Doutrina Catolica

Doutrina Catolica

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VOZ DO PASTOR

CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID

Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro 16 de novembro de 2004

O altar do Senhor

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Uma das realidades mais sagradas dos edifícios das igrejas católicas é o altar. Ele ocupa, normalmente, o lugar mais digno, central e visível de nossas igrejas. (À Capela do Santíssimo hoje se reserva um local, também especial, onde reina o maior silêncio e recolhimento diante da Presença real e sacramental do Cristo glorioso, na Eucaristia).

Reconhecemos uma igreja católica, logo ao entrar, pela centralidade do altar. Seria longo historiar essa presença do altar na Antiga e Nova Aliança. Faz parte da História de Israel. O altar é erguido em circunstâncias e locais importantes, constituindo-se em reconhecimento da soberania e do senhorio absoluto do único Deus verdadeiro. Servia ainda, especialmente no período patriarcal, para selar compromissos solenes e alianças de duração perene. Eram marcos de juramento de fidelidade.

No livro sagrado do Gênesis a primeira vez que aparece o altar é no episódio do final do Dilúvio. Noé, com toda a sua família, salva de toda aquela tragédia, “construiu um altar ao Senhor para o holocausto”, agradecendo a proteção e a salvação de suas vidas. Aparece no céu o arco-íris da aliança e da confiança em Deus para todo o sempre (Gn. 8,20; 9,12-16). O patriarca Abraão ergue um altar em “honra do Senhor” em sinal de gratidão pelos benefícios recebidos (Gn 12,7). Jacó celebra a chegada feliz à abençoada terra de Canaã com a construção de um altar como sinal de consagração de toda aquela terra, recebida de Deus como propriedade para o povo de Israel nascente (Gn 33-20).

Mais tarde Moisés, sob instrução divina dá normas precisas para a construção dos altares destinados ao oferecimento de holocaustos e sacrifícios. Tudo isso se constituía em atitudes de adoração, de culto e reconhecimento. A manifestação religiosa do povo estava vinculada estreitamente ao altar e aos dons que se ofereciam sobre ele. Podemos afirmar com segurança, que os sacrifícios, abundantemente oferecidos na Antiga Aliança, prefiguravam e preparavam o grande sacrifício, oferecido por Cristo no altar da Cruz como gesto eficaz da salvação de todo o gênero humano. É ali o ponto central da história humana, que nos atinge e envolve.

O altar se apresenta hoje como uma grande mesa, confeccionada com arte: em madeira, mármore ou granito. É uma evolução do sepulcro dos mártires da igreja primitiva sobre os quais se oferecia o sacrifício da Missa. A lápide do sepulcro dos mártires relembrava o altar da Cruz, donde as nossas vitimas da fé e do amor hauriam força e inspiração para o supremo sacrifício de suas vidas. A comunidade cristã se reunia, com reverência e saudade, na penumbra mística das Catacumbas, para a luta sangrenta que os aguardava... O próprio livro do Apocalipse nos apresenta os santos mártires, revestidos com as vestes brancas da vitória, oferecendo ao Altíssimo o incenso de suas preces e oblações (cf. Ap 6,9 e 8, 3).

Mas, jamais podemos deixar de ressaltar a mesa como o local em que a família se reúne para as refeições. É local do banquete festivo da comunidade primigênia, a família. Hoje toda a comunidade católica se reúne ao redor da mesa e a partir dela. Sobre essa mesa nos é oferecido o “pão da vida” e a “bebida que jorra até à vida eterna” como nos ensinou o Mestre da Galiléia antes da sua Paixão (veja todo o Capítulo 6 de São João). Os escritos apostólicos nos falam com profusão desse banquete sagrado. A comunidade permanecia unida e coesa pela “solidariedade e fração do pão”, sinônimos da Eucaristia. Dois seguidores de Jesus se chocaram com o mistério da Cruz, desandando para o abandono de tudo, levados pelo desânimo e decepção. Jesus vai-lhes ao encontro, caminha com eles, expõe-lhes o sentido velado das Escrituras e dá-se a conhecer “ao partir da fração do pão” (Lc 24,25-31). São Paulo nos descreve a ceia do Senhor (“ágape”) em seu sentido mais profundo: a tradição acolhida, as exigências e a própria história da instituição do sacerdócio e da Eucaristia (1 Co 11,17-34). Cristo mesmo se reuniu com os Apóstolos ao redor da mesa para celebrar a Páscoa da despedida com aqueles que “não mais considerava como servos, mas como amigos” (Jo 15,15). Ao redor dessa mesa Jesus dá as últimas e mais incisivas disposições para seus amigos: “Filhinhos amai-vos uns aos outros como eu vós amei” (Jo 13,34).

Hoje, os sacerdotes, relembrando aquela mesa sagrada, beijam o altar, antes de iniciar a missa, por reverência e gratidão por tudo o que acontecera ao redor da mesa da “Última Ceia”. Imaginemo-nos, agora, entrando em uma igreja católica, olhando para o altar... Vamos, carregados com todo o peso da nossa existência: angústias, propósitos, alegrias e esperanças. Muitos irmãos e irmãs nos contemplam com grande amor e desejo de partilha comum. Levamos o passado, o presente e o nosso futuro. Tudo adquire novo sentido ao contato do altar. O que era apenas humano e terreno se transforma em divino e celeste pela força de Cristo, simbolizado pelo altar. Aliás, vamos colocar tudo em cima do altar para que o Corpo e Sangue de Cristo possam transmutar tudo em graça para nós e para o mundo. O ofertório que fazemos reprisa todos os ofertórios já realizados anteriormente. Jesus muda o pão e o vinho na realidade de sua existência gloriosa nos céus e, agora, aqui, também conosco. Anseia por fazer-nos semelhantes a Ele, bem parecidos com Ele, ao ponto de podermos dizer com São Paulo: “Já não sou eu que vivo, mas é o Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Mas, esse altar eucarístico, nos dirige uma forte interpelação: “Que todos sejam um”, aglutinados como grãos de trigo, feitos pão, gotinhas de água que se misturam ao Sangue purificador de Cristo. Estabelece-se, assim, uma perfeita união comum que pressupõe e exige a comum+união com o Cristo glorioso. Como, na Antiga Aliança, o altar pede de nós um compromisso, um juramento: faremos tudo para que ninguém, em nossas comunidades, passe fome, como nos alerta São Paulo no capítulo 11 da primeira carta aos Coríntios: “Enquanto um passa fome, o outro se embebeda...” (1Co 11,21). Tornar-nos-íamos “réus do corpo e sangue do Senhor” (Ibidem, verso 27). Isso não pode acontecer! Lançamos um último olhar ao altar, antes de partir para as responsabilidades do dia-a-dia. Sabemos que a força do sacrifício de Cristo nos acompanha e fortalece. Caminharemos pelo rumo que Ele, como caminho, nos assinala; viveremos de sua verdade e vida: com novo ardor com mais lógica no amor e com maior busca dos ideais evangélicos.

Acompanha-nos a imagem do altar para termos força e coragem, oferecendo nossas vidas como “hóstias agradáveis ao Senhor” (1 Pe 2,5).

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VOZ DO PASTOR

CARDEAL D. EUSÉBIO OSCAR SCHEID

Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro

23 de novembro de 2004

O Grande Mistério

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Estamos a celebrar o Ano Eucarístico que o Santo Padre nos propõe como repensamento do “mistério central” da fé e da vida cristã. Esse mistério se aninha no mais íntimo do Coração de Cristo como seu segredo maior, a demonstração palpável do que jamais caberia em palavras. Era a resposta cabal e definitiva de um Deus, feito homem para nos divinizar.

Para adentrar um pouco mais na “psicologia” daquela hora, ansiosamente esperada por Jesus, passaremos em resenha alguns detalhes do que se passara no dia da instituição da Eucaristia. O dia já começara com ares diferentes. Até o sol, brilhante e festivo, passaria para segundo plano, diante da solenidade do “haggadah”, memorial da saída do Povo Eleito da escravidão do Egito, dia da ceia pascal, que dera início à caminhada, cheia de peripécias, em demanda da terra da promessa. Dia cheio de recordação e de mistério!

Bem cedo Jesus manda adiante dois discípulos – do grupo dos Doze – Pedro e João (nunca saberemos a razão dessa escolha) para prepararem a ceia de despedida, a “última ceia”. Tudo envolto em mistérios: seguir um homem, carregando um cântaro d’água; abordá-lo com pergunta direta e decisiva; sala aparelhada, num sobrado; preparar a ceia da Páscoa segundo minucioso ritual. Escolher um cordeiro ou cabrito, novinho de um ano apenas, todo sem defeitos, matá-lo ao cair da tarde, esfolá-lo, deixá-lo pronto para ser assado ao fogo vivo, para ser saboreado – às pressas – junto com pães ázimos e ervas amargas. Havia que providenciar tochas ou candelabros, plantas ornamentais, cadeiras reclinadas, vasilhas com abundante água para as abluções. (É evidente, que aqui entrou em cena o grupo das extraordinárias mulheres “que vinham acompanhando Jesus desde a Galiléia”).

Pairava no ar um cheiro de sangue, provindo da história da matança dos primogênitos do Egito, a matança do cordeiro pascal, o sangue que Jesus iria derramar no Getsêmani, na flagelação e coroação de espinhos. Jesus resumia esse verdadeiro banho de sangue no Sacramento do seu Corpo e Sangue. Reinava no ar um clima de traição, de abandono, de fracasso total... Um deles o havia de trair (quem deles?), outro se deixaria intimidar por simples porteira, um galo cantaria tristemente, alguém se enforcaria!... Não cabe em termos tudo o que se passava. Quando chegou A HORA, prevista e anunciada tantas vezes por Jesus, “Ele amou os seus até o ponto extremo a que quisera chegar” (Jo 13,1). Subiu com eles para o andar de cima e, no gesto mais incalculável, lava os pés dos discípulos, mesmo sob os protestos de Pedro e a anuência inerte dos demais. Jesus começa seu sermão de despedida. Fala rasgado, às claras. Todos pareciam entendê-lo, mesmo ao falar-lhes – com tonalidade profética – do Espírito Consolador e Advogado, Intérprete e Amigo. Apelava para a caridade e para a união de todos. Jesus, em atitude solene, se levanta, toma o pão ázimo, abençoa e dá como “anámnese”, recordação – memória, presença viva, sob a roupagem de pão repartido: “Tomai e comei, isto sou eu, para lembrança a vocês”. “Tomai e bebei, isto é o meu sangue, a ser derramado como pacto da nova aliança. Dei-vos todos os meus eternos segredos. Por isso, já não vos chamo servos, mas AMIGOS (Jo 15,13), Fazei isto como saudosa lembrança por mim!” (Lc 22,19).

Entrementes, Judas Iscariotes saira “para fazer o que tencionava” e ... o mundo se tornara escuro, anoitecera por completo. Traição ao Salvador, traição a um Deus-Amigo, ao Libertador, maior que Moisés. Como explicar uma traição dessas? Fica-nos apenas o interrogativo. Era o desencanto? A esperança falida? Degustada a ceia, os apóstolos haviam assimilado, pela vez primeira, um Deus e Homem, feito aparente pedaço de pão, uns goles de vinho. Contudo essa assimilação culminara no maior e mais íntimo pacto de amor de toda a História. Tristemente, logo após, viria o abandono, o fracasso completo de todos eles, menos São João. Parecia que devia ser assim para tornar a fragilidade humana ainda mais palpável. Viria, assim, o pedido, perpetuado pelos séculos: “Ó Senhor, daí-nos sempre desse Pão; daí-nos sempre dessa Bebida que jorra até à vida etena” (Jo 6.37 e 4,15). Queremos, fervorosamente, repetir esse mesmo pedido e dizer, com Santo Tomás de Aquino: “Quanto podes, tanto ousa. Tanto louva quanto podes: Teu louvor não bastará!”

O ato em que nos alimentamos e dessedentamos de Cristo, nos faculta uma integração na interioridade, na parecença com Ele: “Já não vivo eu. É o Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20). Essa aproximação identificativa com o “Pão da vida” nos faz viver de sua força intrínseca, isto é, do Cristo Glorioso, antecipando as delicias da vida eterna, na glória. Aqui, pela Eucaristia, recebemos, não só “o penhor daquela glória eterna”, mas ainda, a degustação prévia do alimento perene dos Anjos e Santos. Suscita-se desta forma em nós uma incoercível saudade “até que Ele venha” face a face como resposta à nossa busca sem fim....

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