direcção de fotografia Rui Poças

 

Conversas com Glicínia

de Jorge Silva Melo

 

 

 

Um documentário sobre a actriz Glicínia Quartin por ocasião do seu 80º aniversário. A sua família, o anarco-sindicalismo, a Escola-Oficina nº 1, as leituras em casa dos pais, as prisões, o Mud Juvenil, os teatros experimentais, os surrealistas, o encontro com José Ernesto de Sousa e o desabrochar do Cinema Novo com “Dom Roberto”, a Itália, a fantasia, Beckett, Genet, Vitor Garcia, o encontro com Luís Miguel Cintra – uma vida em movimento.

 

site oficial do filme

textos sobre o filme

 

"Gosto tanto de a ouvir falar, à Glicínia. Mas não queria que ela falasse só comigo. Por isso fiz este filme, para partilhar as minhas conversas com Glicínia Quartin."
Jorge Silva Melo

"Não sei do que gosto mais, se de ouvir o que pensa (que não pára de pensar), se de a ouvir contar tanta vida que viveu (que não sabe estar parada sem viver), se de a ver brincar (que a vida para ela tem de ser festa). Gosto de a ver representar: pensa, mexe-se, brinca, imagina e enquanto representa conta coisas que conhece do que viu nos outros. Conversa, de facto (“não achas?”, “lembras-te?”, “e tu?”, “quero perguntar-te uma coisa”), curiosa de mim, de ti, de todos os outros e de todas as coisas, firme no que decide e a querer saber o que o outro quer, sempre a pedir esse “tu”. Inventa-se e inventa espaço. Transporta a alegria. Sem peso. Sempre em movimento. Porque vive em sedução. E porque ama como ninguém a sua e a minha e a tua e a nossa liberdade. Há mais actriz? Há mais pessoa? Melhor amiga?"
Luís Miguel Cintra

 

"A importância de Glicínia Quartin no Teatro e no Cinema Portugueses é indesmentível. E é-o desde os finais da década de 50.

Intérprete da renovação do teatro operada nos vários teatros experimentais dos finais dos anos 50 (onde trabalhou com Carlos Avilez, Tomás Ribas, Henrique Viana, Paulo Renato, Claude-Henri Frèches, Pedro Bom), esteve na origem do Cinema Novo, tendo protagonizado o filme DOM ROBERTO de Ernesto de Sousa, na origem do teatro do TEC e do TEL (tendo interpretado Lorca, Torga, Rattigan e André Brun em encenações de Avilez ou Luzia Maria Martins), no início do teatro independente dos anos 70 (fundadora de Os Bonecreiros e do Teatro da Cornucópia). Também a encontramos na renovação do teatro para crianças com o EMÍLIO E OS DETECTIVES que montou no Villaret. E na renovação do Conservatório Nacional, empenhada no movimento de Educação Pela Arte. Ou, mais tarde, como professora da Escola de Teatro. Mas também foi intérprete fiel da Nova Dramaturgia Portuguesa (estreando textos de Luís Francisco Rebello, Augusto Sobral ou Salazar Sampaio). Nos últimos anos tem sido intérprete regular do Teatro da Cornucópia em encenações de Luís Miguel Cintra ou Christine Laurent.

Conheço Glicínia Quartin desde o dia 21 de Fevereiro de 1968. Encontrei-a em casa de Artur Ramos, ensaiando DIAS FELIZES de Samuel Beckett que iria estrear com enorme sucesso meses depois na minúscula Casa da Comédia. Depois disso, nunca deixei de me cruzar com Glicínia Quartin: na produção das CRIADAS de Jean Genet que ela organizou em Cascais com Victor Garcia; no início do grupo independente Os Bonecreiros, onde trabalhei no segundo espectáculo (A GRANDE CEGADA), fazendo uma recolha do teatro de cordel do século XVIII nomeadamente de José Daniel, nos primeiros anos do Teatro da Cornucópia, no espectáculo O FIM OU TENDE MISERICÓRDIA DE NÓS que escrevi e estreámos na Culturgest.

Há anos que recolho materiais sobre o percurso de Glicínia Quartin, sobre o anarco-sindicalismo dos primeiros anos do século (o pai de Glicínia, o jornalista Pinto Quartin, foi um dos grevistas do movimento estudantil de 1907 em Coimbra, tendo sido impedido de prosseguir os estudos universitários), sobre os grupos de “teatro experimental” que, a partir do movimento lançado por Gino Saviotti nas exíguas instalações do Teatro do Salitre, explodiu um pouco por toda a Lisboa em palcos como os do Teatro da Rua da Fé, o Liceu Francês, a Casa de Espanha, a Sociedade Guilherme Cossoul e o próprio Teatro Nacional onde Amélia Rey Colaço, com faro indesmentível, começou por essa altura a organizar as famosas sessões do “Teatro de Novos Para Novos” onde se estrearam peças de Augusto Sobral e Salazar Sampaio.

O percurso de Glicínia Quartin é simultaneamente imprevisível e coerente. Imprevisível porque era imprevisível que uma rapariga licenciada em Biologia, oriunda de uma família conotada com a esquerda radical, enveredasse por uma carreira como a do teatro – onde na altura eram coarctadas as carreiras de mulheres de esquerda como Manuela Porto ou Maria Barroso. Imprevisível, porque o era ver a sensualidade com que começou a impor-se em espectáculos como O AUTO DA ÍNDIA de Gil Vicente encenado por Carlos Avilez num desassombrado refrescamento da tradição. Imprevisível porque não se esperava desta mulher culta e séria a explosão de frivolidade e sexualidade que foi a sua criação da MALUQUINHA DE ARROIOS. Imprevisível porque ousou avançar sozinha para a memorável criação de DIAS FELIZES de Samuel Beckett, espectáculo de referência para toda uma geração de espectadores e artistas. Imprevisível porque ousou ir a Madrid ver AS CRIADAS de Jean Genet numa encenação de Victor Garcia e conseguiu refazer essa produção num espectáculo no TEC produzido por ela. Imprevisível porque ousa, no auge da sua carreira, criar o primeiro “grupo independente”, Os Bonecreiros. E também integrar o primeiro espectáculo de uma muito jovem companhia de teatro, a Cornucópia a que iria continuar ligada naquilo que se pode chamar uma relação livre, entrando e saindo, voltando a entrar e voltando a sair nestes últimos quase trinta anos de companhia.

Coerente porque sempre a encontramos no início dos gestos artísticos que no teatro e no cinema foram sendo feitos em Portugal: no início do Teatro Experimental de Cascais, do Teatro Estúdio de Lisboa, dos Bonecreiros ou da Cornucópia. No início do cinema novo com Ernesto de Sousa, mas também na renovação do cinema que se operou nos anos 90 ao participar em vários filmes de gente nova como Manuel Mozos, Jeanne Waltz ou Luís Alvarães.

Imprevisibilidade e coerência: eis uma soma difícil mas penso que o resultado é simples e chama-se liberdade.

Porque é de liberdade que nos fala a sua carreira e a sua arte, nunca fixa a esquemas convencionais, nunca seguindo receitas estabelecidas, sempre discretamente aventureira, sempre surpreendida, sempre fiel aos princípios de resistente em que foi formada.

Numa entrevista que com ela já fiz conta Glicínia Quartin que, no momento da fundação do Teatro Experimental do Porto, António Pedro, que ela conhecia bem das mesas dos cafés de Lisboa e das tertúlias surrealistas, a convidou para largar a profissão que tinha, como investigadora no Instituto das Pescas, e ingressar no elenco fixo daquele que viria a ser o mais importante trabalho teatral dos nossos anos 50. Glicínia Quartin terá hesitado, pediu uma noite de reflexão e nessa noite foi ao Teatro Monumental ver A CONSPIRADORA de Vasco de Mendonça Alves, enorme êxito da actriz Palmira Bastos. E ficou cheia de vergonha perante os efeitos teatralões, a vacuidade da arte, a oratória envelhecida de um teatro. E disse que não a António Pedro, porque não concebia entregar a sua vida a uma arte assim tão velha, tão impudica, tão grosseira.

E foi sempre assim, a Glicínia. A actriz que, no trabalho, encontra sempre outra maneira de fazer, inesperada, subtil, que dá sempre o aspecto secreto de uma personagem, que se indigna perante o convencionalismo do trabalho, que está atenta aos mais novos e à seriedade do trabalho destes. "(...)

Jorge Silva Melo

 

 

 

Ficha Técnica

Realização Jorge Silva Melo
Produtores Manuel João Àguas
Director de Fotografia Rui Poças             
Som Emidio Buchinho
Montagem  Vítor Alves

Uma Produção Artistas Unidos / Rogério Ceitil Audiovisuais

 

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