DOUTRINA CATÓLICA

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PERGUNTE E RESPONDEREMOS SOBRE O ABORTO

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O dr. Bernard Nathanson, médico ginecologista e obstetra de Nova Iorque (EUA), durante muitos anos, foi chamado de "O Rei do Aborto". De fato, como ele mesmo declara, foi responsável por mais de 75.000 abortos, tendo dirigido, a partir de 1971, a maior clínica abortista do mundo onde, em apenas dois anos (1970-1972), foram realizados 60.000 abortos. Antes, disso, em 1969, fundara a Liga Nacional de Direito ao Aborto (NADAL) e participara de diversos eventos sempre defendendo sua posição pró-aborto.

A auto-apresentação do dr. Bernard Nathanson feita no Congresso Teológico-Pastoral do Riocentro (Rio de Janeiro-RJ), aos 03.10.1997, conforme se encontra publicado na revista "Pergunte e Responderemos" nº 429 (fev/98) e, a seguir, outras declarações do mesmo médico, publicadas na revista "Pergunte e Responderemos" nº 424 (set/97).

"Eis um testemunho e não uma apresentação sobre o aborto. Desculpas antecipadas, pois poderia parecer uma apresentação muito pessoal. Nasci na fé judia e de tradição hebraica. Por uma série de circunstâncias, que não menciono, perdi a fé completamente em minha infância e adolescência, a ponto de chegar a ser chamado de judeu ateu. Então, sem moral centrada em Deus, e impulsionado por firme dedicação a uma situação relativista e também uma moral relativista ou de situação, coloquei-me, imediatamente, a serviço do pior e mais completo dos males: o ataque à vida. Fui um dos organizadores do NARAL, nos Estados Unidos, que era um grupo cabalístico poderoso para lutar contra todas as leis que se opunham ao aborto. Percorri os Estados Unidos por inteiro e estive em outros países, nesta cruzada a favor do aborto. Simultaneamente fui Diretor da maior Clínica de abortos do mundo ocidental e durante dois anos fui totalmente responsável por 75.000 (setenta e cinco mil) abortos. Falo-lhes, agora, de minha conversão à vida, médica e cientificamente, sem dúvida, uma conversão incompleta. Médica e cientificamente minha conversão à vida deu-se, de maneira clara, pela minha compreensão cada vez maior da vida das pessoas e, sobretudo, da vida e do ciclo da vida desse pequeno ser humano, tão pequeno e vulnerável que se encontra no ventre materno. No início dos anos 70, havia uma grande quantidade de informações que me foram convencendo de que se tratava de um ser humano em toda a extensão da palavra. Era alguém que tinha uma moral, uma dignidade, e que necessitava de proteção e intervenção. Contudo, não foi tanto a informação científica, mas a mão de Deus em mim, que me fez compreender essa informação. Eis o crucial; não apenas o acúmulo de informações, mas a capacidade de assumi-las e trabalhar com perspectivas novas, que alguns chamaram uma troca de paradigmas, de opinião, isto se deve a Deus, que me deu tal capacidade.

Com o passar do tempo, na década de 70, todas as razões sociais e médicas para o aborto, eu não as aceitava mais. Atualmente, creio que não há razões sociais, econômicas, médicas e psicológicas para o aborto; não há razão alguma. Tive, então, oportunidade de compreender minha missão como médico e doutor, através da leitura da Encíclica do Papa João Paulo II1 em que afirma que a missão de gerar a vida não deve estar exposta à vontade arbitrária do homem. Devem-se reconhecer os limites invioláveis do homem quanto ao seu corpo, que a ninguém é permitido ultrapassar. Não se podem suprimir tais limites, por respeito à integridade do organismo humano e suas funções de acordo com os princípios anteriormente mencionados e conforme a compreensão correta do princípio da totalidade ilustrado pelo Papa Pio XII. Minha conversão científica e médica à vida, moralmente incompleta, exigia dois elementos: Converter-me-ia em defensor da vida, publicamente, da mesma forma como antes participava de sua destruição.

A busca da fé, em que poderia basear mais firmemente minhas convicções em favor da vida.

Não basta compreender que não devemos matar; sou contra toda forma de assassinato, pena de morte e guerra. Não matar é um mandamento, dom precioso de Deus; a sua criação perfeita é o homem.

Tornei-me porta-voz da defesa da vida; mas apresento-me aos senhores com o sangue de 75.000 (setenta e cinco mil) vidas inocentes em minhas mãos. Uma destas vidas é a de meu próprio filho.

Falhei também como esposo com vários casamentos falidos; falhei como pai, como médico. Lembro-me agora da passagem de São Mateus: "Ouviram-se em Ramá gritos, soluços e lamentos. Raquel não quer consolar-se porque chora seus filhos mortos". E como diz o Eclesiastes: "Nada é útil, tudo é vaidade". Não podia suportar este peso moral intolerável, inimaginável, e continuar vivendo; cheguei a pensar seriamente no suicídio. Uma vez mais, porém, a mão de Deus ajudou-me, e um sacerdote amigo2 ajudou-me a sair do nada. Ele perguntou-me se gostaria de conversar com ele e eu aceitei. Nossas conversas duraram 5 (cinco) anos e me levaram a compreender que no sofrimento e no amor infinito de Cristo encontraria o que estava buscando: a fé, o perdão, a absolvição e a vida eterna.

A fé cristã me mostrou a posição primordial da morte no mundo dos homens e o ápice da perfeição humana: amar infinitamente. Mostrou-me também que o mundo não é como alguns cientistas seculares dizem: acontecimento de uma oportunidade insignificante; não somos uma espécie como segundo pensamento num mundo vazio. Os cientistas, sem dúvida, trabalham com a razão, mas esta deve aperfeiçoar-se com o auxílio da fé3. Sem Deus como seu centro, a teoria científica mais sofisticada, mais abstrata, em minha opinião, é nihilismo inigualável na história. Inclusive, o grande filósofo Bersgon, ao morrer, disse: "Todo bem que ocorre no mundo, ocorre desde que Cristo se fez presente nele". Assim creio.

A mão de Deus trabalha, uma vez mais, de maneira misteriosa. Quando na Universidade de Montreal, no Canadá, estudava Medicina, no fim dos anos 40, tinha como professor de psiquiatria Carl Stern, judeu de Viena, emigrado para o Canadá. Tornamo-nos bons amigos; eu era um de seus estudantes favoritos e tentou convencer-me a estudar Psiquiatria. Não sabia, entretanto, que o dr. Stern se estava convertendo ao Catolicismo, quando o conheci. Alguns anos depois, deparei-me com um livro que ele escreveu naquela época, em que falava de sua conversão. O último capítulo desse livro é uma longa carta ao seu irmão que estava em Israel. Seu irmão continuava sionista e Stern queria explicar-lhe sua conversão. A carta é longa, mas leio a última passagem, que fala de suas convicções. Diz ele: "Nunca esquecerei a manhã de minha Primeira Comunhão; como em qualquer outra manhã de dezembro, entrei na igrreja quando fora estava escuro. No interior havia muita gente como soi acontecer em qualquer igreja católica, tanto na periferia como no centro de uma grande cidade, homens e mulheres vindos de casas pequenas da área comercial. Alguns vinham à Missa depois de terem trabalhado à tarde. Nossas vidas, de minha esposa, de meus amigos, chegaram a um ponto convergente à daqueles desconhecidos que nos rodeavam; foi como se aí estivessem nossos pais e a Família Cohen, os judeus da Sinagoga de Canan, Jack Moretain e Dorothy Day e as piedosas solteironas de nossa juventude em Viena. Não havia dúvida alguma de que para Ele corríamos afastando-nos d'Ele. Porém, durante todo este tempo, Ele estava presente no centro de tudo. Permitam-me concluir meu testemunho dizendo-lhes: o amor é o poder mais duradouro deste mundo. Esta força criadora tão formosamente exemplificada na vida de Cristo, é o instrumento mais poderoso de que dispomos para buscar a humanidade, a paz e a justiça."

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A Igreja foi durante séculos favorável ao Aborto?

D. Estevão Tavares Bettencourt (osb) - ( Revista Pergunte e Responderemos - nº 413 - out/96 )

Em síntese: A Igreja sempre foi contrária ao aborto, ou seja, ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Já no século I se encontra um testemunho deste repúdio na Didaqué. Os Concílios regionais, desde o de Elvira (início do século IV), foram impondo penas severas aos réus de aborto. O Direito Canônico hoje vigente, fazendo eco às diretrizes do passado, prevê a excomunhão latae sententiae para quem provoque o aborto (seguindo-se o efeito). Todavia até época recente os cientistas hesitaram sobre o momento em que tem início a vida humana: seria imediatamente após a concepção ou após a fecundação do óvulo? Ou haveria, conforme pensava Aristóteles, um intervalo (de 40 ou 80 dias) entre a concepção e a animação do feto?

A hesitação da ciência, bem compreensível, dada a falta de meios de pesquisa, fez que vários teólogos católicos julgassem com menos severidade a eliminação do feto antes do 40.º dia (no caso dos indivíduos masculinos) ou antes do 80.º dia (no caso dos indivíduos femininos). Note-se bem: sempre foi condenada a ocisão de uma criança; a hesitação versava apenas sobre a questão de saber se já existe verdadeiro ser humano desde o momento da concepção. Nos recentes debates públicos sobre o aborto tem sido considerada a posição da Igreja em termos que deixam interrogações na mente da sociedade brasileira. Entre outras coisas, diz-se que a Igreja não tem autoridade para impugnar o aborto, pois que ela o permitiu desde o século IV até o século XIX. A afirmação é realmente surpreendente e exige esclarecimentos e retificações. Encararemos, a seguir, o assunto, tratando primeiramente dos pronunciamentos oficiais da Igreja sobre o aborto através dos séculos; após o quê voltar-nos-emos para a questão do início da vida humana, que deixou dúvidas em escritores de todos os séculos até época recente.

1. Os Pronunciamentos da Igreja

Desde o século I manifesta-se na Igreja a consciência de que o aborto é pecaminoso. Assim, por exemplo, reza a Didaqué, o primeiro Catecismo cristão, datado de 90-100: · "Não matarás, não cometerás adultério... Não matarás criança por aborto nem criança já nascida" (2,2). · "O caminho da morte é... dos assassinos de crianças" (5,2). Na segunda metade do século III; o autor da Epístola a Diogneto observava: "Os cristãos casam-se como todos os homens; como todos, procriam, mas não rejeitam os filhos" (V,6). O autor da Epístola atribuída a S. Barnabé no século II e depois Tertuliano († 220 aproximadamente), S. Gregório de Nissa († após 394), São Basílio Magno († 379) fizeram eco aos escritores precedentes. A legislação da Igreja oficializou esse modo de pensar, estipulando sanções para o crime do aborto. Assim o Concílio de Ancira (hoje Ancara) na Ásia Menor em 314, cânon 20, menciona uma norma que os conciliares diziam ser antiga e segundo a qual as mulheres culpadas de aborto ficam excluídas das assembléias da Igreja até a morte; o Concílio atenuou o rigor dessa penalidade, reduzindo-a para dez anos: "As mulheres que fornicam e depois matam os seus filhos ou que procedem de tal modo que eliminem o fruto de seu útero, segundo uma lei antiga são afastadas da Igreja até o fim da sua vida. Todavia num trato mais humano determinamos que lhes sejam impostos dez anos de penitência segundo as etapas habituais" (Hardouin, Acta Conciliorum; Paris 1715, t. I, col. 279)1 Outros Concílios repetiram a condenação do aborto: o de Elvira (Espanha) em 313 aproximadamente, cânon 63; o de Lerida, em 524, cânon 2; o de Trullos ou Constantinopla, em 629, cânon 91; o de Worms em 869 cânon 35...

Em 29/10/1588, o Papa Sixto V publicou a Bula Effraenatam: referindo-se aos Concílios antigos, especialmente aos de Lerida e Constantinopla, condenou peremptoriamente qualquer tipo de aborto e impôs severas penas a quem o cometesse, penas que só poderiam ser absolvidas pela Santa Sé. Além disto, a Bula não distingue entre feto não animado e feto animado por alma intelectiva, distinção esta de que falaremos às p. 454-456 deste artigo e que na época parecia muito importante.

Tal Bula era rigorosa demais para poder ser observada, principalmente pelo fato de reservar à Santa Sé a absolvição das penas infligidas aos réus de aborto. Por isto foi substituída poucos anos depois pela Bula Sedes Apostolica de Gregório XIV, datada de 31/05/1591; este documento distingue entre feto animado e feto não animado por alma humana: o aborto de feto animado ou verdadeiramente humano seria punido com a excomunhão para os culpados, mas sem reserva da absolvição à Santa Sé; quanto ao aborto de feto não animado ou não humano, ficaria a questão como estava antes da Bula de Sixto V (seria passivo de sanção menos severa do que o aborto de feto animado). Como se vê, a questão da animação mediata ou imediata era ardente na época. Diante das posições extremadas que alguns autores professavam, o Papa Inocêncio XI condenou em 02/03/1679, como escandalosas e na prática perniciosas, as seguintes sentenças:

· "34. É lícito efetuar o aborto antes da animação para impedir que uma jovem grávida seja morta ou desonrada. 35. Parece provável que todo feto carece de alma racional enquanto está no seio materno; só é dotado de tal alma quando é dado à luz. Em conseqüência, deve-se dizer que nenhum aborto implica homicídio" (Denzinger-Schönmetzer, Enquirídio de Símbolos e Definições n. 2134s.).

Como se vê, o Papa não quis abonar a tese do aborto sob pretexto de que não afeta um ser humano propriamente dito. Embora não se soubesse com certeza no século XVII quando começa a vida humana, Inocêncio XI não se prevaleceu desta incerteza para legitimar a eliminação do feto contido no seio materno. No século XIX o Papa Pio IX renovou a condenação do aborto, sem distinguir animação mediata ou imediata: "Declaramos estar sujeitos a excomunhão latae sententiae (anexa diretamente ao crime) reservada aos Bispos ou Ordinários, os que praticam aborto com a eliminação do concepto" (Bula Apostolicae Sedis de 12/10/1869). Esta sentença categórica persistiu na Igreja até o Código de Direito Canônico atual, que prevê a excomunhão para o delito: "Cânon 1398. Quem provoca o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae".

Vê-se, pois, que a Igreja desde os seus primórdios se manifestou contrária ao morticínio de uma criança contida no seio materno. Existia, porém, para os teólogos a grave questão de saber quando começa a vida humana; a falta de conhecimentos genéticos adequados levava alguns a crer que, em determinadas circunstâncias, não havia verdadeira vida humana no seio materno. É o que passamos a examinar mais detidamente. 2. Animação mediata ou imediata?

Os seres vivos são compostos de um corpo organizado e um princípio vital (chamado anima, em latim). Animação, portanto, é o ato de se unirem o princípio vital (anima) e o corpo organizado. No homem, animação ocorre quando a alma (anima) é criada por Deus e infundida nos elementos materiais orgânicos, aptos a exercerem as funções da vida humana (que é vegetativa, sensitiva e intelectiva). Pergunta-se, pois, quando se dá a animação: logo por ocasião da fecundação do óvulo pelo espermatozóide? Tem-se então a animação imediata... Ou a certo intervalo após a fecundação? Tem-se assim a animação mediata. Vejamos como os pensadores responderam à questão. Na antigüidade pré-cristã somente o filósofo grego Aristóteles († 322 a.C.) tratou do assunto. O seu raciocínio não é claro, mas parece defender a animação mediata: o embrião humano teria primeiramente um princípio vital meramente vegetativo; depois seria animado por um princípio vital vegetativo e sensitivo, e só posteriormente por um princípio (anima) vegetativo, sensitivo e intelectivo ou por uma alma humana propriamente dita. Passemos agora aos pensadores cristãos, distinguindo gregos e latinos.

2.1. Os escritores gregos

A maioria destes era partidária da animação imediata. Foi principalmente S. Gregório de Nissa († após 394) quem marcou a tradição grega. Rejeitava a teoria da preexistência seja da alma, seja do corpo, e afirmava a origem simultânea de um e de outro elemento; desde o primeiro instante da existência do embrião, a alma encontra-se nele com todas as suas potencialidades, que se vão manifestando à medida que o corpo se desenvolve.

São Basílio Magno († 379), irmão de S. Gregório de Nissa, adotou o pensamento deste. Por isto considerava assassinos os que provocam o aborto de um feto.

São Máximo Confessor († 662) abraçou a mesma tese, fundamentando-se do seguinte modo: se o corpo existe antes de ter uma alma, é um corpo morto, pois todo vivente possui uma alma. Se preexiste à alma racional, tendo uma alma meramente vegetativa ou sensitiva, segue-se que o ser humano gera uma planta ou um animal irracional — o que é impossível, pois toda planta provém de outra planta e todo animal irracional nasce de outro animal irracional, e não do homem.

Entre os defensores da animação mediata, está Teodoreto de Ciro († 466 aproximadamente). Apela para o livro do Gênesis, onde lhe parece que Moisés propõe a formação do corpo humano primeiramente e só depois a infusão da alma humana (cf. Gn 2,7). É certo, porém, que entre os gregos prevaleceu a tese da animação imediata.

2.2 Os escritores latinos

Entre estes destaca-se Tertuliano († 220 aproximadamente). Era favorável à animação imediata, argumentando, porém, a partir de um princípio que lhe valeu a réplica dos pósteros. Com efeito; Tertuliano defendia a animação imediata, julgando que as almas dos genitores desprendiam de si uma semente (tradux) da qual se originaria a alma da prole; por conseguinte, juntamente com os óvulos e os espermatozóides, os genitores transmitiram sementes de alma humana. Esta doutrina, chamada traducianismo, não preservava devidamente a espiritualidade da alma, mas reduzia a psyché humana à materialidade. Por isto os escritores latinos, desejosos de ressaltar a espiritualidade da alma, puseram-se a combater o traducianismo e, com este, a doutrina da animação imediata. Afirmavam: a concepção é obra dos genitores, mas a animação é obra direta de Deus, que cria e infunde a alma humana. Para bem distinguir uma da outra, distanciaram-nas também cronologicamente: a animação se daria tempos após a concepção da criança.

O autor do livro "De spiritu et anima", falsamente atribuído a S. Agostinho († 430), afirmava que o corpo vive a vida vegetativa e cresce no seio materno antes de receber a alma intelectiva ou humana. Outro autor anônimo, que foi confundido com S. Agostinho, comparava a formação de cada ser humano à formação de Adão: Deus só daria a alma intelectiva ao corpo humano depois que este estivesse formado, como aconteceu no caso de Adão (Quaestiones ex Vetere Testamento c. XXIII). Cassiodoro († 580) raciocinava do mesmo modo e acrescentava o testemunho dos médicos que estabeleciam a animação do corpo humano no quadragésimo dias após a concepção (De anima c. VIII). Cassiodoro, porém, observava que, em assuntos tão obscuros, seria melhor confessar a própria ignorância do que falar com temeridade arriscada. Na Alta Idade Média a sentença da animação mediata foi reforçada pela difusão das obras de Aristóteles a partir do século XIII. S. Tomás de Aquino († 1274) a adotou com outros pensadores da época, estipulando a infusão da alma humana ou racional no 40.º dia para os indivíduos masculinos e no 80.º dia para os indivíduos femininos. Houve também aqueles que, seguindo uma insinuação do médico grego Hipócrates, estabeleciam o 30.º dia para o sexo masculino e o 40.º para o sexo feminino. A partir do século XIII, algumas vozes, principalmente dentre os médicos, começaram a se fazer ouvir contra a hipótese dos pensadores medievais, de modo que aos poucos foi predominando a sentença da animação imediata. A Genética contemporânea, com seus apurados estudos, só contribui para confirmar definitivamente esta noção científica. Ver o testemunho do Dr. Jérôme Lejeune em PR 305/1987, p.457-461. Os defensores da animação mediata apelaram para três textos bíblicos, cujo alcance nos compete agora considerar.

3. Três textos bíblicos

Vêm ao caso Êx 21,22s.; Lv 12,2-5 e Jó 10,9-12.

3.1 O texto de Êx 21,22s.

Segundo a tradução grega dos LXX, este texto supõe que um homem imprudente dê um golpe numa mulher grávida e provoque o aborto. Se a mulher morre ou se o fruto de seu ventre estava formado, a punição para o delinqüente será a morte ("morte por morte"). Se porém, a mulher não morre e seu fruto não estava formado, o réu pagará apenas uma multa. Este texto parece supor que existe feto formado, plenamente humano, e feto não formado, não plenamente humano. S. Agostinho e outros autores latinos (que usavam a Bíblia traduzida do grego para o latim) e gregos se apoiaram em tais versículos bíblicos para propugnar a animação mediata; cf. S. Agostinho, In Heptateuchum, II c. LXXX. Em resposta, deve-se observar que a tradução grega citada não corresponde ao texto original hebraico, nem às versões latina (da Vulgata), samaritana, síria, árabe. Eis o mais verossímil teor do texto segundo o original hebraico: "Se homens brigarem e ferirem mulher grávida, e forem causa de aborto sem maior dano, o culpado será obrigado a indenizar o que lhe exigir o marido da mulher, e pagará o que os árbitros determinarem. Mas, se houver dano grave, então dará vida por vida".

Esta lei quer dizer o seguinte: se o delinqüente provocar expulsão do feto, mas sem morte nem da mãe nem da criança, a punição será uma multa. Se, porém, houver morte ou da mãe ou da criança, o réu será condenado à morte. Como se vê, não há aí distinção entre feto formado e feto não formado. O próprio texto dos LXX, ao falar de "feto formado" e "feto não formado", não tem necessariamente em vista os períodos de pré-animação e de animação; pode apenas referir-se à fase em que o embrião ainda é quase indiferenciado e àquela em que já pode ser identificado como ser humano. Como quer que seja, só pode ser utilizado, no caso, o texto hebraico como instrumento de argumentação, e não o texto grego. 3.2. Os dizeres de Lv 12,2-5

A Lei de Moisés prescreve quarenta dias de purificação às mulheres que tenham dado à luz um menino, e oitenta dias no caso de terem gerado uma menina. — Ora esta lei nada tem que ver com períodos de formação do feto no seio materno; mas foi por numerosos autores antigos considerada como símbolo de fases de animação. Esta consideração, porém, nada prova, pois um símbolo não é demonstração nem prova.

3.3. As palavras de Jó 10,9-12

Eis os dizeres de Jó:

"Lembra-te de que me fizeste de barro, e agora me farás voltar ao pó? Não me derramaste como leite e me coalhaste como queijo? De pele e carne me revestiste, de ossos e de nervos me teceste. Deste a vida e o amor, a tua solicitude me guardou". Neste texto o autor sagrado menciona primeiramente a formação do corpo (pele, carne, ossos, nervos) e, depois, a entrega da vida como dom da misericórdia divina. Por conseguinte, a alma humana teria origem posterior ao corpo. Esta conclusão parece corroborada pelo paralelismo que o texto tece entre a formação do corpo de Jó e a do corpo de Adão, ambas partindo do barro, que só depois de plasmado recebeu a alma humana. Em resposta, notamos que o autor sagrado quer apenas referir a ordem que vai do menos importante (corpo) ao mais importante (princípio vital); não há aí sucessão cronológica de fases de formação do ser humano. De resto, sabemos que o autor sagrado não tencionava oferecer uma descrição científica dos fenômenos que ocorrem na origem de uma criatura, de modo que é despropositado querer deduzir de tais dizeres uma sentença de Genética ou de Embriologia. Adão e Jacó são comparados entre si não sob o aspecto geneticista ou biológico, mas, sim, na medida em que ambos são objeto da Providência Divina.

4. Conclusão Como se deduz das declarações dos Concílios e dos Papas atrás citados, a Igreja sempre foi contrária à ocisão de uma criança no seio materno. Acontece, porém, que não sabendo quando o feto se torna criança (ser humano) propriamente dita, os doutores antigos distinguiam a eliminação do feto antes do 40.º ou 80.º dia e o aborto propriamente dito. Não chegaram a legitimar ou aprovar aquela, mas julgaram que não podia ser considerada com tanto rigor como o aborto propriamente dito; veja-se a intervenção de Gregório XIV em 1591. Na verdade, a extração de um elemento não humano não pode ser tida como aborto. Os antigos estavam, pois, condicionados pelo seu insuficiente conhecimento de Genética, mas por certo não toleravam o morticínio de uma criança, por mais incômoda que parecesse aos pais. Hoje em dia tal condicionamento desapareceu, de modo que se pode com mais nitidez e firmeza repudiar o aborto desde a concepção no seio materno, qualquer que seja a fase de evolução do feto.

A propósito ver:

· BEUGNET, A., Avortement, em Dictionnaire de Théologie Catholique II/2, cols. 2644-2652.

· CHOLLET, A., Animation, em Dictionnaire de Théologie Catholique I/2, cols. 1306-1320.

· CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS, A Igreja e o Aborto. Ed. Paulinas, 1972. · HÄRING, B., Ética Médica. Roma 1973.

· __________, Medicina e Manipulação. Ed. Paulinas 1977. · VARGA, ANDREW, Problemas de Bioética. Unisinos, São Leopoldo 1982.

· VIDAL, MARCIANO, Ética de Atitudes, vol. 2º, Ed. Santuário, Aparecida 1979.

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1. "De mulieribus quae fornicantur et partus suos necant, vel quae agunt secum ut utero conceptos excutiant, antiqua quidem definitio usque ad exitum vitae eas ab Ecclesia removet. Humanius autem nunc definimus ut eis decem annorum tempus secundum praefixos gradus paenitentiae largiamur."

por Fábio Morais --- publicado na revista "Pergunte e Responderemos" N. 459, agosto/2000.

"Vós dizeis que a Igreja Católica apostatou, que o paganismo, como um tufão incontrolável, lhe penetrou todos os recantos, e, qual um car- rasco impiedoso, não poupou nenhum dos seus membros. A acusação é grave, e exige provas indiscutíveis. E que provas, senhores, me podereis apresentar? Eu vos direi: Alegareis o culto da Virgem Maria, o purgatório, a veneração das imagens e outras tantas doutrinas e práticas que o pro- testantismo, no seu ódio incontido à Igreja Romana, repudiou. Ora, des- de quando o repúdio do protestantismo serve como prova de alguma coisa? Direis que a Bíblia se opõe a essas doutrinas e práticas. Mas quem o disse? O protestantismo? Então voltamos para o mesmo lugar, visto que não me serve o repúdio do vosso protestantismo, assim como não vos servem as afirmações do meu Catolicismo. É tudo uma questão de interpretação. Se disserdes, portanto, que tais coisas são contrárias às Escrituras, eu vos responderei que não são, e, se apontardes textos que, na vossa opinião, favorecem o que sustentais, vos direi que o vosso próprio entendimento vos traiu, e indicarei mil outras passagens a con- trastar com o que pensais ser a verdade. Por vossa vez, certamente me acusareis de torcer miseravelmente a Palavra de Deus. O que restará, pois. Nada além de afirmações contra afirmações e interpretações con- tra interpretações. Tudo findará numa contenda inútil, dessas que embrutecem o espírito e ensoberbecem a inteligência, já tão inclinada à vaidade. Não, senhores! Devemos partir de um ponto que nos seja pacífico, de uma premissa que todos admitamos. Somente assim saberemos com quem está a verdade e onde reside o erro. Afirmais a paganização da Igreja, e eu não me incomodo em concedê-lo por um momento. A Igreja Católica apostatou? Seja. Ora, se veio a apostatar, é porque, de fato, não era ainda apóstata. Quem diz apostasia diz a passagem de uma realidade para outra diametralmente oposta. O ato de apostatar exige uma condição prévia inteiramente in- compatível com a apostasia. Assim como uma barra de ferro só se pode- rá esquentar se estiver fria, e um pedaço de madeira só poderá partir se estiver inteiro, e um homem só poderá morrer se estiver vivo, também a Igreja Católica só poderia apostatar se estivesse em algum momento livre de apostasia; só poderia paganizar-se se não estivesse paganizada ainda. Negareis o óbvio? Não o creio. Muito bem. Mas se um dia a Igreja não foi apóstata, se não era paganizada em algum momento da história, segue-se que foi um dia le- gítima, autêntica, verdadeira. Se era verdadeira, era, por conseguinte, a Igreja de Jesus Cristo, pois que não havia outra. Temos, então, que essa Igreja que chamais apóstata, foi em alguma época a verdadeira Igreja, pura nas suas doutrinas e práticas. Negareis o óbvio? Não o creio. Mas afirmais que ela apostatou. Como? A verdadeira Igreja pode- ria alguma vez apostatar? É aqui, senhores, que a vossa afirmação des- morona, como um imenso castelo de areia firmado na flacidez do chão molhado da praia. Desde quando a Igreja poderia apostatar? Nunca! Je- sus Cristo teria sido um mentiroso, um impostor, e mui justa seria a sen- tença condenatória exarada por Pôncio Pilatos e a acusação vinda da parte do Sinédrio. Mas isso ninguém jamais cogitou. Justo foi Pilatos? Justo o Sinédrio? Impossível!

As promessas neotestamentárias da assistência divina à Igreja, por outro lado, são muitas e claras. Ao dizer a Pedro do estabelecimento da Igreja, o Salvador garantiu que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela (cf. Mt 16, 18). Ora, se a Igreja depois disso apostatou, deixando de ser a verdadeira Igreja, segue-se que as portas do inferno prevaleceram e Jesus foi um falso profeta. Em outra ocasião, pouco antes de ascender, o Senhor dis- se aos apóstolos que ficaria com eles "até a consumação dos séculos" (Mt 28, 20). Mas o que seria desta presença sempre continuada, se o paganismo depois invadisse a Igreja e a corrompesse até os seus funda- mentos? Sabendo da proximidade da sua ida para junto do Pai, Jesus falou do Espírito Santo: "Eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, para que fique eternamente convosco" (Jo 14, 16; ainda: 14, 26; 15, 26). Mas onde, senhores, a eficácia da atuação deste Paráclito se apostatasse a Igreja? Ah, galileu! Se a Igreja apostatou, não passaste de um traidor mi- serável, que nos ludibriou a todos! Prometeste que as portas do Inferno jamais prevaleceriam, mas a Igreja apostatou. Prometeste a tua assis- tência até o final dos séculos, mas a a Igreja apostatou. Prometeste o Espírito da verdade para que ficasse eternamente, mas a Igreja apostatou. Ah! Serei ateu! Passarei para a irreligião! O Jesus em que acredi- tei mentiu para mim! Oh, judeus! Acolhei-me em vosso meio, abraçai-me em vossas sinagogas! O Messias não chegou! Jesus mentiu! Bendito sejas, Caifás, por teres denunciado um falso Cristo! Barrabás! Bendita a tua libertação! Judas! Judas! Por que tiraste a pró- pria vida? Morreste por um farsante! Nero! Nero! A humanidade te será eternamente grata por teres usado da tua força para exterminar os segui- dores de um embusteiro que se dizia Redentor. Não soubesse eu, senhores, que a assistência divina é infalível e que tem, pelos séculos, preservado a Igreja de todas as heresias, e estes brados de revolta soariam os mais justos e louváveis. Mas sei que a Igre- ja, um dia edificada sobre a Rocha, jamais renegou os ensinamentos que recebeu, porque nela atua aquele que é a própria Verdade, mesmo que assim não o queiram as vossas incontáveis denominações, que, não ten- do Deus Cristo por fundador, jazem impotentes ante um turbilhão de con- tradições doutrinárias."

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