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DOUTRINA CATÓLICA

Ordenação de Mulheres

Revista `PERGUNTE E RESPONDEREMOS` D. Estevão Bettencourt, osb Nº 386 - Ano : 1994 - pág. 308

AINDA A ORDENAÇÃO DE MULHERES Em síntese : A resolução, do Sínodo da Comunhão Anglicana, de ordenar mulheres, ratificada pela rainha da Inglaterra em data recente, vem causando inquietação e divisão entre os próprios cristãos anglicanos. A Comunhão Anglicana foi instituída em 1534 por ato do Parlamento Inglês, que declarou o rei da Inglaterra Chefe da Igreja do Estado (Established Church); desde então sempre houve na Grã-Bretanha a High Church (Alta Igreja), anglocatólica, voltada para Roma, e a Low Church, de caráter marcadamente protestante. Esta distinção se faz sentir mais aguda em nossos dias por causa da decisão inovadora mencionada. Os anglicanos dissidentes contestam a hierarquia ou a autoridade da Comunhão Anglicana e preferem seguir a voz do Papa, que tem a garantia da assistência infalível do Senhor Jesus (cf. Mt 16, 16`19; 28, 18`20), carisma que falta ao Parlamento e à rainha da Inglaterra. Entre as conversões ocorridas nos últimos tempos está a da Duquesa de Kent, casada com um primo da rainha Elisabete II, portanto membro da família real; a cerimônia se realizou em caráter privado e discreto, mas provocou calorosos comentários na imprensa anglicana. Tais acontecimentos não impedem que continue o diálogo entre católicos e anglicanos em nível teológico.

Os jornais têm publicado notícias a respeito da ordenação sacerdotal de mulheres na Comunhão Anglicana. É notório o gesto de Bispos e ministros da hierarquia anglicana que pediram a admissão no Catolicismo, fazendo profissão de fé na Igreja entregue por Jesus a Pedro.

Nas páginas seguintes procuraremos elucidar os fatos, dos quais já tratamos inicialmente em PR 371/1993, pp. 171`181.

1. COMO SURGIU A COMUNHÃO ANGLICANA ?

O Cristianismo britânico sempre teve suas características próprias, em parte por causa da sua posição geográfica (a Inglaterra é uma ilha!); as tendências a formar uma Igreja nacional foram`se acentuando através dos séculos; John Wiclef no século XIV e os humanistas nos séculos XV e XVI prepararam a via para a aberta revolução religiosa. Esta se deu realmente no século XVI: a princípio tinha apenas o aspecto de um cisma sem heresia (cisma devido à ambição pessoal de um rei, sem que o povo participasse da revolta); só aos poucos é que as idéias protestantes foram entrando na comunidade britânica.

Consideremos agora a figura de Henrique VIII, rei da Inglaterra de 1509 a 1547.

Henrique VIII, nos primeiros tempos do seu governo, mostrou`se zeloso pela fé tradicional. Em 1521, contra a obra de Lutero sobre `O Cativeiro babilônico` escreveu uma `Afirmação dos Sete Sacramentos`, que lhe valeu do Papa Leão X o título de `Defensor da Fé`. Não obstante, havia de ser arrastado por seus afetos. Em 1509 Henrique esposou Catarina de Aragão, viúva de seu irmão Artur. Deste casamento teve vários filhos, dos quais um só, Maria Tudor, ficou em vida. Com o tempo, Henrique apaixonou`se por uma cortesã: Ana de Boleyn. Por isto procurou dissolver o seu casamento com Catarina, alegando que fora nulo, porque os nubentes eram cunhados em primeiro grau. Tal pretexto era falso, porque o Papa Júlio II dera a Henrique explícita dispensa para se casar com Catarina; somente após dezoito anos de vida conjugal, Henrique trazia à tona esse `impedimento`. A corte real favorecia os anseios do rei. A rainha Catarina apelava para a Santa Sé, pedindo justiça. O Papa Clemente VII resolveu entregar o exame do processo a um tribunal de Roma (julho 1529).

Em janeiro de 1531 o Papa proibiu a Henrique novas núpcias enquanto a causa estivesse sob julgamento. O rei, vendo que pouca esperança lhe restava, quis obter a dissolução do seu casamento da parte da hierarquia da Inglaterra; Thomas Cromwell, obscuro advogado, que adquirira influência sobre o rei, aconselhava a Henrique que, a exemplo dos príncipes alemães, se separasse de Roma. Em fevereiro de 1531 uma assembléia do clero, instigada pelo rei, proclamou Henrique `Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra`, com a cláusula `na medida em que a Lei de Cristo o permite`. Em 1532 o rei elevou à sé arquiepiscopal de Cantuária Thomas Cranmer, que numa viagem à Alemanha tinha entrado em contato com o luteranismo; Cranmer resolveu declarar nulo o casamento de Henrique VIII, de modo que este se casou em 1533 com Ana Boleyn. O Papa respondeu excomungando o monarca e finalmente declarando válido o casamento com Catarina. O cisma estava às portas: em novembro de 1534, o Parlamento inglês votou o `Ato de Supremacia`, que proclamava ser o rei o Único e Supremo Chefe da Igreja na Inglaterra; os súditos que não reconhecessem este Ato, seriam punidos com a morte. A grande maioria do clero submeteu`se, talvez porque acostumada ao conceito de Igreja Nacional e bastante mundanizada. Resistiram, porém, até a morte vários leigos e clérigos, dos quais se destacam o leito Tomás Moro e o bispo John Fisher. Muitos mosteiros foram fechados, relíquias e imagens foram destruídas.

Henrique VIII teve por sucessor um filho de dez anos, que lhe nascera do seu terceiro matrimônio. Este menino, Eduardo VI, teve como tutores o Duque de Somerset e o de Northumberland, que, juntamente com o arcebispo Cranmer, muito trabalharam pela introdução da teologia protestante na Inglaterra.

Em 1553 foi promulgada uma Confissão de Fé em 42 artigos, que seguia principalmente Calvino no tocante à predestinação e à Eucaristia, mostrando-se em outros pontos luterana, zvingliana e até católica; com algumas modificações, ainda é a regra de fé da Comunhão Anglicana (também dita episcopaliana, porque não aboliu a hierarquia da Igreja com seus bispos).

Seguiu`se a rainha Maria Tudor (1553-1558), que revolveu a situação. Era católica convicta, e pôs-se a trabalhar, apoiada por seu primo, o Cardeal Reginaldo Pole, Legado Papal, em prol da restauração católica. Em 1554 o Parlamento votou a nova união da Inglaterra com a Santa Sé. Os prelados depostos por Eduardo VI foram restituídos às suas sedes, enquanto os hereges, vindos do estrangeiro, foram expulsos.

Maria Tudor morreu prematuramente (1538); pouco depois do seu desaparecimento extingue`se a reação católica na Inglaterra. A sua sucessora, a rainha Elisabete I (1558-1603) empenhou`se durante quase cinqüenta anos pela implantação de teses protestantes do continente na Inglaterra.

É sobre este pano de fundo que ocorrem os acontecimentos contemporâneos.

2. A DISSIDÊNCIA DE ANGLICANOS

Sabemos que a 21/11/1992 o Sínodo Geral da Província da Inglaterra resolveu aprovar a ordenação de mulheres para o presbiterado. Esta resolução foi ratificada pelo Parlamento Inglês em 1993 e assinada pela rainha Elisabete II. Aos 22/02/1994 o Sínodo Geral da Comunhão Anglicana inseriu no seu Código de Direito Canônico o texto relativo à ordenação de mulheres.

Isto provocou contestação no seio da Comunhão Anglicana, de modo que centenas de ministros (pastores)1 e alguns bispos anglicanos pediram admissão na Igreja Católica ou, ao menos, manifestaram o desejo de passar para o Catolicismo. Somente no dia 24/02/1994 sete bispos e setecentos e doze ministros subscreveram um documento em que anunciavam a sua conversão ao Catolicismo. Afirmavam não estar abandonando a Comunhão Anglicana, mas ter sido abandonados por esta.

Os Bispos católicos da Inglaterra reuniram`se para definir o seu modo de proceder no caso e estipularam normas que foram aprovadas pela Santa Sé. Eis o que consta :

Os Bispos e ministros anglicanos poderão ser recebidos na Igreja Católica desde que percorram um período de catequese e discernimento. Ao fim desse período emitirão a profissão da fé católica. Os que quiserem ser recebidos como clérigos, deverão receber nova ordenação sacerdotal, visto que as ordenações anglicanas forma por leão XIII, após delicado estudo dos fatos e documentos, declaradas inválidas. Poderão, porém, continuar sua vida conjugal, caso estejam casados. A acolhida desses clérigos anglicanos será individual, após o exame de caso por caso, e tendo em vista a sua vontade livre e claramente disposta a se integrar na Igreja Católica como ela é; não será criada uma prelazia ou uma diocese própria, com seus ritos, para esses ex`ministros anglicanos.

Julga`se que a metade dos ministros anglicanos que desejam entrar na Igreja, estão casados. Em conseqüência, haverá um número considerável de padres casados na Igreja Católica; no Canadá e nos Estados Unidos já foram anteriormente recebidos na Igreja ministros anglicanos e pastores protestantes casados, com a permissão de viverem seu casamento. A Santa Sé não pretende encaminhar esses clérigos para dioceses de rito oriental (onde não há a obrigação do celibato sacerdotal), mas deseja integrá`los por completo dentro do clero diocesano ocidental da Igreja Católica. Ao mesmo tempo que faz tal concessão aos ministros casados que se convertem, a Igreja declara que isto não significa questionamento ou revisão da lei do celibato para os clérigos de rito latino.

Eis por que a Santa Sé pede à hierarquia católica e aos ministros anglicanos que não se precipitem, a fim de que o passo da integração na Igreja seja plenamente consciente e deliberado.

Pergunta`se agora :

3. POR QUE TIDAS COMO INVÁLIDAS AS ORDENAÇÕES ANGLICANA ?

1. Eis os acontecimentos do século XVI subjacentes à questão:

A rainha Elisabete (1558 à 1603) quis implantar definitivamente princípios protestantes na Inglaterra. Aos 29/04/1559 o `Ato de Supremacia` conferia à rainha o título de `Moderadora Suprema da Igreja da Inglaterra`, exigindo de todos os cidadãos juramento de fidelidade à autoridade religiosa de Elisabete. Os Bispos recusaram`se a prestar tal homenagem, exceto um só, Kitchen, bispo de Llandaff, o qual, tendo dado resposta evasiva, conseguiu conservar a sua sé, mas de então por diante se absteve de qualquer função episcopal; os demais pastores diocesanos foram depostos e encarcerados. Assim é que em 1559 não restava na Igreja de Elisabete mais nenhum bispo em atividade, era absolutamente necessário proceder à criação de nova hierarquia.

Em vista disto, foi escolhido como arcebispo de Cantuária um antigo capelão da rainha, Mateus Parker, que recebeu a ordenação episcopal aos 17 de dezembro de 1559, às 5 horas da manhã na capela de Lamberth, segundo um ritual novo, chamado `Ordinal`, confeccionado sob o rei Eduardo VI (1547 à 1553). O sagrante foi um Bispo deposto, que se quis prestar a tal ofício: William Barlon, ex`titular da diocese de Bath, ordenado ainda sob Henrique VIII segundo o Ritual da Igreja Católica.

A ordenação episcopal de Mateus Parker ficou muito tempo envolvida em silêncio, não se sabe por que motivo. Isto deu ocasião a que alguns autores negassem a realidade histórica da mesma; outros forjaram a lenda do `Nag`s Head` (cabeça de cavalo). Scory teria `ordenado` Parker, impondo`lhe uma Bíblia sobre a cabeça e dizendo-lhe : `Recebe o poder de pregar a palavra de Deus em sua pureza`; está claro que tal proceder jamais poderia ser tido como ordenação episcopal. Hoje em dia, porém, não há historiador que negue a realidade da cerimônia de Lamberth.

De 21 de dezembro de 1559 a 1º de setembro de 1560, o novo arcebispo de Cantuária, seguindo o rito de Eduardo VI, ordenou treze bispos, os quais passaram a integrar a hierarquia da Inglaterra. Esta, como se vê, foi reconstituída, dependente toda de Mateus Parker. O problema, portanto, consiste agora em saber se Parker era realmente bispo, capaz de transmitir a ordem episcopal à hierarquia anglicana.

Nos séc. XVII e XVIII os teólogos católicos (aos quais se associavam no caso os orientais ortodoxos cismáticos) se mostraram contrários a tal hipótese; era, por conseguinte, praxe reordenar os ministros anglicanos que se convertessem ao Catolicismo.

2. No século XIX o chamado `Movimento de Oxford`, favorecendo entre os anglicanos o estudo da Tradição cristã, provocou numerosas conversões à Igreja Católica. Percebia`se que a volta dos irmãos anglicanos a Roma seria muito facilitada se a Santa Sé um dia julgasse possível reconhecer a validade das ordenações anglicanas. Após a publicação de livros e artigos de vários teólogos sobre o assunto, o Papa Leão XIII resolveu mandar estudar exaustivamente a questão, no início de 1896, portanto, nomeou para isto uma comissão internacional de teólogos, recrutada entre partidários e adversários das ordenações anglicanas. Os arquivos do Vaticano foram postos à disposição desses estudiosos.

A comissão se reunião em doze sessões de 14 de março a 7 de maio de 1896. Após analisar todas as peças do arquivo `pró` e `contra`, e após comparar entre si as fórmulas de ordenação dos vários grupos cristãos cismáticos, a comissão, aos 7 de junho de 1896, apresentou suas conclusões a uma junta de Cardeais; estes, após um mês de ponderação, confirmaram o resultado do minucioso inquérito, declarando que as ordenações anglicanas deviam ser tidas realmente como nulas.

Diz`se que Leão XIII esperava ardentemente poder dar aos anglicanos uma resposta agradável... Esperava, se isto não fosse possível, ao menos abster-se de algum pronunciamento sobre o assunto, a fim de não melindrar os ânimos. Verificou-se porém, que os estudos prévios haviam chamado a atenção do público a tal ponto que a observância do silêncio por parte do Papa seria ambígua, capaz mesmo de induzir em erro. Diante disto, Leão XIII ainda dedicou três meses à reflexão, após os quais publicou, aos 13 de setembro de 1896, a Bula `Apostolicae Curae`.

4. QUAL O CONTEÚDO DESSE DOCUMENTO ?

No preâmbulo, o Pontífice lembrava a simpatia que sempre devotara aos movimentos de união entre os cristãos; recordava os esforços que desempenhara nesse sentido, mediante a carta `aos ingleses que procuram o Reino de Deus na unidade da fé` (15 de abril de 1895) assim como mediante a epístola dirigida ao mundo inteiro sobre as condições de unidade da Igreja. Declarava, a seguir, haver sido movido pelas mais benévolas disposições no estudo do assunto que Sua Santidade passava a abordar.

O S. Padre expunha então as três razões pelas quais se via obrigado a declarar nulas as ordenações anglicanas :

1) A praxe da Igreja : desde o séc. XVI a Santa Sé sempre se recusava a reconhecer a validade do sacerdócio anglicano; ora `consuetudo optima legum interpres` ( o costume é o melhor intérprete das leis).

2) insuficiência do rito. Nos sacramentos os elementos essenciais são os sinais sensíveis chamados em linguagem teológica `matéria` e `forma`. A matéria é algo assaz indeterminado, cujo sentido em cada sacramento é explicitado pela forma ou pelas palavras que acompanham o uso da respectiva matéria. Ora na Ordem a matéria é a imposição das mãos, sinal que de maneira geral significa comunicação de um dom ou de uma graça; o `Ordinal` de Eduardo VI (segundo o qual Mateus Parker foi sagrado) prescrevia, como forma concomitante, as palavras: `Accipe Spiritum Sanctum` (Recebe o Espírito Santo). Tal fórmula é assaz indeterminada, ficando longe de indicar qualquer atividade especificamente sacerdotal; e isto, porque os autores do `Ordinal` trataram propositadamente de remover do antigo Ritual todas as palavras que indicavam poderes sacerdotais e, em particular, o de consagrar a Eucaristia e oferecer o S. Sacrifício da Missa (poder sacerdotal por excelência). Tal cancelamento de vocábulos não era senão a expressão da tese protestante segundo a qual a Eucaristia não é genuína oferta sacrifical, nem é o sacrifício de Cristo presente sobre o altar.

Verdade é que os anglicanos em 1662 acrescentaram aos vocábulos `Accipe Spiritum Sanctum` o complemento `ad officium et opus prebytem` ou `episcopi` (isto é, para o encargo e a atividade de presbítero ou de bispo). Este acréscimo, porém, se fez tarde demais, quando haviam sido insuficientes ou inválidas as ordenações realizadas durante um século, além do que, as palavras complementares ainda não especificavam os poderes transmitidos pela imposição das mãos. Donde se depreende, concluía o Papa Leão XIII, a deficiência do rito ao qual Mateus Parker e em geral a hierarquia inglesa deviam as suas ordenações; estas só podiam ser nulas.

3) Falta de intenção devida. Sabe`se que, para a validade de qualquer sacramento, se requer, da parte do ministro, a intenção de fazer aquilo que faz Cristo por meio da sua Igreja, pois é Cristo quem age através dos sacramentos. Ora o `Ordinal`de Eduardo VI se deve a retoques infligidos ao antigo Ritual, justamente para exprimir um desígnio diferente do da Igreja, ou seja, para exprimir a intenção de ordenar ministros que não consagrem a Eucaristia nem ofereçam o S. Sacrifício da Missa. Disto se segue que os anglicanos conceberam a intenção de fazer coisa diversa da que faz a Igreja; por conseguinte, não administraram o sacramento da Ordem.

Seguindo a Declaração de Leão XIII, até hoje a Igreja não reconhece as ordenações anglicanas. Após Leão XIII, e especialmente nos últimos decênios, foi publicada copiosa bibliografia sobre a questão; os teólogos têm posto em foco novos aspectos da mesma, que poderiam fundamentar uma revisão da temática.

Outro aspecto da problemática existente na Inglaterra contemporânea vai abordado sob o título seguinte.

5. A AUTORIDADE NA IGREJA

Numa Carta Pastoral lida em todas as igrejas católicas da Inglaterra em 02/05/1993, os Bispos Católicos tentaram mostrar que o problema oriundo na Comunhão Anglicana, em última análise, tem seu cerne mais profundo na questão da autoridade na Igreja, como, aliás, confessaram vários ministros e fiéis anglicanos; julgam que a decisão de ordenar mulheres não é da competência de algum Sínodo da Comunhão Anglicana nem deveria ser tomada pelos anglicanos independentemente do que pensam os cristãos católicos e ortodoxos. Não poucos dos anglicanos descontentes reconhecem o valor e a importância da autoridade do Papa, que goza da promessa da assistência de Cristo e que é fator de unidade doutrinária entre os fiéis cristãos.

Mais ainda: o fato de que a palavra final nas resoluções do Anglicanismo toque ao rei ou à rainha da Inglaterra por decreto do Parlamento Inglês, datado de 1534, torna`se cada vez mais estranho e de aceitação muito difícil; com efeito, tal atribuição de poderes ao monarca não vem de Cristo nem tem fundamento na Tradição, mas, ao contrário, contraste com quanto se lê no Evangelho (cf. Mt 16, 16-19; e Lc 22, 31s; Jo 21, 15-17); é uma inovação do século XVI, que quebra a Tradição do Cristianismo. Quem reflete hoje sobre tal situação criada no século XVI em virtude da exaltação de ânimos suscitada na Inglaterra do passado, verifica que, em nossos dias, não há razão para sustentar a proclamação da chefia do rei da Inglaterra sobre a Igreja; parece não ter sentido o fato da Established Church, Igreja do Estado, submetida à rainha, `Suprema Moderadora da Igreja`.

Na Inglaterra anglicana sempre conviveram duas tendências: a da High Church, Alta Igreja, dita `anglocatólica`, voltada para Roma e para o ministério papal; e a da Low Church, Baixa Igreja, de orientação marcadamente protestante. Esta última, à qual pertence o atual arcebispo de Cantuária, Dr. Georges Carey, prevaleceu no último Sínodo da Inglaterra, que permitiu a ordenação de mulheres.

Alguns fatos complementares têm contribuído para tornar pesado o ambiente na Inglaterra, como passamos a ver :

6. A CONVERSÃO DA DUQUESA DE KENT

Aos 14/01/1994 foi recebida na Igreja Católica, proveniente do Anglicanismo, a Duquesa de Kent, esposa do Duque Edward de Kent, primo da rainha Elisabete II e décimo oitavo candidato à sucessão no trono da Inglaterra. O fato se revestiu de especial importância, pois se trata de uma pessoa da família real, da qual procede a rainha, Chefe da Igreja de Estado. A cerimônia teve caráter privado e resultou de uma longa evolução interior da Duquesa.

Esta personalidade, batizada no Anglicanismo com o nome de Katherine Arthington Worsley, esposou em 1961 o Duque de Kent, e com 61 anos de idade se filiou ao Catolicismo. A cerimônia ocorreu na capela particular do arcebispo de Westiminster, Cardeal Georges Basil Hume, em presença de duas testemunhas, do esposo e dos três filhos da Duquesa; no decorrer da Missa então celebrada, a mesma recebeu o sacramento da Crisma e a S. Comunhão. Apesar do caráter reservado do rito, o fato teve ampla repercussão, pois a Duquesa é figura muito conhecida na sociedade inglesa e patrona de numerosas obras de beneficência. As tensões se agravaram na Inglaterra, visto que circularam e circulam rumores segundo os quais a princesa Diana, esposa (separada) do herdeiro do trono, e mão e um eventual futuro rei, está interessada em ingressar na Igreja Católica.

O caso dessa eminente figura convertida não é singular na Inglaterra. Desde o século passado, vêm`se registrando conversões de vulto para o Catolicismo:

Assim o futuro Cardeal John Newman (1801-1890) se converteu em 1845, em conseqüência de estudos feitos na literatura cristã dos primeiros séculos, que lhe mostraram a continuidade da Igreja Católica a partir de Cristo e do Apóstolo Pedro;

Em 1903 converteu`se Roberto Hugh Benson (1871-1914), filho do arcebispo de Cantuária, Primaz da Comunhão Anglicana; ordenado presbítero, tornou`se o autor do famoso romance: `O Senhor do Mundo`, que trata da vinda do Anticristo;

Em 1917 converteu`se o ministro anglicano Ronald Knox (1888-1957), que se tornou presbítero católico, e escreveu livros de espiritualidade;

Em 1922 foi a vez de Gilbert Keith Chesterton (1874-19336), que se tornou famoso escritor católico; em 1930 Evelyn Waugh (1903-1966), escritor

em 1927 Grahuam Green (1904-1991), escritor.

Essas figuras, conhecidas por seus escritos, vêm a ser a ponta de um iceberg (montanha de gelo) que conta milhares de outras pessoas (homens e mulheres). Julga`se, aliás, que nos últimos anos cerca de vinte mil anglicanos por ano se tornaram católicos.

7. A REAÇÃO DA IMPRENSA

A passagem de numerosos anglicanos para o Catolicismo suscitou, da parte da imprensa, uma celeuma violenta, que já chegou ao fim. Parecer ter revivido a mentalidade dos séculos XVI e XVII, que considerava o Catolicismo subversivo, e acusava os católicos de traição, crime sujeito à pena de morte. Leram`se nos jornais testemunhos que lamentavam a revogação, em 1829, das leis que proibiam qualquer modalidade de culto católico e condenavam os padres clandestinos ao patíbulo da morte por terem celebrado uma Missa. Escrevia Ferdinand Mount, diretor do prestigioso Times Literary Supplement, na revista hebdomadária Speculator: `Será possível que um dia teremos de reconhecer que a emancipação dos católicos foi erro da nossa parte?` Vários autores anglicanos se manifestaram, pela imprensa, suspeitando haver um complô papista contra a Igreja do Estado.

A essas invectivas os católicos responderam com prudência e compreensão, procurando acolher os irmãos convertidos, sem ferir a sensibilidade dos compatriotas anglicanos. Os Bispos católicos têm procurado evitar qualquer atitude que implique triunfalismo e hostilidade. O semanário Tablet, o melhor da imprensa católica, respondeu aos ataques num editorial digno e respeitoso, que punha fim a uma atitude de silêncio e expectativa; dirigiu`se a católicos e anglicanos, lembrando`lhes que, nesta época de secularismo e hedonismo, aos cristãos tocam tarefas que os põem acima de qualquer polêmica, a saber: a recristianização da Grã`Bretanha, a recondução do país aos princípios do Evangelho, ao amor de Deus e do próximo.

A celeuma já passou, cedendo a uma tomada de consciência da necessidade de se continuar o diálogo entre católicos e anglicanos; apesar da fragorosa decisão unilateral do Sínodo Anglicano, é preciso que os irmãos prossigam o seu trabalho de reaproximação e procura de soluções para os problemas religiosos que lhes interessam.

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