DOUTRINA CATÓLICA

VOLTAR

"D. António Ferreira Gomes e o Pensamento Social Cristão" Mendo Castro Henriques e António Campelo Amaral

SIMPÓSIO PROFECIA E LIBERDADE EM D. ANTÓNIO FERREIRA GOMES

Fundação Calouste Gulbenkian

1 de Outubro de 1998, 11.00H

Dedicado a José Adelino Maltez

Profeta é aquele que abre horizontes para que a liberdade ganhe substância; que não intimida as consciências, mas que lhes cultiva o húmus para fazer crescer os valores, que nada impõe mas propõe o essencial, que aponta caminhos e não apenas posições que não sossega mas inquieta. Sem essa dimensão da profecia, ínsita no magistério episcopal de D. António, a leitura do seu pensamento e acção fica condenada a ser feita à luz do que no presente convém justificar ou legitimar, em vez de precisamente o contrário: permitirmo-nos ser lidos por ele, deixando-nos provocar pelo que desenha para o futuro. Por todas as razões, importa não usar a figura de D. António como pretexto de um optimismo deslocado nos tempos actuais. A sociedade portuguesa levou a cabo uma decisiva transição para a democracia. Mas a democracia ficaria defraudada sem a vigilância de quem sabe que ela é, por definição, uma tarefa incumprida. Abusando das palavras do poeta, falta cumprir a democracia em Portugal. É a própria estabilidade das instituições políticas que exige a permanente renovação da vida democrática - na política e na sociedade civil. É neste contexto que ganha relevo histórico a figura do Bispo do Porto.

O pensamento social cristão

O pensamento social cristão não se cinge à história da Doutrina Social da Igreja, nem se esgota na exegese de textos eclesiais, nomeadamente pastorais e textos emitidos com nihil obstat, ou de organizações de leigos eclesialmente dependentes. Nem se identifica à história do ideias e dos partidos que se reivindicaram da democracia cristã: aliás, o primeiro partido genuinamente democrata-cristão português até se designou ‘Partido Nacionalista’. Os movimentos sociais cristãos não decorrem de modo linear das encíclicas sociais - de Leão XIII a João Paulo II - mas são um processo multifacetado nas suas diversas aclimatações culturais, sociais e políticas. A expressão ‘Doutrina Social da Igreja’ contém uma indeterminação. "Da Igreja" indicará que, entre outras doutrinas sociais, existe uma que assume coloração específica no âmbito da reflexão eclesial, ou aí se pretende afirmar que a doutrina social é exclusiva do magistério? Por tudo isto, para situar a penetração da axiologia cristã no tempo em que se insere o pensamento de D. António Ferreira Gomes, em sucessivos testemunhos com rupturas patentes e continuidades latentes, elegemos um arco temporal de que vai dos anos 30 aos anos 80. É nesse arco que temos de situar a sua luta por um regime de liberdades ordenadas que o conduziu, ao longo da década de 50 à recusa progressiva do regime autoritário e que, em 74-75 o conduziu a lutar com êxito, e em uníssono com a Igreja portuguesa, contra as tentativas totalitárias de conquista do poder.

Regime autoritário e pensamento social cristão O regime autoritário reclamava-se nas origens, e na letra, de uma inspiração na doutrina social cristã. Esse timbre social cristão do regime verificava-se pelo facto de apenas excepcionalmente existirem divergências, na década de 30, entre ser católico e ser salazarista. Na política internacional, o regime não foi totalitário nem antisemita quando abundavam tais tendências, e manteve uma neutralidade benevolente para com os Aliados na 2ª Guerra Mundial. Afinal, Salazar era coevo da primeira geração democrata cristã (com personalidades como Luigi Sturzo, Alcide de Gasperi, Amintore Fanfani, Antoine Pinay, Konrad Adenauer ) e fora um coerente militante católico, um construtor do Centro Académico da Democracia Cristã e um antigo deputado do Centro Católico, alguém, em suma, que constituía uma espécie de oferta que a Igreja fizera à Pátria num momento crucial, como lhe chamou D.António Ferreira Gomes. Tudo isso não obsta a que Salazar instrumentalizasse o movimento católico e o pensamento social cristão para os fins políticos do Estado Novo. No pós-guerra, e noutros países europeus, a doutrina social cristã ajudou a reconstruir Estado, sociedade civil e iniciativa privada, segundo os modelos da economia social de mercado (a Sozialmarktwirtschaft de inspiração germânica ) e a organização política democrática. A segunda geração democrata-cristã, que conseguiu ocupar o poder, pugnou pela complementaridade dos valores da liberdade, solidariedade e justiça nas políticas internas e iniciou a integração europeia com o Tratado de Roma em 1956. O Estado era estimulado a promover a autonomia da sociedade civil e da iniciativa privada. Os direitos fundamentais, consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, eram considerados anteriores e superiores aos direitos positivos criados pelo Estado. Liberdades políticas e liberdades económicas exigiam-se mutuamente. Consagrava-se assim, o princípio da subsidiariedade em fórmulas personalistas e em programas governamentais. Ao invés do que sucedeu na Europa Ocidental, o pós-guerra em Portugal não constituiu um momento de ruptura política; por diversos motivos predominaram as continuidades, ainda que paradoxais. Apesar de se qualificar como democracia orgânica, o regime não se coadunou às instituições demoliberais do pós-guerra. Continuou a invocar a doutrina social cristã mas viu nela surgir divergências que, no final da década de 50, quase foram alternativas políticas. Aderiu à OECE, mas não aproveitou as disponibilidades do Plano Marshall. Participou na fundação da NATO, apesar de manter fórmulas e instituições antidemocráticas. Perpetuou o intervencionismo económico, apesar de fundador das principais organizações internacionais do livre-comércio, nomeadamente a EFTA. O fim da guerra não foi uma nova fase da vida colectiva. Acompanhar as modas políticas do tempo nunca foi o forte de Salazar.

A recepção da segunda fase da democracia-cristã Apesar de notáveis contributos, está ainda por fazer um balanço da recepção em Portugal da segunda fase da democracia-cristã. Mas se, devido aos motivos já apontados, essa recepção e o activismo decorrente passam por grupos diversos e relativamente isolados, com o que isso significa de expressão política fraca, não deixava de ser uma terceira via alternativa às doutrinações opostas, e violentamente confrontadas, do Estado Novo e do comunismo marxista. Desde o início da década de 50, e a fim de combater a carência de pensamento social num país ainda céptico e anti-clerical, a multiplicidade de movimentos da Igreja, integrados ou não na Acção Católica, divulgam o pensamento social cristão. O tom do confronto com o marxismo é dado pelos livros de Jacques Maritain, personalista, então editados em português na década de 40. A Sociedade de Jesus tem um importante papel na renovação da filosofia política, de que é exemplo A Idade do Social, de Lúcio Craveiro da Silva, S.J. As propostas económicas seguem no essencial, as linhas de Amintore Fanfani em Capitalismo, Catolicismo, Protestantismo. O Congresso da JUC de 1953 lança as sementes de uma geração de católicos, descomprometidos com a construção do Estado Novo. Em 1957 estão na revista Encontro, dirigida por João Salgueiro, com a colaboração de João Bénard da Costa e Pedro Tamen. As organizações da Acção Católica adoptam uma agenda de questões sociais em que se confrontavam com posições esquerdistas, nomeadamente de sindicalistas e estudantes. As divergências doutrinárias, contudo, não impedem frentes comuns entre oposicionistas, atentas as profundas diferenças entre a doutrina social da Igreja e a ideologia marxista. Em 1957, a JOC passa a ser dirigida por João Gomes, com a colaboração de Manuel Serra. O institucionalismo jusnaturalista de raiz cristã impõe-se entre os monárquicos que mantêm vitalidade doutrinária, nomeadamente o grupo da revista Cidade Nova, onde se destaca Henrique Barrilaro Ruas. Neste terreno crescem os apoios para a candidatura presidencial de Humberto Delgado e para a "Revolta da Sé". Em Maio de 1958, surge uma carta ao jornal Novidades, criticando o apoio deste órgão oficioso da Igreja ao Estado Novo, e subscrita por um grupo de católicos (em que se destacarão, no pós-74, como militantes do PS, João Gomes, Manuel Serra, Nuno Portas; no MDP, Mário Murteira e Francisco Pereira de Moura; no MES Nuno Teotónio Pereira; e no PPM, Barrilaro Ruas .

A intervenção de D. António na década de 50

É neste panorama da década de 50, aqui meramente esboçado, que se inserem os Documentos Pastorais do Bispo do Porto onde o autor reflecte o pensamento social-cristão que defende uma terceira via, considerando comunismo e liberalismo como "uma heresia ou acervo de heresias"(p. 163), pelo que "o nosso Não ao ateísmo comunista não subentende Sim ao capitalismo liberal, individualista"(p. 164), bem como "a defesa duma Europa produto da Renascença e do Protestantismo, que sempre nos enjeitou, a nós peninsulares, e pela qual não somos responsáveis"(p. 164). Para ele, "a liberdade postula moralidade, a democracia requer virtude; o cristianismo é por isso verdadeiro fermento da liberdade, a escola da genuína democracia."(p. 163). Critica também o socialismo, por "pôr o económico em lugar do espiritual; substituir o moral pelo jurídico, criar a virtude e eliminar ao vício por decreto, fazer o sócio à custa da pessoa, vingar a justiça em detrimento da liberdade, levar a sociedade humana pelos caminhos do formigueiro e da colmeia, enfim fazer a fraternidade sem paternidade e a comunhão sem caridade, tudo isto é Anti-evangelho: pôr o homem em lugar de Deus e a 'sociedade' em lugar da Igreja"(p.234). Nada que a doutrina social da Igreja não afirmasse. A questão melindrosa residia em saber se esta "terceira via" poderia ser operacionalizada no terreno concreto das reivindicações cívicas e das lutas políticas. É por sua vez nesta moldura pessoal, longamente meditada, que se insere a carta do Bispo do Porto dirigida a Salazar em 13 de Julho de 1958, e que, pelas circunstâncias da sua divulgação manipulada pelo governo, e das consequências pessoais e públicas, acabou por constituir uma magna carta de denúncia do regime autoritário, e um marco incontornável do pensamento social cristão em Portugal.

O Bispo do Porto, aceitando em Salazar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições em matérias de política externa e de política ultramarina, recusa liminarmente a política social, através do que qualificava como uma posição de filosofia política e de sociologia, «na medida em que aqui se incluam as questões fundamentais da liberdade e autoridade, da justiça e da ordem, da pessoa e da colectividade - e em boa verdade não vejo como afastar essas questões de perspectiva tão larga e de expressão tão categórica. Considerando que o problema essencial não é directamente a defesa da Igreja, mas da ordem civil e social, declara que a maior necessidade dos católicos é ultrapassar a mentalidade do Centro Católico que cada vez mais se torna uma mentalidade de catacumba ou mesmo de perdição, da qual a Igreja já só pode esperar um "amor de Perdição". Taxativo na recusa do comunismo «o comunismo não tem razão nenhuma, (...) pense que o comunismo pode coincidir com certas incidências concretas da sociologia cristã, que lhe é anterior», observa de forma incisiva, que a Igreja "comprometeu-se," não com o Estado corporativo mas com a ordem corporativa da sociedade, citando Pio XII como estrénuo defensor do princípio da subsidiariedade. É com base na análise da situação concreta, tal como lhe era transmitido dos «dois pólos» opostos, «o da tradição e o da recristianização», por sacerdotes e responsáveis de centros paroquiais, por dirigentes e membros da Acção Católica, por universitários e, outros que com ele conviviam, que ganha eco o lamento de D. António: «Está-se perdendo a causa da Igreja na alma do povo, dos operários e da juventude; se esta se perde, que poderemos esperar da sorte da Nação? ». A missiva encerrava com um inquérito sumário a Salazar - e a ninguém terá escapado a ironia de o Grande Inquisidor ser inquirido, embora epistolarmente. Tais perguntas, afinal, enunciavam os requisitos para operacionalizar o pensamento social cristão e provocaram a reacção pessoal de Salazar e dos órgãos ao serviço do regime. Era preciso criar uma maioria sociológica favorável aos objectivos da segunda geração democrata-cristã ("Tem o Estado qualquer objecção que os católicos façam a sua formação cívico-política ?"). Era preciso criar uma vida cultural animada pela doutrina social da Igreja?; ("Tem o Estado qualquer objecção ao ensino da doutrina social?"); Era preciso criar uma organização política capaz de sustentar esse ideário, sem que o comprometimento da Igreja institucional inviabilizasse o projecto ("Tem o Estado qualquer objecção a que os católicos iniciem um mínimo de organização e acção políticas?"). Até que ponto estes posicionamentos - de D. António e dos grupos católicos que nele se reconheciam - não passam de uma série de excepções que confirmavam a regra do compromisso tácito com o regime, assumido pela hierarquia e pela maioria da Igreja, e particularmente simbolizado pela atitude do Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira ? E até que ponto este conjunto de rupturas actuou como fermento na oposição tradicional - que aliava republicanos, comunistas, monárquicos, e católicos por ocasião das eleições de 1958 - criando uma ampla frente oposicionista que embora sem êxito político imediato, criou as bases para a rápida consolidação da democracia no pós 25 de Abril ? São perguntas a que não é fácil responder sem um balanço - ainda por fazer - das relações entre cristianismo e democracia, em Portugal, desde o pós-guerra até 1975.

Reacção e Exílio

Também não é evidente até que ponto o próprio Salazar se convenceu de que a Igreja em Portugal poderia vir a adoptar o discurso e os programas da democracia cristã, então correntes no resto da Europa. É certo que, em discurso de 6 de Dezembro de 1958 à direcção da União Nacional, Salazar analisa a ruptura de grupos e individualidades católicas com o referido organismo, agitando a ameaça do alastramento do comunismo, e avisando o Vaticano de que as relações entre Igreja e Estado e a própria Concordata poderiam estar em perigo. Tais ameaças veladas à Igreja, que era um pilar do regime, traduzem-se em hostilidade a certas actividades católicas: a Acção Católica perde estatuto legal; os sacerdotes são proibidos de pastoral nos sindicatos; ao último Congresso de sindicalistas da Acção Católica não se permitiu a publicação das Actas; a PIDE interfere nos Congresso de organismos da Acção Católica e alguns dos seus dirigentes são suspensos; enfim, os esforços para fundar uma Universidade Católica foram bloqueados. Contudo, não é possível generalizar estas dolorosas e dolosas medidas contra a Igreja numa recusa e perseguição à instituição no seu todo. Sendo o anti-comunismo, o argumento de Salazar que mais eco encontrou, o melhor comentário foi feito por Francisco Lino Netto, porta-voz do Centro de Informação Católica. Um regime comunista era implausível em Portugal, por contrário à índole popular; assim, a atracção pelas ideias comunistas não derivava de virtudes intrínsecas destas mas de aspirações por justiça que não encontravam satisfação na situação; e mesmo que tal argumento fosse falso, caso houvesse perseguições, caberia ao cristão, em princípio, estar do lado dos perseguidos e não dos perseguidores. Não nos cabe aqui delinear o exílio de D. António Ferreira Gomes - a forma de perseguição que sobre ele se abateu - nem a determinação com que a Santa Sé o manteve como Bispo do Porto, embora retirando-o de Portugal. Tratava-se de uma oportunidade perdida (houve outras) de iniciar uma evolução no interior do salazarismo; tratava-se de uma cicatriz na Igreja, que manteve as suas liberdades dentro do compromisso com o regime. A maioria sociológica cristã e a hierarquia da Igreja mantiveram os seus procedimentos na "democracia da sociedade civil" - como a designou Adriano Moreira - alheando-se das aspirações de democracia política. A ausência de D. António ditou a desancoragem política dos católicos oposicionistas. Seguiram-se outros caminhos e novas propostas, a par de continuidades várias. Editoras como a Aster e a Tavares Martins, onde avultam figuras como Costa Maia, Hugo de Azevedo, Carlos E. Soveral, Barrilaro Ruas, Agostinho Veloso S.J, entre outros, traduzem filosofos e teólogos católicos de vanguarda como Romano Guardini, Henri de Lubac, Dietrich von Hildebrand, Bernard Haering, Michele Federico Sciacca. No campo social, avulta o magistério de Adérito de Sedas Nunes no Gabinete de Estudos Sociais, a criação da revista Análise Social e a tradução de obras como Igreja e sociedade económica, 1960 de Jean-Yves Calvez e Jacques Perrin e o Catecismo Social, de Eberhard Welty. O personalismo existencialista de Mounier - aliás presente em D.António - marca a partir de 1963 o magistério de António Alçada Baptista e do Círculo do Humanismo Cristão, da Livraria Moraes e da revista O Tempo e o Modo. O chamado "progressismo cristão" nasce a partir de crítica do salazarismo, e, depois de ensaiar fórmulas democráticas, é ocupado pelos que, depois do diálogo com o marxismo e de colaboração com o PCP, ultrapassam este pelo esquerdismo revolucionário. Sem outras amarras filosóficas do que o existencialismo cristão, tornou-se o principal terreno onde o marxismo se desenvolveu. De existencialismo marxista, depressa passou a querer ser o único humanismo, e ideologia de golpe de Estado, conforme o exemplo de Manuel Serra. Outros católicos não-situacionistas enveredam pela colaboração possível com o regime de Marcello. Entre os adeptos da via reformista, os chamados "tecnocratas" seguem as passadas de Maria de Lurdes Pintasilgo e João Salgueiro, Xavier Pintado, e passam a responsáveis por cargos públicos ou políticos. Outros - como João Pedro Pinto Leite, Magalhães Mota, Francisco Sá Carneiro, e João Pedro Miller Guerra - formam a ala liberal da oposição. A SEDES emergirá como ponto de encontro desta geração que se reencontrará no 25 de Abril. Exemplar da sua posição é a entrevista de 15 de Abril de 1971, de Francisco Sá Carneiro, a um jovem jornalista do República, Jaime Gama; face à pergunta se poderia assumir-se como democrata-cristão, responde que se amanhã me pudesse enquadrar em qualquer partido, estou convencido de que, dentro dos quadros da Europa Ocidental, comummente aceites, iria para um partido da social-democracia. Este back to the future é ilustrador de como D. António é representativo de toda uma época que foi a sua e que ainda repercute na nossa.

Profeta uma vez, sempre profeta

O fim do exílio de D. António em 1969 coincide com as ambiguidades da "Primavera política" marcelista. Seria possível recuperar o tempo perdido ? Criar a maioria sociológica apoiante da democracia-cristã? Difundir a doutrina social de Igreja ? Criar a organização cívica e política dos cristãos ? O tempo histórico acelerou rapidamente até à revolução de Abril. Os acontecimentos sucediam-se, agora, a um ritmo célere e a instauração desejada da democracia desde 25 de Abril veio colocar noutro plano a relação entre a doutrinação social cristã e as escolhas políticas inadiáveis. As condições enunciadas por D.António na Carta a Salazar não se verificavam: não existiam condições sociológicas para um partido democrata-cristão; era patente a carência de vida cultural animada pela doutrina social da Igreja; não existia qualquer organização política capaz de sustentar as posições do pensamento social cristão, nem o comprometimento da Igreja Institucional. Face ao processo revolucionário (o PREC), a Igreja e os católicos, tiveram que submeter-se para sobreviver, para depois lutar para ijmpôr a sua diferença. Quando chegou a primeira potencial grande crise - com as exigências do movimento pró-divórcio, pugnando pela alteração do Código Civil vigente, que consagrava a Concordata com a Santa Sé - evitou-se a ruptura com o novo poder político. A Igreja condescendeu, sendo assinado um acordo com o Vaticano. Era já tarde - e indesejável do ponto de vista da Igreja - para criar um partido político cristão em Portugal em 1974. A maioria sociológica que o apoiaria não hostilizara o regime anterior; as elites que o poderiam dinamizar não tinham estruturado um movimento cultural democrata-cristão, isto é, um movimento laico enraizado na sociedade civil e independente das estruturas eclesiais; a própria Igreja acompanhara, no compromisso histórico com o salazarismo, a maioria sociológica referida. Enfim, começava a evidenciar-se o esgotamento dos partidos democratas cristãos no panorama europeu. A adaptação defensiva da Igreja às novas regras políticas - em que se destaca o papel tenaz do falecido Cardeal António Ribeiro - deu liberdade a todo o católico de escolher entre os partidos democráticos, integrando uma frente de resistência ao assalto ao poder por parte das forças totalitárias. A legitimidade do voto popular de 25 de Abril de 1975 que atribui uma maioria esmagadora aos partidos democráticos (PS, PPD e CDS) veio confirmar o bem fundado deste posicionamento. Era desnecessário um partido democrata cristão porque os cristãos estavam em todos os partidos democráticos. Liquidando a herança anti-clerical da 1ª República, o cristianismo deixava de ser sinal de divisionismo político, e em parte contribuia mesmo para a unidade democrática, no que foi uma das principais heranças de D.

António Ferreira Gomes.

Entretanto, os ataques à Igreja não cessaram imediatamente. D.António - que recebia a atenção da comunicação social - foi, mais uma vez, dos primeiros a clamar no deserto, invectivando contra os desmandos do PREC e contra os métodos pseudo-democráticos do gonçalvismo. Não se coibia também de invectivar os que, a pretexto de apolitismo, se refugiavam na doutrinação sem tirar as consequências para uma intervenção política. «Geralmente fala-se da "doutrina social da Igreja" mas evita-se falar da sua doutrina política» . As agressões crescentes à livre expressão das posições católicas culminaram no silenciamento da voz livre da Rádio Renascença . D. António desfere sucessivos libelos acusatórios. Veja-se a título de exemplo "É preciso desmistificar a Revolução" ou o alerta numa das homílias onde refere que «a defesa contra o pessimismo doentio e egocentrista não nos leve porém a um optimismo iluminista do "melhor dos mundos" (...), dum mundo sem pecado original nem actual, a uma mística da humanidade (...) e totalmente natural ». Se antes reagira contra a "Situação", colocando a tónica na justiça social, reage agora, enfatizando a liberdade, contra o esquerdismo de silhueta democrática e cuja apetência totalitária desencadeou a reacção de humanistas laicos e humanistas cristãos: « agora que a Igreja, nos países civilizados (democráticos) adquiriu a sua liberdade e não há mais razão para a confusão ou união dos poderes, é tempo de os homens da Igreja se convencerem, plena e eficazmente, de que combater, menosprezar ou menos valorizar a liberdade, é, além de uma agressão à essência do homem, tornar radicalmente incompreensível e inexplicável a existência do mal no mundo, e portanto pôr em causa a própria existência ou atributos de Deus».

No Verão Quente, em 1975, quando o país parecia encaminhar-se para o totalitarismo comunista através da subversão conduzida pelo aparelho "gonçalvista", surge a contra-subversão a partir da sociedade civil, num movimento que parte da rua contra o poder instalado no Governo, na Administração e na Comunicação Social. Nesta inversão do PREC, a Igreja, a partir do povo, recuperou o seu poder de influência e a sua legitimidade, sem incorrer na tentação de abrir conflito com as forças laicas, republicanas e socialistas, aliás também enxovalhadas pelo PREC. Estava presente nos principais partidos democráticos: no PS, onde dirigentes cristãos admitiam o diálogo discreto com forças laicas; no PSD, onde o impulso católico dos fundadores, nomeadamente Sá Carneiro e seus pares, cresceu mediante uma aliança com a maçonaria conservadora que não queria subscrever cedências ao marxismo: no CDS que congregou forças jovens da ala católica, onde se destacam Freitas do Amaral e Amaro da Costa, sem vínculo aos progressistas cristãos dos anos 60. A Igreja teve a sabedoria prática de não ressuscitar conflitos entre a "loja" e a "sacristia", o "avental" e a "batina", clericalismo e anti-clericalismo. Pelo contrário: através da reacção popular, a Igreja ajudou a firmar um compromisso histórico entre o humanismo laico e o humanismo cristão, face ao totalitarismo. A partir de então, os socialistas não mais podiam ser atacados pelo facto de muitos terem sido comunistas e anticlericais. Por seu lado, os católicos não podiam esquecer que progressistas cristãos estiveram na revolução comunista contra a democracia, e deixaram de poder ser atacados pelo facto de terem sido aliados do autoritarismo salazarista. A sociedade portuguesa encerrava uma das suas guerras civis ideológicas . No essencial, as liberdades da Igreja permitiam-lhe assegurar a presença de católicos nos principais partidos políticos portugueses, sem ficar confinados num partido democrata-cristão, eventual bode expiatório dos anti-clericais. O magistério da Igreja libertava-se da tutela informal do Estado, mantendo alguma influência junto dos decisores políticos. No essencial, estes dois aspectos permaneceram desde 1975 até ao presente.

Vectores do pensamento social cristão de D. António

O pensamento social cristão do bispo portuense encontra-se disseminado pelos seus escritos pastorais de mais de quatro décadas. Espraia-se pelas temáticas das liberdades económicas e políticas, sociedade civil, bem comum; situa os conceitos e categorias na espiritualidade concreta, norteado pelos princípios de justiça social e da subsidiariedade, conforme o entendimento das encíclicas papais sobre a matéria; sedimenta-se no que ele chamava a tradição política portuguesa da defesa do Estado de Direito, da autodeterminação popular e do direito das gentes ; e é particularmente insuflado pelo ânimo profético contra o poder tirânico do Estado. D. António joga no tabuleiro de uma "filosofia social e política": «Todos estamos de acordo que há dois problemas fundamentais, sem cuja solução não poderá haver paz social, sejam quais forem as aparências.» Quais são esses problemas ? «O primeiro é que os frutos do trabalho comum devem ser divididos com equidade e justiça social entre os membros da comunidade, quer no ponto de vista dos indivíduos quer no dos sectores sociais (...). » A justiça apresenta-se a D.António como cânone para avaliar a sociedade e como finalidade social do bem comum: toda a questão estará em saber como dividir as tarefas da justiça: pelo Estado, pela sociedade civil e pela iniciativa privada.

O segundo problema é o da participação e da cidadania : «seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua quota-parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto da vida económica, social e política». Em sociedades pluralistas, os cidadãos não são apenas governados nem apenas objectos de direitos e deveres. Se as sociedade tradicionais estavam dependentes do Estado ou das autoridades governamentais para discernir e promover o bem comum, uma vez que as capacidades e os conhecimentos dos factores de progresso social não estavam disseminadas, nas sociedades pluralistas modernas existem outros agentes, aquém e além do Estado, capazes de promover o bem comum. O espaço da cidadania e da participação o dos poderes locais, por um lado, o das organizações internacionais, por outro. No espaço que se abre para o livre exercício de capacidades humanas, avulta a economia. No que respeita às liberdades económicas, D. António antecipa ilações da doutrina social da Igreja que virão a ser extraídas já na década de 80. À economia de mercado atribui importância crucial no processo produtivo e na distribuição da riqueza produzida; com efeito, o problema da distribuição é posterior ao da produção. A chamada ordem espontânea do mercado é um exercício da liberdade humana que resulta de livres escolhas e cria uma ordem diferente da ordem natural. Esta ideia de justiça é complementada com uma concepção que valoriza a empresa como comunidade de esforços em concertação social, e de reinvestimento dos lucros na promoção dos recursos técnicos e humanos: «da empresa como comunidade livre de trabalho em que operários, quadros, técnicos, gerentes e patrões ou Estado-patrão, defendendo cada um os seus legítimos interesses, se considera no entanto solidário no bem da empresa, que é o bem de todos». A justiça social requer, por outro lado, que o Estado contribua com o que hoje chamamos bens públicos, como sejam instituição da propriedade privada, garantia dos mercados, incentivos e apoios sociais ao exercício da iniciativa e da criatividade pessoal, entre outros.

Consciente do impacto e das pré-condições sociais das medidas económicas, D. António demarca-se do que chama o "financismo" de Salazar - «as finanças são o primeiro servidor e não podem ser, senão excepcional e transitoriamente, o senhor da Nação» - e alerta para o pobreza e o envilecimento das classes desfavorecidas - sobretudo a rural. O ênfase de D.António no princípio de associação é evidente. Na esteira do que o magistério proclamara contra o liberalismo selvagem, defende o direito de associação profissional e sindical dos trabalhadores e o princípio de uma ordem dos corpos intermédios da sociedade civil, consagrando, nomeadamente, a liberdade de intervenção sindical como direito natural dos trabalhadores e outras formas de acção social voluntária. À luz deste princípio antecipa o princípio instaurador da autonomia da sociedade civil. Quanto mais alargadas as associações livres, mais evidente, rica e mais estimulante será a vida social. As possibilidades de actuação social que estão na base da sociedade civil não se definem apenas pelos estritos deveres políticos. Tocamos aqui no cerne do pensamento do bispo portuense sobre a justiça social, termo que suscita diversidade de interpretações. Para ele, justiça não pode ser apenas justiça comutativa, ou das trocas, virtude própria do liberalismo - o que deixaria o mercado sem a norma da lei ; não pode ser apenas justiça distributiva, virtude própria do socialismo - o que atribuiria poder excessivo ao Estado, redistribuidor de riquezas. Tem que existir justiça social, no sentido específico de que a sociedade - e não o Estado - deve ser o seu protagonista: as prestações em impostos dos cidadãos ao Estado têm que ser acompanhadas por participação e cidadania. D.António diagnostica que « o Estado-providência está manifestamente em crise» e aponta um remédio: «a constituição de (…) mediadores entre o Estado e os utentes da sua providência». As soluções sugeridas passam pela descentralização de poderes em esferas mais próximas dos cidadãos, por um lado, e restituição de poderes devolutos do Estado à rede de instituições da sociedade civil. Não é por acaso que D.António vivia intensamente os afazeres dos Centros Paroquiais da sua diocese. Enfim, é este posicionamento da justiça em sede da sociedade civil e não do Estado, que confere conteúdo ao princípio de subsidiariedade referido como «princípio da complementaridade ou função supletiva do Estado», e « princípio de peso na filosofia social» D. António é um homem de resistências: «Resistência foi para a Ética e Sociologia católicas, o conceito base de comportamento cristão, face a qualquer mal e designadamente face ao poder tirânico».

É da resistência às injustiças praticadas que emerge a tomada de consciência dos problemas das comunidades. E é desta consciência que resulta a sua concepção personalista de liberdade: « a liberdade é, sem dúvida, um bem e um direito, inerentes à pessoa humana, mas é antes obrigação de consciência e uma virtude a cultivar (...), difícil e às vezes heróica ». Todavia, essa liberdade não é inata nem infusa. Supõe um processo de aprendizagem cívica, e um exercício prudente no seio das liberdades ordenadas que devem assistir ao corpo social. É a exigência de direitos, liberdades e garantias que solicita ao católico uma dimensão política. A participação política não decorre dos preceitos do regime instituído, mesmo que esse regime seja, desejavelmente, a democracia. « A verdade é que, histórica e culturalmente, a democracia não é um dado espontâneo mas uma meta». A democracia não é um objecto de que as pessoas se apropriem mas sim um processo de participação, que requer peculiar vigilância: não é uma terra conquistada mas uma terra prometida. Neste sentido, a esfera do bem comum deve considerar tanto o todo social como a dignidade individual da pessoa livre, requisitos em qualquer situação histórica. D. António critica Marx que «chega a proclamar que, pelo comunismo, cada indivíduo se identificaria com o seu género. Recusa frontalmente o princípio marxista da essência genérica do homem (Gattungswesen), que nega o bem comum de indivíduo e sociedade. A esta concepção que se cumpriria na abstracção "mística" do reino do homem universal, contrapõe o realismo de uma concepção comunitarista na qual «a pessoa humana é no mundo o único sujeito de liberdade e portanto o único centro de direitos e deveres, tanto na ordem pessoal como social.» É relativamente mais fácil, no entanto, desejar o bem comum do que discernir no que ele consiste. Tal discernimento depende de conhecimento dos problemas de cada situação concreta, ou seja da mudança social. A mudança não é um processo automático ditado por necessidade ou determinismo histórico, mas antes um processo criativo em que a base institucional é a liberdade do sujeito humano. Nas sociedades tradicionais, era mais fácil a um governo central deter a soma de instrumentos para responder aos problemas da mudança social. Mas nas sociedades contemporâneas, a principal fonte de dinamismo promana do livre espírito de invenção e inovação. Por exemplo; instituições económicas como o mercado livre, propriedade privada, incentivos e lucro, circulação de capital já existiam em sociedades tradicionais. O que é novo são as instituições que acolhem as capacidades de invenção, inovação e descoberta, ou seja, a imagem do Criador impressa no ser humano. Modelo dinâmico e não estático de mudança social, esse impulso criativo encontra o seu ponto ómega na instauração do Reino de Deus.

Fundamentos teológicos

O pensamento social cristão de D. António move-se nos trilhos de uma teologia que procura decifrar o fluxo histórico como horizonte onde a graça divina harmoniza as tensões criadoras e responsabilizadoras das sociedades. A evolução do seu pensamento no que se refere à marca do Criador e ao Reino de Deus, fundamenta-se em três campos teológicos, a saber: o mistério do Reino de Deus e a instauração da Civilização do Amor; a comunhão da Igreja como reflexo da vida Trinitária; e o ministério de Cristo à luz da Incarnação e da Redenção. O mistério do Reino de Deus traduz o horizonte teológico em que equacionamos a tensão entre a ordem transcendente do divino e a ordem política das sociedades. Nesse sentido, o Reino de Deus afigura-se como realidade escatológica e como já interinamente presente na História, aguardando a adesão da consciência a partir de uma leitura dos sinais dos tempos. Ora, é na experiência plena da liberdade que se adensa a emergência do Reino de Deus. Essa liberdade não se perde em pulsões políticas libertárias ou libertinas: vai-se determinando naquilo que o bispo do Porto designa de «ulterior crescimento da civilização cristã, traduzida e concretizada em civilização do amor e fraternidade humana ».

A comunhão da Igreja exige uma lógica que não é de conquista do poder mas de missão e serviço, - "sollicitudo rei socialis" , desvelo pela coisa social - e que encontra a sua radicação na formulação dogmática do dinamismo intrínseco do Deus uno e trino. Enquanto trinitária, a vida divina modela o âmago da tarefa humana: cumprir a vida familiar e comunitária. A vida comunitária e comunicativa da Trindade possui a sua expressão mais eminente na experiência eclesial da comunhão dos filhos de Deus reunidos em assembleia (ekklesia). Para D. António, esse destino de comunhão veiculado pela Igreja não deve ser desincarnado, mas sim induzir uma dupla tarefa social e política: inspirada na vida trinitária, a Igreja, deve apresentar-se como sinal potenciador de uma comunidade de cidadãos que vive de modo responsável; e deve afigurar-se como paradigma de justiça social e paz universal, em vista da instauração de uma comunidade internacional mais justa, centrada na "civilização do amor". Conceitos irrealistas ? Mais propriamente conceitos idealistas que devem ser confrontados com aquilo que os chamados "realistas" das relações internacionais não souberam ler nas revoluções de 1989. Com efeito, a eleição a pontífice do polaco Karol Woytila em 11 de Outubro de 1979, pre-monitória do fim do comunismo e do regresso à Europa dos povos do Leste marcou o verdadeiro fim do pós-guerra da Igreja Católica, iniciado apenas com o magistério de João XXIII e de Paulo VI nos anos 60. Através de reformas gradativas, onde a encíclica leonina sempre constituiu o núcleo duro da Doutrina Social da Igreja, foram surgindo os novos resultados adaptados ao mundo globalizado contemporâneo. A Populorum Progressio de Paulo Vl, de 26 de Março de 1967, veiculou a resposta da Igreja ao risco de um planeta unidimensional. Enquanto a Centesimus Annus retoma a Rerum Novarum, a Quadragesimo Anno e a Mater et Magistra, já a Sollicitudo Rei Socialis, de 30 de Dezembro de 1987, comemora o vigesimo aniversário da Populorum Progressio, lançando a dimensão ecuménica da Igreja que, nas palavras de José Adelino Maltez "mais que qualquer outra organização internacional deu voz aos povos mudos do mundo e fez com que o colegio cardinalício passasse a ser assumido pelos povos do Terceiro Mundo". O pensamento social-cristão adquiriu hoje uma perspectiva global, decisiva para a questão da globalização económica e da interdependência mundial subsequentes ao fim da guerra fria. A Igreja não é uma associação privada para promover experiências religiosas gratificantes; é sinal, instituição e poder visível de uma ordem espiritual comprometida com a consciência individual de cada pessoa, com a sociedade e com a história. Por isso mesmo, a realidade eclesial só se cumpre no horizonte da mediação, incarnação e redenção de Cristo. O pensamento social cristão exige uma antropologia. Por seu turno, o humanismo encontra um ponto de ancoragem numa teologia do Verbo incarnado, pois não há antropologia sem cristologia. Deste epicentro cristológico decorrem exigências para uma praxis social cristã.

Em primeiro lugar, a exigência de uma abertura da consciência a uma espiritualidade do concreto, traduzível naquilo que designa de "liberdade incarnada no mundo". Em segundo lugar, a exigência de uma teologia que elege a dramática da cruz - à maneira de Urs von Balthazar - como lugar da salvação humana e cósmica, e como "hermenêutica do fenómeno político" na feliz expressão de Arnaldo de Pinho. Veja-se a esta luz o lamento profundo de D. António em 1976, ao opôr a visão triunfalista e gloriosa da "revolução" sustentada por muitos "cristãos para o socialismo" ao trilho doloroso, à via sacra do compromisso cívico quotidiano: caminho menos espectacular mas mais eficaz a médio prazo. Por último, exige-se uma eclesiologia atenta às interpelações do mundo e às expectativas da sociedade. No quadro político das instituições democráticas, sem subserviências, cumplicidades ou omissões comprometedoras, mas também sem paternalismos ou triunfalismos, a liberdade religiosa permite que «a Igreja pregue o Evangelho como Reino de Deus e de sua justiça, e portanto como fermento e portador de uma civilização universal de Verdade e Amor".

Epílogo

Em suma, não entende o sentido profético do pensamento social cristão de D. António quem dele esperar um oráculo, um patrocínio ou uma justificação para um estado de coisas presente, para compromissos políticos sempre precários e resultantes dos equilíbrios sociais possíveis. Tanto durante o regime autoritário como depois da instauração do regime democrático, D. António foi sinal de contradição, profeta que clamou no deserto de um futuro político, de horizontes cívicos por desvelar, de tarefas sociais por cumprir. A fina percepção teológica dos sinais dos tempos leva-o a referir «um tempo crucial em que já chegaram ou estão chegando ao fim vários processos seculares». A sua interprelação orienta-se para a provocação do futuro, para a responsabilidade do que aí vem. Tal sentido moral, cívico e político de "responsabilidade pelo futuro" (fazendo-nos eco de leituras complementares de João Paulo II e de Hans Jonas), encontra-se bem sugerida naquele passo das Cartas ao Papa (João Paulo II) onde intima: « o cristão não viverá no seu tempo com medo do futuro...» . Nesse sentido, o pensamento social cristão do bispo portuense nem inventa um ontem tenebroso, nem legitima um hoje paradisíaco, nem vislumbra um futuro necessariamente radioso. Recusaria as duas interpretações históricas que hoje se digladiam: a de Francis Fukuyama que anunciou o "fim da história" em visão muito próxima das teorias da convergência das sociedades industriais; e de Samuel P. Huntington que enfatiza o "choque das civilizações" como decorrente dessa mesma globalização.Ambas as visões parececiam deslocadas a D. António Ferreira Gomes. O seu pensamento exige-nos aprofundar o sentido dos direitos do homem numa declaração universal de responsabilidades mais consentâneas com as novas exigências e ameaças; exige-nos equilibrar a economia de mercado globalizado com as exigências concretas de bens públicos oferecidos pelos Estados locais; exige-nos cumprir a democracia, tendo a coragem de medidas que articulem o poder legitimado por eleições com modelos interactivos de devolução de poderes às regiões e à sociedade civil e de partilha de soberania nas organizações internacionais. "Nos tempos que correm, já não há Deus nem Diabo. Há só pobres e ricos. E salve-se quem puder...». Para responder a este grito de alma da boa velha cozinheira Gertrudes dos "Contos Exemplares" de Sophia de M. Breyner, exemplificativo das condições sociais de há trinta ou quarenta anos atrás que provocavam a revolta do Bispo do Porto, «importa ser, mais que o construtor de Igreja, o construtor da Esperança», como é referido no Prefácio à obra da poetisa. António Ferreira Gomes foi um construtor da Esperança e assim há-de continuar, enquanto perdurar a memória da sua profecia e a profecia da sua memória.

Hosted by www.Geocities.ws

1