Quackwatch em português

Como  o Charlatanismo Prejudica
 Pacientes com Câncer

William T. Jarvis, Ph.D.

Há um antigo provérbio que diz : "O saqueador exige 'seu dinheiro OU sua vida,' mas o charlatão exige 'seu dinheiro E sua vida!" Esta declaração é particularmente verdadeira quando se trata dos tratamento dúbios do câncer. O mal provocado pelo charlatão pode ser categorizado como econômico, direto, indireto, psicológico e social. 

Dano Econômico

A quantia de dinheiro gasto com o charlatanismo do câncer é desconhecido mas provavelmente excede um bilhão de dólares por ano -- a quantia gasta com as pesquisas do câncer. O impacto financeiro sobre os indivíduos e seus familiares pode ser catastrófico se eles caem na armadilha do heroicamente "não deixar pedra sobre pedra" na sua busca por um tratamento nos casos sem esperança. Alguns charlatões estão bastante inclinados a exauri-los financeiramente. Sei de casos na quais os familiares dos que morreram foram privados da poupança da família, foram deixados com uma grande hipoteca de uma casa previamente paga, ou até mesmo perderam sua casa.

Dano Direto

Terapias dúbias podem causar morte, ferimentos graves, sofrimentos desnecessários e deformações. Envenenamento por cianureto pela ingestão do caroço de damasco ou laetrile, infecção por Salmonella dublin por beber leite sem pasteurização, desequilíbrio eletrolítico causado por lavagens intestinais com café, hemorragia interna por massagem corporal profunda e dano cerebral por hipertermia, todas têm causando mortes desnecessárias dos pacientes com câncer. Em clínicas que oferecem atendimento abaixo do padrão, infusões intravenosas de vários preparados têm causado septicemia e desnutrição. E a aplicação de escaróticos (substâncias químicas corrosivas) na pele dos pacientes com câncer tem resultado em desfigurações desnecessárias.  

Ruth Conrad, uma mulher de Idaho - EUA, teve uma experiência horrível como resultado de uma consulta a um dos muitos naturopatas não licenciados do estado. Enquanto buscava tratamento para um ombro doloroso, ela também reclamou de um inchaço em seu nariz. O naturopata declarou que aquilo era câncer e deu a ela uma pomada de uma erva negra para aplicar diretamente no nariz. Em poucos dias, sua face ficou muito dolorosa e desenvolveu faixas vermelhas que se alastraram até seu pescoço. Aflita ela ligou para o naturopata que lhe explicou que a presença das faixas era um bom sinal porque "lembravam um caranguejo e o câncer é um caranguejo." Ele também a aconselhou que aplicasse mais pomada negra. No período de uma semana, uma porção grande de sua face, incluindo o nariz, necrosou. Levou três anos e 17 cirurgias plásticas para que seu rosto fosse reconstruído.

A experiência da Sra. Conrad ilustra outro aspecto do charlatanismo do câncer -- o diagnóstico falso. Em primeiro lugar ela nunca teve câncer. Além de sofrer o dano direto de um tratamento caustico, ela também sofreu pela angústia mental por achar que tinha uma doença temida. 

Dano Indireto

Algumas das piores tragédias envolvendo o câncer resulta do retardo ou falhas em agir. Um exemplo de uma morte desnecessária envolvendo um homem do Oregon que tratou seu carcinoma basocelular oral por 15 anos com um remédio pedido pelo correio. O que torna este caso especialmente trágico é que este tipo de câncer não faz metástases, portanto ele teria muitos anos para corrigir sua insensatez. Apesar de horrivelmente desfigurado pelo crescimento do tumor, ele continuou o auto-tratamento.

A super confiança nos tratamentos dietéticos é um meio comum pelo qual o dano indireto mata aqueles que sofrem com câncer. O apelo dos remédios dietéticos está ligado a medicina popular. Quase toda cultura, começando com os antigos egípcios, acreditava na meia-verdade "você é aquilo que come". Isto sugere que as doenças são causadas por deficiências na dieta e, reciprocamente, podem ser curadas comendo os alimentos "certos". A publicidade dada as especulações epidemiológicas sobre "dietas de prevenção do câncer" encorajam a crença que as dietas trazem uma grande promessa tanto para prevenção como para o tratamento do câncer. O fato é que, apesar das deficiências nutricionais poderem causar algumas doenças e os excessos na dieta possam causar ou agravar várias outras, a grande maioria das doenças não tem uma causa nutricional.

Uma das abordagens do tipo alimento-como-remédio que é popular nos dias de hoje é a macrobiótica, que recebeu uma publicidade muito grande quando Anthony Sattilaro, M.D., um médico da Filadélfia, concluiu que a dieta o auxiliou na recuperação de um câncer de próstata. Artigos em revistas nacionais, um livro e apresentações na televisão espalharam a crença que a macrobiótica curou seu câncer. Apesar de Sattilaro também ter sido submetido a terapia convencional, a macrobiótica parecia preencher algumas necessidades emocionais não fornecidas pela terapia regular. Por fim ele acabou morreu pelo câncer, mas este fato não foi mencionado pela imprensa macrobiótica.

A dieta macrobiótica tem algumas semelhanças com as dietas recomendadas para prevenção do câncer. Entretanto, devido sua rigidez, conteúdo de baixa-gordura, uso desprezível de açúcares simples e dependência exclusiva aos vegetais em detrimento à proteína animal, é uma dieta pobre para pacientes com câncer submetidos a radio ou quimioterapia. Esses pacientes precisam de uma dieta de alta qualidade, rica em nutrientes porque a capacidade de seus intestinos de absorver nutrientes está prejudicada.

Tratamentos "naturais" que podem adiar a assistência apropriada são freqüentemente defendidos por amigos e parentes bem intencionados que estão culturalmente condicionados a acreditarem em seu valor. Este pensamento está  profundamente enraizado em muitas culturas e são tão antigos como seus próprios registros escritos. O Livro de Jó, dito como o mais antigo da Bíblia, é um drama que visa disseminar a noção de que as vítimas são responsáveis por suas próprias doenças. Jó é um bom homem que sofre terrivelmente. Seus amigos apelam para que confesse sua maldade, mas ele é inocente. A mensagem é clara de que a presença de doença não significa que o sofredor seja um pecador. Entretanto, abordagens moralistas que culpavam as vítimas por sua doenças eram prevalentes até Pasteur provar a existência dos micróbios que podiam ameaçar o inocente e o imoral na mesma proporção.

A descoberta de Pasteur foi feita há mais de um século atrás. Mas mesmo hoje em dia, muitas pessoas encaram o câncer como uma "lepra" dos tempos modernos e consideram-no "uma praga de Deus". A noção de uma personalidade propensa ao câncer -- capaz de auto-cura com ginásticas psicológicas que incluem visualização, gargalhadas e otimismo excessivo -- não é comprovada e pode representar nada mais que a elaboração do folclore antigo. Infelizmente, as pessoas com câncer que acreditam nisso e fracassam em curar a si mesmas podem terminar com uma carga psicológica adicional por acharem que por alguma razão misteriosa, elas realmente não querem ser curadas. 

A freqüência de mortes desnecessárias ou prematuras devido ao charlatanismo é difícil de estimar. Uma pesquisa com 166 oncologistas da Califórnia feita pelo National Council Against Health Fraud em 1980 encontrou 12 prováveis mortes desnecessárias e outros 14 pacientes afetados adversamente. Devido a taxa de resposta baixa (7%), uma segunda pesquisa com 65 especialistas em câncer, selecionados aleatoriamente que concordaram a participar por telefone, foi realizada em 1981. Trinta e três dos participantes relataram 7 prováveis mortes desnecessárias, 6 mortes prematuras e 14 casos de prognóstico sem esperança devido ao afastamento causado pelo charlatão. Estes números são conservadores porque diversos médicos que declararam terem casos deixaram de responder, e outros retiveram os relatos devido a dificuldade de saber se certos pacientes teriam sobrevivido por mais tempo sem o charlatanismo. 

Dano Psicológico

Além da culpa injustificada referida acima, os pacientes com câncer e seus entes queridos podem ser lesados psicologicamente em diversas maneiras. 

Confiança invertida. Em aproximadamente todo caso de dano que tenho examinado, a confiança inversa ou precede o uso de um procedimento diretamente prejudicial ou impede o paciente de obter a assistência eficaz. A mensagem fatal promovida pelo charlatanismo do câncer é que "não se pode confiar no ortodoxo". O enfraquecimento da confiança nos estabelecimentos de pesquisa e de tratamento, nos órgãos reguladores do governo e na American Cancer Society (ou nas sociedades sérias que buscam o desenvolvimento científico na abordagem do câncer) é crucial para a promoção das pretensas abordagens "alternativas" para o manejo do câncer. 

Um caso que investiguei no Oregon me deu uma visão profunda dos pensamentos e das ações dos "crentes fieis". Uma proprietária de uma loja de alimentos naturais descobriu um nódulo em sua mama. Após o diagnóstico de câncer, ela alardeou aos seus amigos dos alimentos naturais que iria  "provar de uma vez por todas que a cura pela dieta funciona!" Infelizmente, apesar de pelo menos 80% dos nódulos de mama descobertos pelo auto-exame serem benignos, o dela era canceroso. 

Sua primeira tentativa no auto-tratamento foi aplicar os métodos do livro The Grape Cure. Este livro alega que as uvas têm "propriedades anti-sépticas" e "poderosas" para auxiliar "a eliminar o mal enquanto constrói novos tecidos ". De acordo com o livro, "a limpeza" e "a purificação" são alcançadas ingerindo nada além de uvas e suco de uva até que se comece a perder peso. No segundo estágio, frutas frescas, tomates e leite azedo podem ser adicionados a dieta da uva. O terceiro estágio apresenta um variedade maior de alimentos crus, e o quarto estágio uma "dieta mista." Após vários meses, ficou claro que a cura pela uva não tinha impedido o tumor crescesse.  

Próxima tentativa, ela procurou um herbanário popular na sua comunidade que a tratou em vão com remédios de ervas por cerca de seis meses. A seguir foi ao México atrás do laetrile. Várias semanas depois, ela pediu ao seu marido levá-la para casa porque o laetrile também havia falhado. O marido cuidou dela por mais de um ano antes que a lesão se tornasse tão grande e sua dor tão insuportável que ela pediu pela primeira vez para ser levada ao médico. Ela morreu cinco dias depois. 

A parte mais chocante da história é que ela foi para sepultura ainda acreditando que tinha feito a coisa certa. Seu marido, que me passou os detalhes da tragédia, também continuou a acreditar no valor da cura pela dieta. Ele disse que sabia onde ela tinha errado, e que se ele tiver câncer, utilizará o tratamento dietético corretamente. Ele continuou a cuidar da loja de alimentos naturais, enviando pessoas ao herbanário e defendendo o laetrile. 

Conversão ao desvio. Pacientes com câncer e/ou seus entes queridos que os acompanham no tratamento do submundo do câncer podem se desviar para um comportamento anti-social. Freqüentemente estas pessoas são encorajadas a guiar outros pacientes com câncer à clínicas ou estimulados a contrabandear através das fronteiras drogas que não podem ser legalmente comercializados nos Estados Unidos. Mesmo quando o paciente morre, seus familiares podem continuar a acreditar que o tratamento é eficaz. A culpa pelo fracasso normalmente é atribuída aos efeitos negativos do tratamento convencional ou por não ter procurado tratamento mais cedo. Encontrar outros que alegam terem sido curados pode fazer com que os familiares determinem a utiliza-los exclusivamente caso o câncer venha a infligi-los. Isto prepara o cenário para uma tragédia futura. 

Não se espera que pessoas não treinadas percebam que aqueles que alegam terem sido curados podem ou não terem tido câncer em primeiro lugar, podem ter sido tratados com sucesso por métodos convencionais mas não acreditavam neles, ou podem ainda simplesmente estar sobrevivendo mas ainda com a doença. O fato de que alguns cânceres podem levar um longo tempo para seguirem seu curso ou não produzir sintoma algum por um longo período de tempo tem levado muitos pacientes a acreditarem que um remédio charlatanesco os curou.

Roubando o tempo. Por oferecer falsas esperanças, o charlatanismo rouba a coisa mais preciosa que pacientes com câncer terminal têm - o melhor uso daquele pouco tempo que llhes resta. A noção que pacientes terminais não tem nada a perder ao se voltarem para o charlatanismo é um erro fatal. A maioria das pessoas que enfrentam uma doença que ameaça a vida podem fazer um ajuste psicológico razoável. Aqueles que encaram a realidade experimentam cinco estágios clássicos: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Aqueles que aceitam seu destino estão em melhor posição para utilizar o tempo restante com sabedoria. 

No especial de TV da rede ABC "Who Will Love My Children" [Quem Amará Meus Filhos] Ann Margret interpreta uma mãe empobrecida do Iowa com câncer que passou seus últimos meses procurando um lar para seus dez filhos. Conheço dois casos similares. Os charlatães desencorajam as pessoas a fazerem o ajuste difícil por reforçarem sua negação. Tais pessoas normalmente morrem despreparadas porque preparar-se para a morte é admitir o fracasso.

Distorção da perspectiva. Sem a perspectiva adequada, as pessoas podem ser impelidas "a trocarem os pés pelas mãos". Incapazes de diferenciar o bom do ruim, algumas pessoas evitam a quimioterapia "tóxica", mas engolem cianureto (laetrile). Incapazes de avaliar o grau de benefício que algo possa trazer, elas se encherão de vitaminas, minerais essenciais ou fibras dietéticas. 

Dano a Sociedade

O Charlatanismo pode também prejudicar nossa sociedade democrática quando um grande número de pessoas sustentam crenças errôneas sobre a natureza do câncer e a melhor maneira de lidar com ele. Os resultados podem ficar fora do alcance. Recursos limitados podem ser desperdiçados se os fundos são utilizados para seguir uma direção baseada em dados inadequados ou falsos. As pessoas está dando grandes quantias de dinheiro em resposta aos numerosos pedidos feitos pelos correio por arrecadadores de fundos que exaltam medidas dietéticas na prevenção e tratamento do câncer. Quando a desinformação baseada naquilo que se desejaria que fosse verdade se torna popular [wishful thinking], os meios de comunicação de massa exageram o problema com seu poder de difundir idéias. Estas idéias podem influenciar a tomada de decisão dos pacientes, dos juízes, legisladores e políticos. Durante a década de 1970, a própria estrutura da sólida lei americana de proteção ao consumidor foi seriamente ameaçada pelos promotores do laetrile que tentavam legalizar seu uso. Felizmente, apesar de cerca da metade dos estados terem aprovado leis permitindo sua venda, as leis federais que bloquearam a distribuição interestadual não foram mudadas. Após o FDA vencer uma longa batalha judicial, o uso do laetrile dentro dos Estados Unidos tornou-se mínimo.  

Os pacientes deveriam ser avisados que quando prestigiam o charlatanismo do câncer, têm pela frente exploração econômica, risco de lesões ou morte, colocam-se além do alcance das leis de defesa do consumidor e ajudam a sustentar as ações do charlatão que explorará no futuro outras pessoas com câncer. Além disso, eles se expõem e a seus entes queridos a trapaça por alguns dos mais persuasivos artistas da vigarice que existem por aí -- alguns dos quais com registros criminais. As pessoas que acreditam serem competidoras à altura de um experiente charlatão do câncer fariam bem em lembrar o sábio conselho de P.T. Barnum: "Nunca tente vencer um homem em seu próprio jogo."

O Que é Preciso Fazer

O charlatanismo é um problema de saúde pública que envolve toda a sociedade. Para fazer frente a ele adequadamente é necessário uma abordagem mais científica. Como com qualquer outro problema de saúde pública, é necessário uma estratégia epidemiológica para desenvolver informações sobre os agentes causais (quais pessoas se tornam charlatães e o por quê), suscetibilidade do hospedeiro e fatores de resistência (as características das pessoas que se voltam ou não para o charlatanismo), e aspectos ambientais que favorecem ou desencorajam a proliferação do charlatanismo. São necessárias estatísticas vitais sobre a morbidade, mortalidade, incidência e prevalência do charlatanismo do câncer. 

Atualmente, temos somente relatos de casos isolados. Isto é o suficiente para indicar que um grande mal está sendo feito, mas não nos informa quantas pessoas estão sendo prejudicadas. Sugiro que seja desenvolvido um sistema para informar casos de charlatanismo, ajustando-se ao sistema dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças nas quais os médicos relatam casos de doenças comunicáveis. Isto possibilitaria que ficássemos na trilha daquilo que está sendo promovido, onde estão os "pontos quentes" e quais esforços legais e educacionais são necessários para uma resposta eficaz. 

Os profissionais da saúde têm o dever de agir quando o público está sendo abusado em uma área na qual eles têm conhecimento especializado. O fracasso em tomar medidas conjuntas contra o charlatanismo do câncer nos remete uma mensagem não profissional. Não deveríamos fechar os olhos para ideologia de "culpar a vítima" que diz que se uma pessoa é tão tola para se envolver com o charlatanismo por sua própria vontade, é provavelmente tola demais para que valha a pena ser salva. Tampouco deveríamos fechar os olhos perante a atitude dos oficias de justiça que acham que o charlatanismo é "meramente" uma forma de "crime do colarinho branco" que tira dinheiro de sua vítimas. Através de nossas ações, precisamos comunicar que a exploração das pessoas que sofrem com o câncer não deveria ser tolerada pela nossa sociedade. 

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Dr. Jarvis é professor de Saúde Pública e Medicina Preventiva da Escola de Medicina e Saúde Pública da Loma Linda University e presidente da National Council Against Health Fraud.

 

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