Doutrina Católica

DOUTRINA CATÓLICA

Documento--"Libertatis Nuntius "-

(Cardeal Joseph Ratzinger)-

-INTRODUÇÃO

O Evangelho de Jesus Cristo é uma mensagem de liberdade e força de libertação. Esta verdade essencial tornou-se, nos últimos anos, objeto da reflexão dos teólogos, com uma nova atenção que, em si mesma, é rica de promessas.A libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça. Ela exige, por uma conseqüência lógica, a libertação de muitas outras escravidões, de ordem cultural, econômica, social e política, que, em última análise, derivam todas do pecado e constituem outros tantos obstáculos que impedem os homens de viver segundo a própria dignidade. Discernir com clareza o que é fundamental e o que faz parte das conseqüências é condição indispensável para uma reflexão teológica sobre a libertação.

Na verdade, diante da urgência dos problemas, alguns são levados a acentuar unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando a impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado e, portanto, de não atribuir-lhe praticamente a importância primordial que lhe compete. A apresentação dos problemas por eles proposta torna-se, por isso, confusa e ambígua. Outros, com a intenção de chegar a um conhecimento mais exato das causas das escravidões que desejam eliminar, servem-se, sem a suficiente precaução crítica, de instrumentos de pensamento que é difícil, e até mesmo impossível, purificar de uma inspiração ideológica incompatível com a fé cristã e com as exigências éticas que dela derivam.(....)

Esta advertência não deve, de modo algum, ser interpretada como uma desaprovação de todos aqueles que querem responder generosamente e com autêntico espírito evangélico à "opção preferencial pelos pobres". Nem pode, de maneira alguma, servir de pretexto para aqueles que se refugiam numa atitude de neutralidade e de indiferença diante dos trágicos e urgentes problemas da miséria e da injustiça. Pelo contrário, é ditada pela certeza de que os graves desvios ideológicos que ela aponta levam inevitavelmente a trair a causa dos pobres. Mais do que nunca, convém que grande número de cristãos, com uma fé esclarecida e decididos a viver a vida cristã na sua totalidade, se empenhem, por amor a seus irmãos deserdados, oprimidos ou perseguidos, na luta pela justiça, pela liberdade e pela dignidade humana. Hoje mais do que nunca, a Igreja propõe-se a condenar os abusos, as injustiças e os atentados à liberdade, onde quer que eles aconteçam e quaisquer que sejam seus autores, e lutar, com os seus próprios meios, pela defesa e promoção dos direitos do homem, especialmente na pessoa dos pobres.(....)

2. A experiência radical da liberdade cristã constitui aqui o primeiro ponto de referência. Cristo, nosso Libertador, libertou-nos do pecado e da escravidão da lei e da carne, que constitui a marca da condição do homem pecador. É, pois, a vida nova da graça, fruto da justificação, que nos torna livres. Isto significa que a mais radical das escravidões é a escravidão do pecado. As demais formas de escravidão encontram, pois, na escravidão do pecado, a sua raiz mais profunda. É por isso que liberdade, no pleno sentido cristão, caracterizada pela vida no Espírito, não pode ser confundida com a licença de ceder aos desejos da carne. Ela é vida nova na caridade.

3. As "teologias da libertação" recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai. Por isso, a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja às vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção.

4. Jamais se apagará da memória de Israel o episódio que originou o Êxodo. Ele é o ponto de referência quando, após a destruição de Jerusalém e o exílio de Babilônia, o povo eleito vive na esperança de uma nova libertação e, para além dessa, na expectativa de uma libertação definitiva. Nessa experiência, Deus é reconhecido como o Libertador. Ele estabelecerá com seu povo uma nova Aliança, marcada pelo dom do seu Espírito e pela conversão dos corações(...)

13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é, sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo, a Carta a Filemon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social.

14. Não se pode, portanto, restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina "pecado social". Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas "estruturas" econômicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso, a criação de um "homem novo" dependeria da instauração de estruturas econômicas e sócio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniqüidade, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são conseqüências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra, pois, nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viver e agir como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do autodomínio e do exercício das virtudes.(...)

4. O Santo Padre insistiu em diversas oportunidades neste tema, particularmente nas encíclicas Redemptor hominis, Dives in Misericordia e Laborem exercens. As numerosas intervenções que relembram a doutrina dos direitos do homem tocam diretamente nos problemas da libertação da pessoa humana diante dos diversos tipos de opressão de que é vítima. É preciso citar, especialmente neste contexto, o discurso proferido diante da XXXVI Assembléia geral da ONU, em Nova Iorque, no dia 2 de outubro de 1979. No dia 28 de janeiro do mesmo ano, João Paulo II , ao abrir a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano , em Puebla , havia recordado que a verdade completa sobre o homem é a base da verdadeira libertação. Este texto constitui um documento de referência direta para a teologia da libertação(....)

1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as "teologias da libertação" a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e que serve de ponto de referência, exerce a função de principio determinante. Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo, podem-se distinguir diversos componentes.2. Na lógica do pensamento marxista, a "análise" não é dissociável da práxis e da concepção da história à qual esta práxis está ligada. A análise é, pois, um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do proletariado investido de sua missão histórica.(...)

5. A práxis e a verdade que dela deriva são práxis e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes. Existe, pois, uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração que se denuncia). A verdade é a verdade de classe não há verdade senão no combate da classe revolucionária.6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contraviolência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.7. A luta de classes é, pois, apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, "faz-se" a verdade, age-se "cientificamente". Em conseqüência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e corajosas, perde totalmente o sentido.

8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos, éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autônomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.

(...)3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns "teólogos da libertação" um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção. Com efeito, estes teólogos, mais ou menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles, constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade vêem-se, deste modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta perspectiva, substitui-se a ortodoxia, como regra correta da fé, pela idéia da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado, conferido a um determinado tipo de práxis. Na realidade, esta última é a práxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em consideração sem dúvida, a práxis da Igreja e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa práxis é decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé(...)

5. A nova hermenêutica inserida nas "teologias da libertação" conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente uma leitura política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações bíblicas, mas em fazer desta dimensão a dimensão principal e exclusiva, o que leva a urna leitura redutiva da Escritura.(.....)

16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que recebemos de Cristo. É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo, a força triunfante do amor de Deus que nos é dada.

XI - ORIENTAÇÕES(....)

7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de acordo com a dignidade humana. Por isso, o recurso sistemático e deliberado à violência cega, venha esta de um lado ou de outro, deve ser condenado. Pôr a confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão, pois, mudanças sociais que estejam realmente a serviço do homem senão fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior. Pois, na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é própria de urna antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.(...)

10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de injustiças, não é, pois, ipso facto o começo da instauração de um regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir.

11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças. Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de realização(...)

O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou a presente Instrução , deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.

Roma , Sede da Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé, 6 de agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.

JOSEPH Card. RATZINGER--------Prefeito

?ALBERTO BOVONE

Arcebispo tit. de Cesarea de Numidia

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