RAWLS, PROCEDIMENTALISMO E CONTRATUALISMO

Nythamar Fernandes de Oliveira

"No commanding work of political theory has appeared in the 20th century."So said Isaiah Berlin, writing in 1962... The outstanding difference now, in 1978, is that Berlin's assertion is no longer true. It ceased to be so in 1971, when A Theory of Justice by John Rawls of Harvard was published in Cambridge, Mass. (J. Fishkin e P. Leslett, Philosophy, Politics and Society, 1979).

1 - A fundamentação de uma teoria da justiça

Propomo-nos a reexaminar aqui a fundamentação de uma teoria da justiça, através da apropriação crítica que John Rawls faz do construtivismo kantiano, preservando, por um lado, o seu princípio normativo de universalizabilidade e evitando, por outro lado, seu fundacionalismo moral. Procurar-se-á demonstrar em que medida há uma continuidade sistemática entre a concepção de justiça como eqüidade em A Theory of Justice (1971) e seus escritos posteriores, culminando com o volume de 1993 sobre Political Liberalism.[1] Nenhuma outra obra de filosofia política tem recebido tanta atenção nos meios acadêmicos e culturais do mundo inteiro quanto a Teoria da Justiça de John Rawls. O trabalho monumental de Rawls emerge como ponto de referência necessário para explorarmos a cartografia ético-política contemporânea, opondo universalistas e comunitaristas, construtivistas e intuicionistas, deontologistas e utilitaristas. É assim que devemos situar este estudo no lado "universalista" do inacabado debate entre liberais e comunitaristas (contextualistas ou particularistas) quanto à natureza e justificativa de proposições morais e político-filosóficas. A fim de melhor situar a posição rawlsiana com relação ao debate, é mister tecer algumas considerações preliminares, antes de passar ao tema específico desta investigação. Quando abordamos hoje problemas de ética e filosofia política, duas questões de fundamentação são inevitavelmente levantadas:

1) Pressupomos uma concepção normativa de moral (como o fazem Hare, Habermas, Rawls, Apel e todos os herdeiros da racionalidade modernista) ou refutamos a possibilidade de estabelecer um fundamento normativo de moralidade e obrigação política (como o sugerem Foucault, Luhmann e pós-modernos)?

2) Pressupomos um procedimento universalizável ou devemos partir de contextos localizados (ou de tradições) na tentativa de articular um discurso racional, coerente e defensável sobre ética e política? Este debate tem oposto, na América do Norte e na Europa, universalistas (Habermas, Rawls, Apel, Kohlberg, neokantianos em geral) e comunitaristas (Taylor, MacIntyre, Arendt, Heller, marxistas, neohegelianos e neo-aristotélicos em geral). Enquanto a primeira questão tem sido caracterizada pelo aporético dialogue de sourds entre modernistas e pós-modernos, a segunda não tem sido menos polêmica nas reivindicações do que está afinal em jogo no debate entre universalistas e comunitaristas, a saber, a própria concepção de uma moral universalizável e prescritiva em constante conflito com os aspectos contingentes das formas de vida sociais e suas relações políticas.[2] De acordo com as premissas universalistas, universalizabilidade e normatividade são inseparáveis e sempre precedem tradições e contextos onde se dá toda discursividade filosófica da modernidade. Embora tanto os universalistas quanto os comunitaristas possam ser denominados, grosso modo, "cognitivistas", na medida em que sustentam a possibilidade de conhecermos os princípios que fundamentam a moral -em oposição aos "não-cognitivistas" que os negam--, a questão da objetividade em argumentação moral ("moral reasoning") está longe de se constituir um locus consensual para filósofos analíticos. De resto, o conceito de justiça social, como o mostra Brian Barry, tem oscilado através dos séculos entre duas tradições que remontam ao argumento de Glaucon na República de Platão e ao Iluminismo, remetendo-nos ora ao regramento de vantagens e de interesses mútuos (reformulado por Hobbes, Hume e Gauthier) ora à noção reguladora de imparcialidade (Kant, Hume e utilitaristas).[3] Esta tensão parece ainda persistir na própria concepção rawlsiana da "posição original" (TJ § 4), precisamente quando se tratava de resolvê-la nos termos de uma teoria da escolha racional. Com efeito, é nesse mesmo contexto conceitual que devemos entender a concepção de "equilíbrio reflexivo", quando Rawls a aproxima da justificação de princípios de inferência em Nelson Goodman e a afasta da neutralidade imparcial defendida por Thomas Nagel. [4] A objetividade em questão, segundo Rawls, serve apenas para descartar as aporias opondo posicionamentos extremos de relativismos e objetivismos. E é neste sentido preciso, que Rawls encontra no construtivismo kantiano uma terceira via entre concepções teleológicas (éticas das virtudes e utilitarismos) e intuicionistas da moral. Como oberva Kenneth Baynes no seu estudo seminal sobre Kant, Rawls, and Habermas, [5] a formulação construtivista da filosofia prática sustentada por estes pensadores visa a "um procedimento capaz de avaliar criticamente a legitimidade de normas e instituições sociais pelo crivo de uma concepção normativa de razão prática" (NG 8). Outrossim, ao explorar os argumentos centrais de tais versões de construtivismo, este se mostra uma defensável "elucidação dos fundamentos normativos" da crítica social, cuja justificação é "em última análise reflexiva ou recorrente, no sentido de não se poder mais apelar para alguma instância além da idéia do que pode ser racional e consensualmente aceito por pessoas livres e iguais".(NG 2) Se o construtivismo rawlsiano é mais defensável e viável do que o de seus precursores e interlocutores permanecerá uma questão em aberto.

2 - Justiça como Eqüidade

"Justiça como eqüidade (justice as fairness)", segundo Rawls, "é uma teoria da justiça e entre suas premissas estão os fatos elementares sobre as pessoas e seu lugar na natureza".(TJ 257) Na Introdução à Edição em Paperback (brochura, 1996) de PL, Rawls explica que a "justiça como eqüidade" exposta em TJ deve sempre ser entendida como uma doutrina abrangente ("comprehensive doctrine") em oposição a uma concepção política ("political conception") da justiça, na medida em que esta se restringe a instituições políticas, sociais e econômicas da democracia constitucional moderna enquanto que aquela se aplica a todos os sujeitos e a todas as formas de vida (PL xxxviii; cf. PL § 2) Ora, mesmo em sua formulação original (TJ § 2) Rawls foi meticuloso na delimitação do sujeito da justiça como eqüidade, explicitamente definido como "a estrutura básica da sociedade" (the basic structure of society), i.e. "o modo pelo qual as principais instituições sociais distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens decorrentes da cooperação social". As instituições em questão, segundo Rawls, são a constituição política e os principais ordenamentos econômicos e sociais.(TJ 7) Portanto, quando o "segundo Rawls" (ou o "Rawls tardio", "the later Rawls") de PL chega a distinguir uma doutrina abrangente de uma concepção política da justiça, o que está em jogo ainda é a mesma teoria da justiça de suas formulações originais, aprofundada e reformulada de modo a dissipar mal-entendidos. Neste caso, trata-se da especificidade do político com relação ao moral, a saber, que uma doutrina abrangente da justiça como eqüidade não teria sido suficientemente meticulosa no seu intento político, ao nível mesmo de sua fundamentação. Assim, as duas características decisivas para diferenciar uma concepção política de uma doutrina moral abrangente serão encontradas, segundo Rawls, na apresentação da primeira como uma visão independente (freestanding view) e na sua expressão em termos de uma cultura política pública de uma sociedade democrática.(PL 12s.) Como veremos, este trabalho conceitual em torno da correlação entre moral e política acompanha todo o itinerário de fundamentação de uma teoria da justiça, que nos leva da apropriação rawlsiana de Kant em TJ à sua crítica ao construtivismo moral em PL.

Já no famoso § 40 de TJ, Rawls inicia seu distanciamento crítico da moral abrangente kantiana ao enfatizar que a razão prática destina-se exclusivamente a seres humanos, e não a seres racionais überhaupt. Segundo Rawls, mesmo se Kant acreditasse numa racionalidade prática para além da própria sociabilidade humana (o que Rawls não crê ter sido o caso), a interpretação kantiana da justiça como eqüidade, ainda assim, prevaleceria contra as intenções pessoais do filósofo de Königsberg. Com efeito, Kant parece afastar-se do fato da razão (Faktum der Vernunft) não-demonstrável, da segunda Crítica[6], em direção a uma razão prática humana nos escritos posteriores --notavelmente na MdS e escritos políticos-de forma a dar conta da tensão entre autonomia e heteronomia na "insociável sociabilidade" (ungesellige Geselligkeit) que caracteriza a natureza humana. Assim, o problema moderno de articular uma ética da liberdade com a publicidade da razão política preside os programas kantiano e rawlsiano de crítica a uma fundamentação metafísica. Para Kant, o destino do ser humano sob o signo da liberdade num mundo fenomênico, de natureza determinada, constitui, de resto, a contrapartida prática da revolução copernicana operada na filosofia teórica. É neste sentido que Rawls contrasta o intuicionismo kantiano no uso teórico da razão pura com o construtivismo de sua filosofia prática. De acordo com Rawls, nisso consiste a grandeza filosófico-sistemática do idealismo transcendental, a saber, que a unidade da razão pura seja mantida pela tese dos dois mundos (i.e. fenomênico e noumênico). A fim de evitar uma tal formulação fundacionalista, Rawls concebe a posição original "como uma interpretação procedimental da concepção kantiana de autonomia e do imperativo categórico"(TJ § 40) com a importante ressalva de que "a escolha da pessoa como um eu noumênico" seja tomada como uma escolha "coletiva".(TJ 257) Muitas das críticas levantadas por utilitaristas e comunitaristas contra a teoria rawlsiana da justiça parecem convergir quanto aos problemas correlatos de manter, por um lado, a prioridade kantiana do direito/justo (Recht) sobre o bem -ou a primazia do princípio universalizável da justiça sobre o princípio de utilidade-e uma concepção-modelo da pessoa numa cultura política dada, por outro lado. Embora o primeiro problema seja abordado em TJ enquanto que o segundo seja apenas formulado em PL, me parece que eles na verdade se complementam e são essenciais para uma correta compreensão da teoria construtivista de Rawls em sua dupla investida contra o utilitarismo e o intuicionismo em ambos os textos.

Assim, o construtivismo político de Rawls pode ser melhor avaliado e compreendido nos termos próprios de sua abordagem de uma teoria da justiça, particularmente, à luz de sua apropriação crítica do construtivismo moral de Kant. Uma das grandes pretensões da teoria rawlsiana -e, na minha opinião, um de seus maiores méritos-é prover-nos com uma concepção ético-política dos fundamentos normativos da vida social. A teoria da justiça pode ser vista, portanto, como um procedimento universalizável de construção capaz de dar conta da sociabilidade humana em sociedades democráticas regidas por uma constituição, onde reivindicações de liberdades básicas e de participação eqüitativa na vida social permitem a convivência pluralista de diversas doutrinas religiosas, filosóficas e morais. Assim, o conceito de justiça desempenha para a filosofia prática um papel de fundamentação análogo ao do conceito de verdade para uma teoria do conhecimento (TJ 3). Segundo Rawls, "uma concepção da justiça caracteriza nossa sensibilidade moral quando os juízos cotidianos que emitimos estão em acordo com os seus princípios". (TJ 46) Os dois princípios fundamentais (o Equal Liberty Principle e o Difference/Fair Equality Principle) a serem escolhidos para a realização da justiça como eqüidade, assim como os dispositivos da original position e do reflective equilibrium, se inserem neste contexto preciso de fundamentação--de inspiração kantiana--, na medida em que devem ser tomados como regras formais-procedurais capazes de estabelecer critérios normativos e de determinar resultados eqüitativos. Assim como o senso de gramaticalidade é pressuposto em práticas cotidianas no uso da língua materna e a faculdade racional é pressuposta na concepção de juízos e pensamentos, o senso de justiça e a faculdade de concepção do bem são inerentes a uma concepção de pessoas morais, livres e iguais, vivendo numa sociedade democrática. "Justiça como eqüidade", segundo Rawls, "procura desvelar as idéias fundamentais (latentes no senso comum) de liberdade e igualdade, de cooperação social ideal e da pessoa".(KC 520)

Rawls revisa continuamente sua teoria da justiça com o intuito preciso de melhor elucidar a fundamentação da mesma. Em particular, dirige-se a muitas das questões colocadas por seus críticos quanto ao uso que faz da filosofia kantiana, por um lado, e quanto aos argumentos contra concepções utilitaristas, por outro lado. Já na sua obra de 1971, Rawls afirmava que a TJ buscou concatenar em uma visão coerente as idéias expressas em papers escritos nos últimos doze anos.[7] Os tópicos centrais desses ensaios foram retomados e reexaminados na tentativa de elaborar uma teoria da justiça. "Teoria da justiça" já era então entendida como uma análise filosófica do que é a justiça, numa formulação que evitava as limitações de abordagens exclusivamente meta-éticas e ético-normativas do que é o justo. Assim, a filosofia moral de Kant, a refutação dos eudaimonismos, intuicionismos e utilitarismos, o resgate do conceito de justiça inerente ao contratualismo constitucional-- clássico-liberal (Locke) e democrático-social (Rousseau)--, o problema do construtivismo, a questão da fundamentação e dos princípios morais, a questão do justo e do bem (Aristóteles)-- estes e outros problemas afins são tematizados pela TJ. No final do livro (TJ § 87), Rawls nos adverte que sua justificação da moral afasta-se dos dois modelos que prevalecem na história da ética, a saber, o modelo cartesiano-dedutivo (onde, partindo de princípios evidentes, procura-se inferir um corpo de normas e preceitos morais) e o modelo naturalista (definições de conceitos morais são passíveis de comparação/redução a conceitos não-morais). Rawls mantém-se fiel ao princípio socrático (TJ § 9) na medida em que uma teoria moral sempre nos conduz a rever nossos princípios e juízos, e enfatiza que "a justificação reside na concepção [da justiça] como um todo e como esta se encaixa e organiza nossos juízos em equilíbrio reflexivo".(p. 579) Somente assim podemos passar a uma "teoria substantiva da justiça". Pela sua implícita reformulação de uma teoria da sociedade e de uma teoria da pessoa moral, uma teoria da justiça como eqüidade deve nos parecer mais defensável e mais viável do que outras versões do contratualismo.(p. 584)

Nossa hipótese de trabalho é que a questão da fundamentação permeia, portanto, todo o desenvolvimento de conceitos que estruturam as reflexões rawlsianas em TJ, sendo prolongadas e mais explicitamente articuladas com questões de ordem político-prática em escritos posteriores, notavelmente em suas preleções sobre "Kantian Constructivism in Moral Theory" e no seu livro Political Liberalism. Apesar de todas as críticas e problemas metodológicos que separam essas obras, estou acentuando a sua continuidade a fim de melhor elucidar a questão da fundamentação. Mesmo quando parece aquiescer a uma forma de retratação teórica, Rawls acaba por retrabalhar um conceito originário ou a sua primeira versão em TJ a fim de aprofundar as teses centrais de sua teoria da justiça. Por exemplo, em PL Rawls indica, sem rodeios, que o maior problema de TJ residia na inconsistência entre o relato da estabilidade (parte III, em part. § 76, o problema da estabilidade relativa) e o restante da sua obra prima. Em outros termos, a questão de articular uma sociedade bem-ordenada, tomada como ideal regulador de uma sociedade que busca promover o seu bem-estar pela concepção pública da justiça, com a noção básica de "associação de cooperação social". Apesar das cuidadosas observações em TJ § 79 sobre a união social, a questão da sociabilidade é ainda assim problemática na concepção de uma sociedade hipotética e estrategicamente idealizada de forma que cada cidadão aceita e sabe que todos os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, satisfeitos pelas instituições básicas sociais.(TJ § 69) Segundo a construção teórico-conceitual da posição original em TJ, os dois princípios são os únicos a serem efetivamente escolhidos para a realização da sociedade tout court, i.e., para tornar o estado de sociedade civil viável. O problema, como Rawls o reformula em PL, é de manter esta teoria como alternativa não-utilitarista e não-intuicionista de uma teoria crítica da sociedade democrático-liberal. Como o mostrou Baynes no estudo supracitado, este casamento de duas tradições aparentemente opostas (a liberal e a democrática, originariamente defendidas por John Locke e Jean-Jacques Rousseau respectivamente) constitui a plataforma político-filosófica comum a Kant, Rawls e Habermas. A leitura que Rawls nos oferece da fundamentação moral em Kant é o que o distingue da apropriação deste mesmo princípio de universalização na teoria habermasiana do agir comunicativo. O pluralismo democrático das sociedades liberais, ao contrário da situação de fala ideal na ética do discurso, é tomado como fato problemático por Rawls, não tanto pela diversidade de doutrinas religiosas, filosóficas e morais, mas pelo pluralismo de doutrinas abrangentes que se mostrem incompatíveis por não serem aceitáveis por todos os envolvidos --Rawls recorre assim a uma distinção entre o ponto de vista público e o não-público (não-privado).[8]

3 - A crítica rawlsiana à teoria kantiana da justiça

Como vemos, o problema da fundamentação de uma teoria da justiça em Rawls é inseparável de sua interpretação e apropriação crítica da teoria kantiana da justiça e do modelo kantiano de fundamentação da moral, que Rawls procurará desvincular de seu caráter de "doutrina moral abrangente" ("comprehensive moral doctrine"). Partindo de uma apropriação procedimental do imperativo categórico de Kant, Rawls mantém o princípio de universalizabilidade de proposições práticas ao mesmo tempo em que distingue o seu construtivismo de uma fundamentação metafísica, portanto, sem nos remeter à unidade da razão pura ou ao dualismo noumênico-fenomênico do idealismo transcendental. Apesar de ter sido inicialmente formulada como uma teoria moral de forma a abranger a questão da justiça, a justiça enquanto eqüidade (justice as fairness) já visava então a uma análise aprofundada dos problemas inerentes às tradições democrático-liberais, notavelmente nas articulações modernas entre contratualismo e constitucionalismo. A ética e a filosofia política propostas por Immanuel Kant foram assim reapropriadas por Rawls na fundamentação de uma teoria da justiça capaz de responder às exigências teóricas e práticas de uma sociedade contratual, regrada por uma constituição e formada por pessoas livres e autônomas, moralmente iguais, histórica e socialmente condicionadas nas suas decisões individuais e coletivas. Apesar de não serem explicitamente formuladas nestes termos em TJ, as articulações entre ética e filosofia política, liberalismo e democracia, liberdades civis e igualdade procedimental, por um lado, e as diferenciações entre o razoável e o racional (reasonable/ rational), o público e o não-público, direito e bem, por outro lado, são enunciadas na sua defesa do liberalismo político, e elaboradas em termos da distinção entre construtivismo moral (kantiano) e construtivismo político (rawlsiano), a um nível teórico de fundamentação. Rawls reitera, desse modo, um procedimentalismo universalista que em muito se assemelha ao dispositivo do imperativo categórico de Kant. Em seu ensaio sobre o procedimento do imperativo categórico (the CI-procedure), apresentado em Stanford em 1987 ("Themes in Kant's Moral Philosophy"), Rawls explicitamente endossa uma interpretação construtivista da filosofia moral kantiana. Todas as subseqüentes reformulações da interpretação kantiana em TJ em direção ao construtivismo político de PL refletem a leitura rawlsiana da articulação kantiana entre moral e justiça política na realização efetiva, na história, de uma república constitucional. O construtivismo, ao contrário da tese da independência (i.e., que a moral e a justiça política são em última análise independentes quanto a sua realização histórica, como o sugere Yirmiyahu Yovel) e da tese teleológica (i.e., que a política direciona o fim efetivo da moral, como o sugere Patrick Riley), parte da premissa que a justiça (em particular, na Doutrina do Direito na MdS) é universalizável e prescritiva na política assim como o imperativo categórico o é na moral, ou seja, que a justiça realiza o princípio supremo da moral na própria existência histórico-política dos seres humanos, enquanto pessoas autônomas.[9] E segundo Kant, isso só se dá num estado contratual de sociedade e de direito, regrado por uma constituição, monárquica ou republicana, conforme à vontade geral.(MdS § 51) O modelo procedimental do imperativo categórico estrutura a própria formulação da teoria da justiça como eqüidade em TJ. Em primeiro lugar, os dois princípios de justiça que regulam uma sociedade bem-ordenada (well-ordered society) devem ser escolhidos de tal modo que os aspectos distributivos da estrutura básica da sociedade sejam justamente avaliados (TJ 9). Rawls mantém em aberto a possibilidade de que outros princípios venham a ser contemplados (TJ § 21), mas sustenta que os dois princípios da maior liberdade igual e da diferença (desigualdades aceitáveis por todos e igualdade eqüitativa de oportunidades) propostos pela "justiça como eqüidade" são os mais adequados para satisfazer o tipo de cooperação social exigido pela estrutura básica de tal sociedade bem-ordenada-i.e., de uma sociedade justa. Desde as primeiras páginas de TJ Rawls enfatiza o aspecto auto-regulador (tal como no procedimento do imperativo categórico) de uma sociedade cuja constituição e legislação estão em constante balanço com relação a situações concretas onde é exercida a justiça. Assim, a posição original corresponde a uma situação análoga à do estado de natureza no contratualismo clássico: nesta situação puramente hipotética as partes escolhem, sob um véu de ignorância, os dois princípios da justiça, numa situação inicial que é, portanto, "fair", justa, eqüitativa, razoável. (TJ 12) É este esquema procedimental que Rawls revisará continuamente de forma a melhor justificar a sua teoria política da justiça, ou por que ela é mais defensável que outras alternativas --de forma a tornar a racionalidade da fundamentação num argumento não-metafísico de razoabilidade. Além de corrigir as aparentes inconsistências teóricas através de suas reformulações de uma teoria da justiça e sua fundamentação não-fundacionalista, Rawls justifica e defende o procedimentalismo contratual de inspiração kantiana na sua própria articulação entre uma concepção substantiva e uma concepção procedimental de justiça e no complexo trabalho teórico que procura dar conta das instituições sócio-políticas, começando com a noção de "sociedade" e sua estabilidade (concepção de "sociedade democrática liberal"). Assim, os conceitos de "cultura política" e "pluralismo político" serão mais tarde evocados na articulação entre uma teoria da sociedade e uma teoria da pessoa moral.

Se o princípio universalizável de proposições práticas do construtivismo kantiano constitui, segundo Rawls, um modelo normativo para a justificação (se não quisermos mais falar de "fundamentação") de uma teoria da justiça hoje, este deve ser reformulado como um dispositivo político --e não metafísico, não transcendental-- de regras formais-procedurais capazes de estabelecer critérios normativos e de determinar resultados eqüitativos. Diga-se de passagem que a especificidade não-metafísica de uma teoria política da justiça é mais original, ambiciosa e complexa do que deixavam transparecer os primeiros escritos do próprio Rawls. Uma das conseqüências imediatas da reformulação rawlsiana de uma teoria da justiça é a redefinição da própria filosofia política em função do conceito fundamental do "político" -dispersamente tematizados por Rawls no seu volume sobre o liberalismo político. Inseparáveis desta, outras conseqüências teóricas nos remetem a uma reconsideração do debate entre universalistas e comunitaristas, de um lado, e a um re-exame da articulação entre kantismo e contratualismo, de outro.

Rawls na verdade não distingue entre o moral e o político em TJ (cf. PL xv), sendo o contrato social entendido como inerente à filosofia moral: o que é justo é o que é melhor para a sociedade. A sociedade justa, bem estruturada, deve ser fundamentada de tal modo que as pessoas possam conviver com todas as suas diferenças religiosas, étnicas e culturais, enquanto pessoas livres e iguais, e portanto que possam viver bem. As pessoas podem viver bem se, e somente se, forem justas. A teoria da justiça se nos apresenta como um procedimento de construção, mais precisamente uma estrutura procedimental capaz de representar, teoricamente, os dois princípios fundamentais de justiça política (PL 93). A idéia diretriz de TJ (§ 3, p. 11) é afinal que "os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do acordo original". Enquanto princípios que regulam todos os subseqüentes acordos, pactos e contratos, eles especificam os tipos de cooperação social e formas de governo a serem estabelecidos. Trata-se portanto de fundamentar o procedimento que viabiliza a construção de uma sociedade livre e eqüitativa.

Rawls divide a sua obra prima em três partes um tanto sugestivas, a saber, "teoria", "instituições" e "fins". Segundo Rawls, a primeira parte cobre e aprofunda o trabalho empreendido em "Justice as Fairness" (1958) e "Distributive Justice: Some Addenda" (1968), enquanto os três capítulos da segunda parte correspondem respectivamente, com algumas adições, aos tópicos de "Constitutional Liberty" (1963), "Distributive Justice" (1967) e "Civil Disobedience" (1966). O segundo capítulo da terceira parte cobre temas centrais do ensaio "The Sense of Justice" (1963). Como Rawls mesmo admite, apesar de haver corrigido aparentes inconsistências e aprimorado seus argumentos centrais, as suas teses iniciais foram mantidas ao cabo desta obra, sendo retomadas em trabalhos posteriores. A primeira constatação de uma leitura da TJ é que esta obra foi cuidadosamente construída, revisada, aprimorada, com o intuito preciso de nos oferecer uma "teoria da justiça". O propósito geral da teoria rawlsiana da justiça foi originalmente explicado nos seguintes termos: "O que eu tentei fazer foi generalizar e elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do contrato social como tem sido representada por Locke, Rousseau, and Kant."(TJ § 3, p. 11) Em escritos posteriores, notavelmente nas Dewey Lectures na Universidade de Columbia (1980), Rawls enfatiza que sua concepção de contratualismo não é utilitarista mas de inspiração kantiana, no nível mesmo de sua fundamentação. De fato como já rezava o § 40 da TJ, "os princípios da justiça são também imperativos categóricos no sentido de Kant, pois Kant entende por imperativo categórico um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza como um ente racional, livre e igual". Mesmo assim, críticos de Rawls têm questionado seu kantismo, seu contratualismo e até mesmo um tácito utilitarismo (como o faz, por ex., R.M. Hare).[10]

O livro sobre "liberalismo político" retoma as teses centrais de TJ, partindo das palestras da Columbia University, para ratificar a concepção pública da justiça como eqüidade numa sociedade cujo poder político é exercido de acordo com a constituição --o conteúdo essencial desta devendo ser endossado por todos os cidadãos à luz dos princípios e ideais aceitáveis como "razoáveis" (reasonable) e "racionais" (rational). E nisto consiste o princípio liberal de legitimidade. Rawls logra combinar, deste modo, a concepção kantiana de racionalidade prática (construtivismo) com o contratualismo da tradição democrático-liberal. Trata-se obviamente de um liberalismo político e não econômico, assim como o seu construtivismo é também qualificado de "político", ao contrário do construtivismo moral kantiano.

O construtivismo kantiano constitui, segundo Rawls, um modelo normativo para uma fundamentação de uma teoria da justiça hoje. A questão da fundamentação de uma teoria da justiça deve ser, portanto, formulada em função das premissas kantianas expostas na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, na segunda Crítica, na Metafísica dos Costumes e nos escritos políticos, notavelmente na Paz Perpétua e na Idéia de uma História Universal. Ao contrário de leituras caricatas da filosofia moral kantiana que reduzem o princípio da autonomia da vontade ou o imperativo categórico a um formalismo estéril, Rawls logra resgatar a dimensão político-constitucional que assegura a realização jurídica (de jure) da consciência moral enquanto fato da razão (de facto), fundamental para a filosofia prática kantiana. Neste sentido, a contribuição rawlsiana para o debate contemporâneo sobre a questão da fundamentação da ética reside na sua identificação com a questão da justiça, de forma a integrar problemas de neocontratualismo e de constitucionalismo.

A fim de melhor desenvolver sua própria "teoria da justiça", Rawls reexamina a fundamentação kantiana da ética. Além de refutar os eudaimonismos de inspiração aristotélica e as diversas versões do princípio de utilidade dos utilitaristas, a moral kantiana refuta a tese intuicionista, segundo a qual a sensibilidade ou a experiência dos sentidos, dos instintos e das emoções pudessem fundar uma moral. Por um lado, Rawls mantém a correlação moral-política estabelecida por Kant, assim como a distinção entre direito e ética.[11] Por outro lado resgata o sentido mais profundo do princípio de justiça inerente à concepção liberal-democrática de "contrato", sem incorrer em fundacionalismo. Segundo Rawls, nem a universalizabilidade (universalizability) nem a primazia do justo sobre o bem fariam de tal princípio um conceito metafísico ou transcendental. Rawls chega mesmo a insistir sobre o caráter estritamente político-filosófico de sua fundamentação de uma teoria da justiça. A justiça como eqüidade é uma versão sofisticada do imperativo categórico, mas Rawls procura esquivar-se do fundacionalismo de uma moral metafisicamente fundamentada e regida por princípios absolutos. Toda aparente "mudança de paradigma" de TJ a PL (i.e., da doutrina moral a uma concepção política de justiça) é em grande parte motivada por este distanciamento crítico do fundacionalismo kantiano. Afinal, o que garante que os dois princípios de justiça sejam escolhidos na posição original é a sua imunidade ideológica, partidária, doutrinária. As partes racionais mantêm seus interesses próprios e suas especificidades ao nível de sua identidade partidária, religiosa, moral, étnica, etc., na medida em que perseguem livremente seus projetos de vida, pautados racionalmente por suas respectivas concepções de bem. Mas isso só é possível porque num outro nível, sob o véu de ignorância, compartilham um consenso justaposto que visa única e exclusivamente o que é justo, eqüitativo, razoável, fair, reasonable. Assim, pela sua reapropriação do construtivismo kantiano Rawls busca resgatar a normatividade da razão prática pura na própria concepção de uma sociedade contratual, regrada por uma constituição e formada por pessoas livres, moralmente iguais, histórica e socialmente condicionadas. Assim como seria mais tarde retomado por Rawls, o contratualismo de que se apropria Kant se aproxima do princípio de tolerância lockeano e da vontade geral rousseauniana na mesma medida em que se afasta dos argumentos proto-utilitários humeanos. Kant adota uma concepção liberal do Estado, aproximando-se portanto mais de Locke do que de Rousseau quanto ao conteúdo do contrato originário, apesar de aproximar-se mais do segundo quanto a sua fórmula. A aproximação da questão contratualista é feita, no escrito sobre a Paz Parpétua, em termos constitucionais ao defender a autonomia dos três poderes num sistema federalista. O Apêndice a este opúsculo, tematizando o suposto desacordo entre a moral e a política a propósito da paz perpétua, nos fornece a chave conceitual para uma compreensão da verdadeira alçada da filosofia prática kantiana, que inclui, além da filosofia moral, a filosofia política, a filosofia da religião, a filosofia da história e a filosofia do direito. É precisamente no conceito central de Recht (justiça/direito) que devemos entender a articulação entre o Sollen moral-racional e o Wollen político-constitucional, capaz de realizar a "volonté générale" de um contrato social. Segundo Kant, "o querer de todos os homens individuais de viver numa constituição legal segundo princípios da liberdade (a unidade distributiva da vontade de todos) não é suficiente para este fim [que conduz à paz perpétua], mas que todos juntos queiram este estado (a unidade coletiva da vontade unida)".[12] Daí o eminente papel da filosofia política na construção de uma sociedade mais justa, regrada pelos princípios racionais da liberdade que nos move a agir por dever.

O princípio kantiano da universalização das proposições práticas, segundo Rawls, remete-nos, antes de mais nada, ao problema da unidade das três Críticas de Kant, portanto a uma questão de interpretação da obra kantiana como um todo, como já havia sido tematizada no debate entre Cassirer e Heidegger em Davos, em 1929.[13] Tanto Cassirer quanto Heidegger concordaram quanto ao problema central da dedução transcendental, em particular, na KrV, quanto à relação problemática entre intuição pura e entendimento puro. Enquanto Cassirer nos remete a uma solução no "Sistema de todos os princípios do entendimento puro" (B 188s.), Heidegger recorre a uma terceira faculdade, a imaginação, evocada no capítulo anterior da Analítica dos Princípios, "Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento" (B 176s.)[14] Grosso modo, enquanto Cassirer enfatiza o dualismo kantiano dos dois mundos (inteligível e sensível), inerente ao conjunto completo de toda a obra kantiana, Heidegger elege a temporalidade como framework irredutível da imaginação, como fator determinante para a forma e natureza dos conceitos puros. Sessenta anos depois, seguindo uma conferência comemorativa do bicentenário da segunda edição da KrV (Stanford University, 1987), o mesmo problema da "unidade na diversidade" do sistema kantiano seria reformulado em função da dedução transcendental nas três Críticas e no Opus postummum.[15] Foi nesta conferência que John Rawls apresentou uma comunicação intitulada "Themes in Kant's Moral Philosophy" (Temas na Filosofia Moral de Kant), baseada em três palestras ministradas no verão de 1983 na Johns Hopkins University, mais tarde incorporadas na sua obra sobre o Political Liberalism. Assim como Heidegger, Rawls discerne o problema da natureza humana (concepção de pessoa) na articulação da liberdade (moral) com a realização efetiva da existência histórica (política). Ao contrário da desconstrução ontológica proposta pelo pensador de Messkirch, Rawls segue antes Cassirer na sua reconstrução dedutiva da lei moral como "constitutiva de toda ordem pública unificada de um mundo social".[16]

Se o propósito da crítica fôra o de estabelecer a possibilidade da metafísica enquanto ciência, a KpV mostrou a dificuldade de satisfazer no âmbito da liberdade o que fôra anunciado na GMS e realizado pela dedução transcendental na KrV quanto ao âmbito da natureza. Assim, o desafio de clarificar um problema específico da primeira Crítica (o capítulo sobre a dedução transcendental das categorias, KrV §§ 13-27, A 84-130, B117-169) remete-nos às deduções na segunda e na terceira Críticas, evitando, por um lado, a redução da filosofia kantiana a uma teoria do conhecimento, mas criando, por outro lado, novos problemas quanto à filosofia moral, estética e teleologia kantianas. Uma coisa, porém, nos parece incontestável, resultante de todos esses debates sobre a unidade das três Críticas, a saber, que a filosofia kantiana é consistente na sua reivindicação de um conceito transcendental de razão --mesmo que não seja satisfatória quanto às implicações do dualismo empírico-transcendental. Com efeito, a razão (Vernunft), enquanto "faculdade dos princípios" (das Vermögen der Prinzipien, B 356), destina à filosofia crítica sua tarefa de fundamentação do conhecimento, da ação e da reflexão, de modo a responder às três questões (o que posso saber? o que devo fazer? o que me é permitido esperar?) a que pode ser reduzida a filosofia.(A 804, B 833) Ao remetê-las a uma quarta nas suas preleções sobre Lógica, "o que é o homem?" (Ak 25), Kant parece nos assegurar que a racionalidade em questão é humana. Segundo Heidegger, Kant nos estaria deste modo propondo uma instauração ontológica da metafísica a partir da "questão da unidade das faculdades fundamentais do espírito humano", desvelando o transcendens da "subjetividade do sujeito humano".[17] Se, para Kant, "a filosofia é a ciência da referência de todo o conhecimento aos fins essencias da razão humana" e "o filósofo não é um artista da razão mas sim o legislador da razão humana" (KrV B 867), a razão nos aparece como faculdade da unidade sistemática, na medida em que torna possível o conhecimento científico. Tanto a fundamentação quanto a representação parecem, portanto, ocupar um lugar prominente na elucidação da unidade da filosofia kantiana. O problema de articular as faculdades superiores do conhecimento (Verstand, Vernunft, Urteilskraft) e as três Críticas em função do sistema transcendental kantiano como um todo tem sido objeto de diferentes interpretações, desde as diferentes formulações do idealismo alemão até os nossos dias. Grande parte da problemática foi delineada pelo próprio Kant, em particular, na Introdução à segunda edição da terceira Crítica (1793). Ainda no Prólogo à primeira edição de 1790, Kant define a dupla preocupação de investigar se a faculdade do juízo "também tem por si princípios a priori, se estes são constitutivos ou simplesmente regulativos... e se ela fornece a priori a regra do sentimento de prazer e desprazer enquanto termo médio entre a faculdade do conhecimento e a faculdade da apetição".(V-VI) Segundo Kant, a unidade dos usos teórico e prático da razão pura deve ser assegurada pela "unidade do supra-sensível" (Einheit des Übersinnlichen), embora um conhecimento deste não seja possível nem de um ponto de vista teórico nem de um ponto de vista prático. Aquilo que fôra delimitado, de maneira negativa, no uso teórico da razão pura é manifesto pelo uso prático da razão, agora retomado à luz do conceito de uma finalidade da natureza:

"O entendimento fornece, mediante a possibilidade das suas leis a priori para a natureza, uma demonstração de que somente conhecemos esta como fenômeno [als Erscheinung], por conseguinte simultaneamente a indicação de um substrato supra-sensível [ein übersinnliches Substrat] da mesma, deixando-o no entanto completamente indeterminado [unbestimmt]. Através do seu princípio a priori do ajuizamento da natureza segundo leis particulares possíveis da mesma, a faculdade do juízo fornece ao substrato supra-sensível daquela (tanto em nós, como fora de nós) a possibilidade de determinação [Bestimmbarkeit] mediante a faculdade intelectual. Porém, a razão fornece precisamente a esse mesmo substrato, mediante a sua lei prática a priori, a determinação [Bestimmung]; e desse modo a faculdade do juízo torna possível a passagem [Übergang] do domínio do conceito de natureza para o de liberdade".(KU LVI)

4 - O Construtivismo Político de John Rawls

Segundo Carlos Thiebaut, é precisamente quando parece distinguir-se de Kant pela sua reformulação do modelo contratualista que John Rawls mais se aproxima do construtivismo procedimentalista do pensador de Königsberg.[18] Com efeito, assim como os princípios da justiça eram tomados como imperativos categóricos no sentido kantiano em TJ § 40, na medida em que não eram validados pelos desejos dos agentes, seus propósitos, inclinações, motivações ou intenções, mas unicamente pela natureza da pessoa moral livre (razão prática), assim também em PL Rawls mantém o procedimento-IC ("the IC-procedure") corroborado por uma concepção-modelo da pessoa e da sociedade. Assim como Kant na GMS, Rawls recorre ao procedimento de autodeterminação ao modelar, na pessoa moral, concepções do bem e o senso de justiça pelo procedimento construtivista. Sem o recurso da fundamentação de uma metafísica dos costumes inseparável de uma concepção de razão pura, Rawls retoma a concepção kantiana de pessoa autônoma como fim procedimental a ser modelado por uma situação contratual de justiça política. Segundo Rawls, o construtivismo kantiano opõe-se ao realismo moral de intuicionistas racionais (tais como Clarke, Price, Sidgwick e Ross), assim como o idealismo transcendental opõe-se ao realismo transcendental e ao idealismo empírico, do ponto de vista da teoria do conhecimento. (PL III § 1/91)

O intuicionismo racional pode ser caracterizado nos seguintes termos:

1. princípios e juízos morais, quando corretos, são enunciados verdadeiros acerca de uma ordem independente de valores morais; esta ordem não depende nem pode ser explicada pela atividade mental de seres humanos, nem mesmo pela atividade da razão;

2. princípios morais podem ser conhecidos pela razão teórica, na medida em que o saber moral é adquirido pela percepção e pela intuição, assim como são organizados através da reflexão. Segundo intuicionistas, este tipo de saber moral deve ser aproximado do saber matemático em aritmética e geometria (i.e. intuicionismo matemático).[19] A ordem dos valores morais, segundo Clarke e Price, reside na razão divina e dirige a vontade de Deus;

3. não é pressuposta nenhuma concepção da pessoa a não ser a do ego cognoscente que obtém conhecimento intuitivo dos primeiros princípios morais;

4. juízos morais são verdadeiros quando correspondem de maneira precisa a uma ordem independente de valores morais.

Contra essas 4 características, Rawls propõe o seu construtivismo de inspiração kantiana:

ad 1. os princípios da justiça política (conteúdo) podem ser representados como resultado de um procedimento de construção (estrutura). Neste procedimento, os agentes racionais, enquanto representantes de cidadãos e sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios que devem regular a estrutura básica da sociedade;

ad 2. o procedimento de construção é baseado essencialmente na razão prática e não na razão teórica. Como Kant, devemos distinguir a produção de objetos conforme uma concepção dos mesmos (p. ex. a concepção de um regime constitucional justo, tomado como objetivo de esforço político) de um saber de objetos dados (razão teórica/mundo fenomênico). Isto não significa, todavia, que a razão teórica não desempenhe um papel, visto que é pela razão teórica que formamos crenças e saberes, inferências e juízos requeridos na formulação dos princípios de justiça;

ad 3. o construtivismo político pressupõe uma concepção complexa da pessoa e da sociedade (entendidas como "entes racionais com capacidade moral --senso de justiça e senso de uma concepção do bem" e "sistema eqüitativo de cooperação social de uma geração à seguinte");

ad 4. distinção razoável/racional: o razoável é aplicado a concepções e princípios, juízos e fundamentos, pessoas e instituições, sem recorrer ao conceito de verdade, viabilizando o conceito de um "consenso justaposto" (overlapping consensus: todas as razoáveis doutrinas religiosas, filosóficas e morais que apesar de se oporem persistem através dos tempo e mantém um certo número de aderentes num regime constitucional democrático; cf. TJ § 59/387 ss./PL I § 3/15; IV § 3/144-150).

Segundo o construtivismo político, a teoria da justiça como eqüidade é a mais apropriada para sociedades democráticas pluralistas por ser a mais razoável, aquela que melhor traduz um consenso justaposto. O construtivismo político não se opõe assim ao intuicionismo como tal, mas se mostra mais fundamental e abrangente do ponto de vista conceitual. No que diz respeito às diferenças entre os construtivismos kantiano e rawlsiano, pode-se observar que:

1. Enquanto o construtivismo moral de Kant reivindica pretensões de validez como uma "doutrina abrangente" ("comprehensive moral view"), o construtivismo político de Rawls apenas representa um modelo teórico capaz de estabelecer um consenso mínimo necessário para que diferentes doutrinas morais, filosóficas e religiosas possam coexistir numa sociedade democrático-liberal, numa concepção razoável de pluralismo;

2. Assim, Rawls procura diferenciar seu conceito de autonomia política do conceito kantiano de autonomia moral. Enquanto este desempenha um papel regulador, viabilizando a autoconstituição de valores morais e políticos pelos princípios da razão prática, aquele apenas representa a ordem de valores políticos baseados em princípios da razão prática e inseparáveis de concepções políticas da sociedade e da pessoa. Segundo Rawls, sua concepção de autonomia política traduz uma "autonomia doutrinária", a ser diferenciada da "autonomia constitutiva" de Kant --onde a ordem moral é constituída pela atividade da razão prática;

3. Assim como Kant, Rawls mantém que os princípios da razão prática originam-se na consciência moral; ao contrário de Kant, concepções metafísicas --tais como o idealismo transcendental-- não desempenham nenhum papel de fundamentação, segundo Rawls, no estabelecimento de concepções básicas de personalidade (faculdades de um senso de justiça e de concepções do bem) e sociedade(associação de pessoas em cooperação social eqüitativa). Por isso mesmo Rawls poderá falar de uma concepção normativa de pessoa e de sociedade, em substituição ao ideal kantiano de personalidade fundamentado em sua metafísica prática.

4. Enquanto a filosofia de Kant pode ser tomada como uma apologia da racionalidade (coerência e unidade da razão nos seus usos teórico e prático, tese dos dois mundos opondo e compatibilizando natureza e liberdade), a teoria da justiça como eqüidade apenas desvela o fundamento público da justificação em questões de justiça política dado o fato de pluralismo razoável.

Rawls serve-se, assim, da representação procedimental do imperativo categórico kantiano (requisitos da razão prática pura na formulação de máximas racionais universalizáveis) a fim de responder três questões fundamentais do construtivismo:

i. o que é afinal construído? o conteúdo de uma concepção política de justiça (na TJ, os dois princípios de justiça escolhidos pelas partes na posição original de forma a representar os interesses de todos por elas representados); no construtivismo moral kantiano, o conteúdo da lei moral, i.e. a totalidade de imperativos categóricos que passam o teste procedimental do "CI-procedure" (enunciação de máximas do agente moral, universalização das mesmas, sua transformação em uma lei da natureza, sua aproximação de uma nova ordem natural, normativa) na medida em que são construídos procedimentalmente por agentes racionais sujeitos a restrições razoáveis;

ii. a posição original é ela mesma também construída? não, ela é apenas esboçada (laid out) na formulação de uma sociedade bem-ordenada enquanto sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos racionais e razoáveis; como em Kant, o princípio universalizável da justiça é uma versão restrita do imperativo categórico;

iii. como as concepções de cidadania e de uma sociedadde bem ordenada são implícitos ou modelados pelo procedimento construtivista? a forma do procedimento e suas características mais específicas são derivadas dessas concepções tomadas como suas bases, i.e. a concepção de pessoas livres e iguais, racionais e razoáveis, é espelhada no procedimento construtivista.[20]

Rawls contrasta, deste modo, a razoabilidade e racionalidade dos cidadãos (nas suas duas faculdades morais enquanto pessoas) com a racionalidade das partes (na escolha racional). Apesar de não ser explicitamente desenvolvidas em TJ, esta distinção entre o razoável (reasonable) e o racional (rational), de inspiração kantiana, é pressuposta em várias passagens, notavelmente na prioridade da justiça sobre o bem. Se em TJ a posição original representa o ponto de vista a partir do qual os eus noumênicos olham o mundo (TJ § 40), as reformulações em PL respondem à pergunta inicial: quais são os princípios para efetivar a liberdade e a igualdade inerentes a um sistema eqüitativo de cooperação entre cidadãos livres e iguais? Em que condições se dá o contrato social? Somente assim pode-se entender a natureza procedimental da TJ, em particular, a pressuposição do véu de ignorância (veil of ignorance) na posição original enquanto dispositivo de representação (device of representation), de forma a abstrair-se de contigências do mundo social. E é neste ponto tão decisivo para a formulação de sua teoria que John Rawls mais se aproxima de Kant. Rawls chega a enfatizar que o véu de ignorância é denso (thick) e não transparente (thin), de forma a viabilizar o consenso justaposto (overlapping consensus) exigido pelo pluralismo razoável de sociedades democráticas hodiernas. Neste sentido, como bem observou Carlos Thiebaut, "a contribuição de Rawls resulta contratualista na medida em que a teoria do contrato seja uma teoria kantiana".[21] O neocontratualismo rawlsiano coincide precisamente com a sua apropriação do construtivismo kantiano, na auto-regulação recorrente de uma cooperação social entre pessoas livres e iguais. Portanto, na medida em que direitos, valores e normas politicamente objetivados numa Constituição são reivindicados através de práticas cotidianas intersubjetivas (pelo voto, por reformas constitucionais, por atos de desobediência civil, pelo exercício pleno da cidadania) as aparentes defasagens entre os ideais reguladores de uma situação hipotética (situação original, sociedade bem-ordenada, os dois princípios da justiça) e nossas experiências concretas de existência social são gradativamente corrigidas de forma a "consolidar" ("to entrench") o processo democrático-constitucional.[22] O equilíbro reflexivo (tanto no sentido restrito dos princípios morais e juízos particulares quanto no sentido amplo da natureza humana e suas formas de vida sociais) sempre nos remete ao processo de construção de uma sociedade bem-ordenada, de forma a nos integrar com a interminável tarefa de recorrer à posição original enquanto dispositivo procedimental de representação.

NOTAS:


* A primeira versão (em inglês) deste paper foi apresentada na State University of New York at Stony Brook, em 1995; uma versão em português foi lida no Encontro Nacional da ANPOF em Águas de Lindóia, SP, em 1996, e uma outra no I Simpósio Internacional sobre a Justiça, em Florianópolis, em 1997. Cf. Tractatus ethico-politicus (Edipucrs, 1999), cap. 7.

1 - John Rawls, A Theory of Justice, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971; Political Liberalism, New York: Columbia University Press, 1993; Paperback ed. 1996; "Kantian Constructivism in Moral Theory", Journal of Philosophy 77 (1980): 515-72. Respectivamente abreviados como TJ, PL e KC.
2 - Cf. David Rasmussen (org.), Universalism vs. Communitarianism: Contemporary Debates in Ethics, (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1990); Michael Kelly, Critique and Power: Recasting the Foucault/ Habermas Debate (MIT Press, 1994); recensão do A. in Constellations (International Journal of Critical and Democratic Theory) 4/1 (1997): 141-144.
3 - Brian Barry, Theories of Justice: A Treatise on Social Justice, Vol. I. Berkeley: University of California Press, 1989. Cf. PL 17 n. 2.
4 - Em TJ 20 n. 7, Rawls nos remete ao clássico de Goodman de 1955, Fact, Fiction, and Forecast; a crítica ao "observador impessoal" e ao "ponto de vista impessoal" de Nagel (The View from Nowhere) encontra-se em TJ 184-92 e em PL 116 n. 19.
5 - Kenneth Baynes, The Normative Grounds of Social Criticism: Kant, Rawls, Habermas, Albany: SUNY Press, 1992. Doravante, NG.
6 - Servimo-nos das abreviaturas KrV, KpV, KU, GMS e MdS para referir-me às obras de Kant Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática, Crítica da Faculdade do Juízo, Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Metafísica dos Costumes, respectivamente, editadas por W. Weischedel (Suhrkamp Taschenbuch). 7 - "I have tried to bring together into one coherent view the ideas expressed in the papers I have written over the past dozen years or so." TJ vii.
8 - Cf. Textos de Habermas e Rawls no Journal of Philosophy XCII/3 (March 1995); Thomas McCarthy, "Kantian Constructivism and Reconstructivism: Rawls and Habermas in Dialogue", Ethics 105 (October 1994): 44-63. 9 - Cf. NG 21-25; Y. Yovel, Kant and the Philosophy of History, Princeton University Press, 1980; P. Riley, Kant's Political Philosophy (Rowman & Littlefield, 1983).
10 - "Ethical Theory and Utilitarianism" in H.D. Lewis (org.), Contemporary British Philosophy, Londres: Allen and Unwin, 1976.
11 - Cf. Ricardo R. Terra, A Política Tensa: Idéia e Realidade na Filosofia da História de Kant, São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 77-82.
12 - I. Kant, À Paz Perpétua, trad. M.A. Zingano, Porto Alegre: L&PM, 1989, p. 60.
13 - Cf. Ernst Cassirer e Martin Heidegger. Débat sur le kantisme et la philosophie, Paris: Beauchesne, 1972; Dennis Lynch. "Ernst Cassirer and Martin Heidegger: The Davos Debate" Kant-Studien 81/3 (1990): 360-370; Jacob Rogozinski, "Desconstruir a lei?" Kriterion 87 (1993) 70-94.
14 - Cf. Ernst Cassirer, Kant's Life and Thought, N. Haven: Yale University Press, 1981, p. 175s.; Martin Heidegger, Kant et le problème de la métaphysique, Paris: Gallimard, 1953, § 31-33.
15 - Eckart Förster (org.), Kant's Transcendental Deductions: The Three 'Critiques' and the 'Opus postummum'. Stanford University Press, 1989.
16 - Ibid., p. 105 n. 16; cf. E. Cassirer, op. cit., pp. 238-247.
17 - M. Heidegger, op. cit., § 36, p. 262.
18 - Carlos Thiebaut, "As Racionalidades do Contrato Social: Kant e Rawls", in Paulo Krischke (org.), O Contrato Social, Ontem e Hoje. São Paulo: Cortez, 1993, pp. 283-317.
19 - Cf. Charles Parsons, "Kant's Philosophy of Arithmetic", in Mathematics and Philosophy, Ithaca, NY: Cornell University Press, 1983.
20 - Cf. J. Rawls, "Themes in Kant's Moral Philosophy", art. cit., pp. 98-99.
21 - C. Thiebaut, art. cit., in P. Krischke, op. cit., p. 284.
22 - Sobre "Entrenchment of Rights" em Rawls, cf. PL 234-238. Traduzo "entrench" por "consolidar" no sentido de "estabelecer firmemente" (como em "customs entrenched by tradition", "entrenched clauses in a constitution, i.e. which can be changed only by a special procedure").

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