Principal

DOUTRINA CATÓLICA

Reportagem de VEJA -- O viking de Deus Karol Wojtyla

O papa polonês que conquistou Roma e passou as fronteiras do catolicismo comanda dentro da Igreja a renascença da disciplina

2 de julho de 1980 -- Marcos Sá Corrêa, de Roma

Não existe, neste mundo, popularidade como a de Karol Wojtyla. Ele é o avesso de todas as modas internacionais, do consumismo ao esquerdismo, e no entanto está na moda, urbi et orbe, desde sua primeira bênção como papa, em outubro de 1978. Aonde vai, reboca multidões, às vezes antípodas - na França, na Irlanda, na Polônia, nos Estados Unidos, na África ou na América Latina. Em Roma, passa toda semana pelo vestibular de comunicação de massa das audiências públicas, uma rotina do papado a que ele deu a medida espetacular de seu pontificado.

Pio XII escondia as audiências em salas internas do Vaticano. Paulo VI pretendeu acomodá-las num auditório moderno, projeto do arquiteto Luigi Nervi, que previu enchentes de até 7.000 pessoas mas não previu o fenômeno Wojtyla. Há mais de ano e meio a sala Nervi transbordou e, cada quarta-feira, às 5 e meia da tarde, é tal a quantidade de gente para ver o novo papa que se ocupou, sem a menor cerimônia, o cenário renascentista da praça São Pedro.

Neste começo de verão romano, pelas contas da Cúria, que é prudente em contas, há sempre - entre fiéis, romeiros poloneses, doentes em caravanas e os rebanhos tangidos por agências de viagens - pelo menos 50.000 espectadores para assegurar a infalibilidade desse show semanal de liderança, que a imprensa italiana, inspirada no filme de John Travolta ainda em cartaz na via Veneto, batizou como "A febre das tardes de quarta-feira".

É como se o presidente Jimmy Carter enfrentasse, semanalmente, uma eleição primária na Geórgia. As audiências públicas de João Paulo II são mais do, que uma grande festa religiosa - são ao mesmo tempo o culto pagão de uma estrela que não brilha só para os católicos. Combina excitação de comício, onde podem aparecer faixas e cartazes celebrando a nova invasão de Roma por "Wojtyla, o Viking de Deus" com a fraternidade desinibida dos festivais de rock, quando no fundo do mar de cabeças moças começam a escalar os ombros dos companheiros para enxergar o palanque do Sumo Pontifice. No fim do ano passado, com o recato possível nas circunstâncias, a Polygram lançou na Itália o hino profano desse acontecimento. É um compacto em que "Freddy e Sua Banda Sistina" apresentam uma Wojtyla Disco Dance: "Ele é legal / ele é humano / o novo papa / no Vaticano".

Os costumes mudaram no Vaticano e o maior sinal é a própria arquitetura da praça São Pedro. 0 conjunto de mármore travertido que Alexandre VII encomendou a Bernini em 1655, Sixto V em 1586 espetou com o obelisco de Nero e Júlio II coroou com o domo de Michelangelangelo, ganhou de João Paulo II uma espécie de curral. Uma heresia, de acordo com os arquitetos romanos. Porém, o cercado de madeira que retalha a praça em auditórios tornou-se indispensável às audiências de quarta-feira. É preciso abrir alas na multidão para o jipe branco do papa, o sucessor da ancestral liteira.

No jipe, de pé, seguido por uma procissão de fotógrafos e cinegrafistas, João Paulo II sempre dá duas voltas completas na praça São Pedro antes de iniciar propriamente a audiência. Parece o ensaio geral de suas grandes viagens. Ele aperta milhares de mãos. Beija crianças. Consola doentes. Estimula religiosos. Canta com uma voz que sempre sobe alguns decibéis acima do coro. E discursa com a segurança que aprisiona os auditórios até naquilo que eles não querem ouvir. Semanas atrás, na praça São Pedro lotada de turistas nórdicos, escolheu como tema "A Vergonha entre o Homem e a Mulher".

O estilo de Wojtyla, que ainda não parou de surpreender a Cúria e assombrar os 250 vaticanistas da sala de Imprensa da Santa Sé, na prática já explodiu o protocolo ao redor do trono de São Pedro. Na década de 50, para passear no seu palácio de verão em Castelgandolfo, nas vizinhanças de Roma, Pio XII exigia jardins indevassáveis. João Paulo II abriu os portões da residência e, na temporada, centenas de jovens costumam invadi-la para cantar e dançar dentro dos muros. Às vezes, o papa chega, acende uma fogueira (com as mãos treinadas de guia de excursionistas na Polônia) e entra na roda. "Nunca vi coisa igual", espanta-se o coronel Franz Pfyffer Altischoen, comandante da Guarda Suíça. "0 papa dançando com moças de blue-jeans!"

Motivo de espanto não falta. 0 papa ganhou de católicos americanos uma piscina na Villa Barberini, também em Castelgandolfo, e agora nada no verão. Usa tênis. Tem sempre convidados à mesa. Faz almoços de trabalho com os párocos de Roma. Fala na primeira pessoa do singular - "eu, o papa" -, abandonando o plural majestático, o "nós" que Paulo VI ainda empregava, embora com timidez. Reza missa cada manhã, como todo papa, mas, como papa nenhum antes dele, começa o expediente com a leitura dos jornais comunistas L'Unità e Paese Sera. Ele mesmo contou isso aos jornalistas Aldo Biscardi e Luca Liguori, cujo livro "Il Papa dai Volto Umano" tem uma atração inédita: dois capítulos por João Paulo II.

De um papa tão exposto é razoável pensar, como de resto se pensa, que na intimidade do Vaticano sua influência esteja roída pelos cardeais, maciçamente tradicionalistas em suas atitudes, que governam a Igreja. João Paulo II contudo, assumiu suas funções com apetite de atleta e, pouco depois da eleição, quando a Cúria romana percebeu, ele já ia longe na redação da encíclica "Redemptor Hominis", sem qualquer consulta às congregações. O papa produziu o documento de próprio punho - em polonês, para o desespero dos encarregados de vertê-la depois para o latim, pois havia modernismos intraduzíveis -, cantando enquanto escrevia. E não é um texto simples. Começa com um verdadeiro lead teológico: "0 redentor dos homens, Jesus Cristo, é o centro do Cosmo e da História". Nas 100 páginas seguintes, sustentam impressionados os especialistas, João Paulo II nada menos que revolucionou a visão antropológica da Igreja. É ela que está a serviço do homem, e não o contrário. Funções de remota tradição ressuscitaram depois de outubro de 1978. Tecnicamente, o papa é o bispo de Roma. João Paulo II, ao contrário dos antecessores, visita toda semana uma paróquia de sua diocese. Às vezes, de helicóptero.

O papa é igualmente o chefe universal da Igreja. João Paulo II está correndo o mundo. Nos últimos tempos, anda estudando chinês e se especula que estaria embalando o projeto de uma viagem à China. Refém da Cúria, portanto, ele não é. Escapou a um perigo do cargo que, tudo indica, foi fatal a João Paulo I. Agora mesmo está às voltas com a gestão financeira do Vaticano - que é sigilosa até para ele, o papa. Quer abrir as contas, que incluem um modesto déficit anual de 17 bilhões de liras, cerca de 20 milhões de dólares, e investimentos tão intrincados que, logo depois da encíclica "Hummanae Vitae", descobriu-se que a Santa Sé tinha participaçao acionaria numa indústria química, a Serono, fabricante, entre outros produtos, de pílulas anticoncepcionais.

A biografia de Wojtyla é um filão editorial Em Roma, há cerca de quarenta títulos sobre este papa nas livrarias católicas da via della Conciliazione. Foi ator, operário, poeta, dramaturgo, filosófo, com seis livros e duas teses de doutoramento publicados, desportista e soldado de sorte: terminou o tiro de guerra no dia 31 de agosto de 1939. Em 1º de setembro a Polônia foi ocupada pelos nazistas.

Melhor, porém, é a maneira como a experiência múltipla de Wojtyla se arrumou na bagagem de João Paulo II - um caso singular de pontífice que tem passado pessoal, quando a praxe da Santa Sé era mostrar os papas como brotações da história coletiva da Igreja. Não houve maior correria, no Vaticano, quando a imprensa se pós à procura das pistas de uma suposta paixão de sua juventude, a atriz polonesa Halina.

Sua imagem atual não esconde, antes realça, as encarnações anteriores. João Paulo II fez teatro com um professor de dicção e empostação, Mieczyslaw Kotlarczyk, e isso transparece em seus inumeráveis discursos - 25 só na última viagem, de três dias, à França. A companhia de amadores de sua juventude - o grupo "rapsódíco" - queria o máximo de expressão corporal com o mínimo de equipamento cênico. João Paulo II introduziu no Vaticano o modo de abençoar com as mãos espalmadas e os braços estendidos - "uma grande cruz viva", compara o vaticanista Vittorio Gorreso -, abolindo velho gesto hierático - um aceno do trono de Pedro com os dedos indicador e médio. É como se só agora, com a bênção à Wojtyla, os retratos oficiais do Vaticano tivessem finalmente passado o gótico, estreando a renascença nas fotografias do papa.

0 padre polonês Mieczyslaw Malinski, amigo pessoal de Wojtyla, comenta no livro "Il Mio Vecchio Amico Karol" que João Paulo II não fala como os outros papas. Eles aspergiam sermões impessoais sobre a cristandade. Wojtyla se dirige quase sempre a ouvintes determinados. E isso Malinski acha que acontece porque o papa debate com intelectuais, escritores, operários, teólogos e clérigos perseguidos por regimes hostis com a postura de quem já passou por essas coisas. "É um papa moderno culturalmente e humanamente", diz o teólogo Giovanni Genaro. "João XXIII era humanamente moderno, mas culturalmente antigo."

João Paulo II tem conversa para todo tipo de interlocutor. Na Itália, diante de platéias sindicais desconfiadas, fala como ex-operário da Cracóvia. "Uma coisa que me deixa intrigado em relação a este papa", confessa o padre Alexandre Pastor, da Universidade Gregoriana de Roma, "é que tenho visto bispos das mais opostas correntes serem recebidos por ele em audiência e saírem do encontro dizendo-se muito satisfeitos. No entanto, ele não é pessoa de esconder o que pensa." Endossa o marxista Giulio Carlo Argan, ex-prefeito de Roma: "No encontro com João Paulo II, tive imediatamente a impressão de me encontrar diante de uma forte personalidade política: grande cordialidade, nenhum formalismo, discurso direto e aberto. Nas manifestações de simpatia, foi além do protocolo". Na Itália, pela primeira vez desde o fim de Mussolini, passou-se esse mês de junho por uma campanha eleitoral sem que os partidos de esquerda debitassem ao Vaticano a menor pressão em favor da Democracia Cristã. Foi-se o tempo das excomunhões para os católicos que votarem no Partido Comunista Italiano. "Me perguntam", ele declarou a jornalistas, "como eu, o papa, considero aqueles católicos que militam nas fileiras da esquerda, em particular nas fileiras dos comunistas. E eu respondo: como católicos, seguramente, porque católicos eles serão enquanto não quiserem abandonar a Igreja, mesmo se a sua escolha política nem sempre se pode dizer coerente com os princípios da moral e da fé."

Eis, para quem acha que já tinha visto tudo, um papa que o Partido Comunista Italiano considera tratável e a esquerda católica acha politicamente ameaçador. O nó não foi, certamente, João Paulo II quem atou. Ele sabe o que é ser padre em regimes hostis ao clero, mesmo porque foi padre em duas ditaduras - uma de direita, na ocupação alemã da Polônia, outra de esquerda, vinda com as tropas de libertação soviéticas que sua geração ajudou a recepcionar na Cracóvia. Na primeira teve de estudar em seminário clandestino. Na segunda foi bispo num regime que prendia bispos. Em ambas provou um fel que o clero latino-americano praticamente não conhece: na Polônia, a condição de padre não confere qualquer imunidade política, piora a situação.

"Tenho visto", o papa declarou aos jornalistas Aldo Biscari e Luca Liguori, quando a imprensa ainda ruminava os resultados da conferência episcopal de Puebla, "as pessoas tentarem politizar o significado do grande encontro de que participei na América Latina. Não me espanta, porque eu creio que a vida se tornou ela mesma politizada, porque se difundiu a tendência a politizar todos os problemas, os religiosos e os morais inclusive. Mas devo dizer que a Igreja tem objetivos mais vivos e finalidades mais vastas." E não é de hoje que ele pensa isso. Em 1976, já "papável", esteve nos Estados Unidos para um congresso eucarístico e recusou, alegando que receberia interpretações políticas, o convite para um encontro com o ex-presidente Gerald Ford. E até hoje não se deu ao trabalho de conhecer direito os cardeais da Democracia Cristã italiana.

O ex-primeiro-ministro Giulio Andreotti, fundador da DC, tem uma teoria a respeito: "Quem ainda não entendeu, depois de mais de um ano e meio, que a preocupação religiosa é, mais que dominante, exclusiva, vai perder o rumo deste pontificado. Papa Wojtyla, polonês puro-sangue, não pode ser interpretado à mesma luz de Brzezinsky, de Begin e de outros expoentes políticos da diáspora daquele povo". Andreotti, que durante trinta anos entrava e saía à vontade do Vaticano deve ter feito essa descoberta na primeira recepção de João Paulo II. 0 papa deu mais tempo e mais atenção ao presidente Sandro Pertini, um socialista, que ao primeiro-ministro democrata-cristão.

Andreotti concluiu que "nenhum fim terreno preocupa ou ocupa" Wojtyla. Às vezes, dão até a impressão de que o aborrecem: "Não tenhamos a ilusão de servir ao Evangelho se temos de diluir nosso carisma sacerdotal num exagerado interesse pelo vasto campo dos problemas temporais, se desejamos laicizar o nosso modo de viver e sentir, se cancelamos até os sinais exteriores de nossa vocação sacerdotal" - pregou o papa aos sacerdotes mimetizados em cidadãos comuns. "Não tenham vergonha de ser padres", insistiu em outra ocasião, com mais contundência psicológica. E, quando o padre brasileiro João Batista Libânio apresentou a teoria de que as comunidades de base eram o embrião de um futuro partido popular, o papa disparou contra a idéia num documento - "Evangeli Nutiandi 38" - que ressalvava: "Podem ser comunidades de base, mas não comunidades eclesiásticas de base".

Wojtyla está conseguindo, com a pura transfusão de seu charme, reavivar a auto-estima do padre de extração tradicional. Na Polônia os seminários, há dois anos, fecham antes do tempo as inscrições, por excesso de candidatos. E a Cúria detectou em muitos países sintomas de renovação do interesse pela carreira eclesiástica. Nem por isso tem intenção de expulsar do templo os esquerdistas - como temem os próprios esquerdistas e sonham tantos governos, o brasileiro entre eles. Cassou-lhes só o mandato de modelo do padre pós-conciliar. João Paulo II também não vai condenar, inteiramente, a interferência da Igreja na última greve do ABC. Ele próprio, em 1976, interferiu como cardeal arcebispo da Cracóvia nas greves de Radon e Ursuss, para negociar a anistia dos operários varridos dos empregos, depois que a greve tinha seguido seu curso.

É conservador, sim. Seu pontificado deixou 6.000 padres esperando dispensa do celibato para casar (um deles, na Itália, com filho chegando), congelou a campanha para a ordenação de mulheres e estacionou, nas decisões, do Concílio Vaticano II, de quinze anos atrás, o surto de aggiornamento da Igreja. "Assim, papa Wojtyla parece ter definido a linha geral do Vaticano", concluiu um balanço da revista "Critica Sociale", do Partido Socialista Italiano. "Nenhuma interferência de caráter político fora da Igreja, e ao mesmo tempo o bloqueio de qualquer movimento interno ou externo que possa modificar seus regulamentos." Mas, antes que a era pós-conciliar desenvolvesse afinidades entre uma parte do clero e as esquerdas laicas, era um dogma do esquerdismo o princípio de que a Igreja não devia se imiscuir no governo do mundo. Agora surge em Roma um papa alheio à política - e a esquerda berra como se sentisse na carne o calor das fogueiras da Inquisição. Foi assim com a notícia de que a Congregação para a Doutrina da Fé, no ano passado, estava processando os teólogos Hans Küng, suíço, francamente dissidente, e Leonardo Boff, brasileiro, um dos pais da Teologia da Libertação.

Nos dois casos, tratava-se de depurar divergências sobre dogmas tão impenetráveis que, sem dúvida, a maioria dos que berravam não poderia explicar qual era a discussão. Porque uma coisa é inegável: para se incomodar com as providências conservadoras de João Paulo II é preciso submergir nas questões internas da Igreja. Senão, é melhor fazer como as 50.000 pessoas, católicas ou não, que toda quarta~feira disputam lugar na praça São Pedro apinhada - e aproveitam ao ar livre a pura alegria contida no espetáculo de uma liderança como há muito tempo o mundo não via.

Hosted by www.Geocities.ws

1