Público com a colaboração dos peritos oficiais e da
polícia judiciária, afinal o parquet é o dono da ação
penal.
22. Oficie-se ao Diretor da Polícia Federal,
Dr. Vicente Chelotti, requisitando todas as informações disponíveis
a respeito de Paulo César Farias e sua suposta ligação
com a máfia italiana.
23. Oficie-se ao Comando da Polícia Militar
de Alagoas, comunicando a presente decisão, em face do professor
Sanguinetti ser oficial médico da corporação, bem
assim requisitando reforço policial junto ao Fórum Criminal
de Maceió onde se acham os autos do Inquérito.
24. Intime-se o Ministério Público.
25. Publique-se na íntegra o presente despacho
no Diário Oficial do Estado. 26. CUMPRA-SE.
Maceió, 18 de março de 1997.
Dr. Alberto Jorge
Correia de Barros Lima
JUIZ DE DIREITO
Volta
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