Hegel, Heidegger, Derrida:

Desconstruindo a Mitologia Branca

Nythamar Fernandes de Oliveira*

* A versão original e completa deste paper, contendo todas as notas e referências bibliográficas, se encontra na Veritas 47/1 (2002): 81-97. 

Für Seyla Benhabib

ABSTRACT: This article seeks to show to what extent metaphoricity is inherent to Jacques Derrida’s deconstruction and succeeds in articulating concept and metaphor in the philosophical discourse, without reducing one to the other, so as to allow for a discursivity on alterity, as an alternative to Hegel’s dialectics and his semiology of Aufhebung, as well as to Heidegger’s own deconstruction. It is also shown, in light of John Caputo’s demythologizing approach, that Derrida’s hermeneutic actually radicalizes and fulfills Heidegger’s deconstruction.

KEY WORDS: alterity, Aufhebung, concept, deconstruction, dialectics, metaphor, semiology.

RESUMO: Trata-se de mostrar em que sentido a metaforicidade é inerente à desconstrução de Jacques Derrida e logra articular conceito e metáfora no discurso filosófico, sem reduzir um ao outro, viabilizando uma discursividade sobre a alteridade, como alternativa à dialética hegeliana e sua semiologia de Aufhebung, assim como

PALAVRAS-CHAVE: alteridade, Aufhebung, conceito, desconstrução, dialética, metáfora, semiologia.

"La métaphysique --mythologie blanche qui rassemble et réfléchit la culture de l’Occident: l’homme blanc prend sa propre mythologie, l’indo-européenne, son logos, c’est-à-dire le mythos de son idiome, pour la forme universelle de ce qu’il doit vouloir encore appeler la Raison. Ce qui ne va pas sans guerre (...) Mythologie blanche --la métaphysique a effacé en elle-même la scène fabuleuse qui l’a produite et qui reste néanmoins active, remuante, inscrite à l’encre blanche, dessin invisible et recouvert dans le palimpseste" . (J. Derrida, "La mythologie blanche", Marges --de la philosophie, p. 254)

"Car la pensée de Heidegger n’est pas simplement une pensée du rassemblement...Elle ne pense qu’en donnant à penser ou en pensant ce qui appelle et donne à penser... ‘Ce qui nous appelle à penser nous donne à penser (Was uns denken heißt, gibt uns zu denken)’." (J.D. Mémoires, p. 140; M. Heidegger, Was heißt Denken?, p. 83)

"Le métaphorique trouve son application principale dans l’expression parlée que nous pouvons à cet égard considérer sous les apects suivants: a) Tout d’abord, chaque langue a déjà en elle-même une multitude de métaphores. Celles-ci naissent de ce qu’un mot qui ne signifie d’ abord quelque chose de totalement sensible (nur etwas ganz sinnliches bedeutet) est transporté (übertragen wird) dans l’ordre du spirituel (auf Geistiges) ...b) Mais peu à peu s’efface à l’usage (im Gebrauche) le métaphorique d’un tel mot qui, à l’usage (durch die Gewohnheit), se transforme pour devenir, d’expression non propre (uneigentliche) expression propre (eigentlichen Ausdruck)..." (G.W.F. Hegel, Esthétique II, ch. III, § 3; apud. Marges, p. 268)

I - Desmitologizando Hegel

Para Jacques Derrida, Georg Wilhelm Friedrich Hegel é "o pensador da diferença irredutível" e, seguindo o Denkweg heideggeriano, Hegel é considerado "o último filósofo do livro e o primeiro pensador da escritura" na medida em que "reabilitou o pensamento como memória produtiva de signos" e "reintroduziu a essencial necessidade do rastro (la trace) escrito no discurso filosófico". Assim como a fenomenologia do significado em Husserl inspira a gramatologia derridiana sob o signo de uma écriture originária capaz de subverter o domínio fonocêntrico da racionalidade ocidental, a semiologia hegeliana conduz Derrida em sua investida programática contra o logocentrismo. Se Nietzsche, Heidegger e Freud determinam o espaçamento derridiano da desconstrução, é sobretudo a partir de suas releituras de Hegel que Derrida nos guia através de tradições da "metafísica da presença" a serem desconstruídas. De resto, a desconstrução derridiana pode ser vista como uma tentativa radical de articular uma resposta não-dialética ao desafio hegeliano de operar a relève (Aufhebung, superação, negação, elevação) da metafísica. Pelo movimento duplo que reintroduz Hegel em sua própria desconstrução Derrida logra situar e deslocar seus próprios escritos nas margens do espaço filosófico que ele mesmo denomina o "après-Hegel", o espaço acadêmico no qual todos nós modernos (e pós-modernos) permanecemos inscritos com relação a l’âge de Hegel. Assim como a filosofia opera, segundo Hegel, através da introdução recorrente de imagens, metáforas e conceitos, in mediam rem, visando uma completude conceitual, Derrida recorre a metáforas e filosofemas hegelianos –repetindo Hegel-- para destacar o papel semiológico da introdução no sistema dialético hegeliano. Como escreve Derrida no seu trabalho mais importante (e polêmico) sobre Hegel,

Einführung, comme disent les philosophes allemands, introduction dans Hegel. Einführung commande l’accusatif et indique donc le mouvement actif de pénétration... le problème de l’introduction à la philosophie de Hegel, c’est toute la philosophie de Hegel: déjà posé partout, en particulier dans ses préfaces et avant-propos, introductions et concepts préliminaires.

Além do efeito falogocêntrico de dupla ereção --das duas colunas que, em Glas, nos remetem à filosofia de Hegel e à não-filosofia do escritor francês Jean Genet (o marginal por excelência: ladrão, penitenciário e pederastra)--, Derrida assinala uma dupla invaginação, do inconsciente talvez, operante na desconstrução avant la lettre da escritura hegeliana: a imaculada conceição (o conceito do conceito, der Begriff des Begriffes) e a irmã transcendental (Antígona, na transgressão da lei, evocada por Hegel na Fenomenologia do Espírito). É no interior mesmo de uma suposta dialética de reconciliação, tão cara ao sistema hegeliano, que Derrida visa uma lógica binária a ser desconstruída pela sua oposição diferenciando e diferindo –no sentido indecidível da différance-- o inteligível e o sensível, o conceitual e o metafórico, a lei diurna da polis e a lei noturna do oikos, identidade e diferença. O fim da história e a realização totalizante do Saber Absoluto (Sa, Savoir absolu, que em francês pode ser tomado também no sentido ambíguo do ça freudiano-lacaniano e como abreviatura do signifiant) nos remetem, portanto, ao glas da filosofia ocidental (glas, do latim classum, classicum, sonnerie de trompette, denota, em francês, o sonido do sino para anunciar a agonia, as obséquias ou morte de alguém). A dialética hegeliana empreende, pelo trabalho do negativo e da exterioridade, a morte da metafísica, por quem dobram os sinos (glas) de toda a história da filosofia. A questão do que não pode ser calculado, o "resto" da filosofia, o inclassificável, o que resiste e desafia toda lógica totalizante é o ponto de partida de Glas: "quoi du reste aujourd’hui, pour nous, ici, maintenant, d’un Hegel?" E foi a partir de um ensaio apresentado em 1968, num seminário de Jean Hyppolite no Collège de France, que Derrida iniciou sua investigação semiológica sobre o trabalho do conceito em Hegel e sua Aufhebung:

E se a superação (relève) da alienação não é uma certeza calculável, pode-se falar ainda de alienação e produzir enunciados no sistema da dialética especulativa? Da dialética em geral, que aí resume sua essência? Se o investimento na morte não se amortizasse integralmente (mesmo no caso de um benefício, de um excedente de lucro) poder-se-ia ainda falar de um trabalho do negativo? Que seria um "negativo" que não se deixasse superar?

Como não poderia analisar, "aqui e agora", todas as nuâncias e problemáticas questões suscitadas pela leitura que Derrida nos oferece de Hegel, limitar-me-ei a tecer alguns comentários e oferecer algumas reflexões sobre a semiologia da Aufhebung hegeliana e sua desconstrução heideggeriana, na medida em que ela governa e elucida a desconstrução derridiana da "mitologia branca" inerente à filosofia ocidental. Para Derrida, a fim de "penetrarmos" e "invaginarmos" a estrutura falogocêntrica e etnocêntrica da escritura filosófica ocidental, temos de ousar transgredir seus limites de textualidade, na própria tentativa de contrapor ficção e não-ficção: "il n’y a pas de hors-texte", tudo é desde sempre interpretação, tudo é efeito da différance. Não seria questão de simplesmente trivializar a historicidade ou a socialidade de nossos engajamentos fatuais, como o sugerem reacionários estadunidenses, tais como Alan Sokal, William Bennett e todos os que reduzem a desconstrução derridiana ao moto "anything goes!" (vale tudo!) Ao contrário do que insinua Habermas, não se trata de meramente nivelar literatura e filosofia –ou filosofia e não-filosofia—mas de relevar a ficcionalidade inerente ao mundo no qual o sujeito só emerge através de seu deslocamento num inesgotável jogo de significações, onde não há mais recurso disponível a um suposto significado fixo ou transcendental, seja ele literário ou não, oriundo do liberalismo, do comunitarismo ou de quaisquer tradições. E este jogo de auto-superação (Selbstaufhebung), relevando a singularidade concreta do outro para a auto-afirmação de si, é um negócio de família (family business) cuja ontogênese Hegel descreveu fenomenologicamente:

Au point où nous sommes, la lutte à mort pour la reconnaissance oppose des consciences, mais des consciences que le procès familial a constituées en totalités. L’individu qui s’engage dans la guerre est un individu-famille. On ne peut pas comprendre l’essence de la conscience sans passer par la Potenz familiale... Il n’y a pas de conscience pure, d’ego transcendantal dans lequel on puisse réduire le noyau familial.

Assim como a filosofia sempre chega tarde demais (immer zu spät) para enuciar através de conceitos o que a história já nos mostrou com a mesma necessidade, há uma lógica de inversões, revoluções e desvios no interior mesmo da história da filosofia, na busca incessante de novos conceitos que emergem das cinzas de filosofemas já sempre (immer schon, toujours déjà, always already) metaforicamente superados. O conceber do conceito não é inocente, na medida em que toda posição é reposição, transposição, imposição, exposição. Neste sentido, nós reiteramos Hegel e, malgré lui, o introduzimos lá mesmo onde ele já havia antecipado uma invaginação de sentido, nas mises en abîme de metaforemas que acabam por trair todas as mises en scène de filosofemas metafísicos. Assim como o espaçamento opera as mises en abîme na descontrução textual –por exemplo, em Glas, entre as duas colunas desvelando as assinaturas de Hegel e Genet—, a metaforicidade entra em cena por um efeito de invaginação, na medida em que são delineadas as novas "bainhas" dos "textos" em questão, o que é central e o que resta nas margens, o que está "dentro" e o que está "fora" de uma suposta textualidade. Os coups de dés derridianos traduzem e traem, deste modo, os operadores hegelianos de negatividade: o "Ent" de "Ent-wicklung" (em francês, "dé-veloppement") é reiterado em dé-construction, dé-placement, dé-passement, dé-cision, dé-chéance, etc. O que é des-feito (dé-fait) é sempre um efeito, um après-coup que difere no espaçamento próprio da significação textual, seguindo as variações disseminativas de um Mallarmé: "Un coup de dés jamais n’abolira le hasard... Toute Pensée émet un Coup de Dés." O lançar de dados em Derrida ainda nos remete ao amor fati nietzscheano, numa representação repetitiva (des répétitions représentées) de suas mises en scènes de filosofemas enquanto metaforemas. A concepção derridiana de metaforicidade deve ser, portanto, compreendida em sua implícita operação de desconstrução e pode nos guiar na elucidação de uma escrita que resiste à espiritualização conceitual da dialética.

Como não há um ponto de partida absoluto, assim como não há um significado transcendental, nós estamos desde sempre situados com relação aos próprios momentos que visamos englobar através de representações espácio-temporais. Sendo o próprio círculo nada mais do que uma representação totalizante, e para Derrida, a metáfora hegeliana por excelência, parece-nos apropriado examinar em que sentido a metáfora pode ser usada para dar conta da operação de Aufhebung, no seio mesmo do conceito do conceito, desde a sua introdução (na Enciclopédia, §§ 17, 163). Segundo Derrida, "Nous sommes, dès l’introduction, encerclés". Se Hegel foi indubitavelmente o primeiro filósofo ocidental a nos introduzir social e historicamente em nossa própria gênese lógico-linguística de constituição intersubjetiva, da consciência de si e de sua autodeterminação, Derrida vê no recurso à "introdução" mais do que uma estratégia pedagógica ou didática:

La seule place légitime de l’Introduction, dans le système, c’est l’ouverture d’une science philosophique particulière, par exemple l’Esthétique ou l’Histoire de la Philosophie. L’Introduction articule la généralité déterminé de ce discours dérivé et dépendant sur la généralité absolue et inconditionnée de la logique. Hegel ne se contredit donc nullement lorsqu’il pose, dans les Leçons sur l’esthéthique ou sur l’histoire de la philosophie, la nécessité d’une introduction.

A fim de explorar os motifs que opõem, na dialética hegeliana, o sensível e o inteligível, Derrida procura na representação espiritual (geistige) seu próprio deslocamento (Entstellung), na medida em que se trata de inscrevermos "um círculo dentro de um círculo de círculos", num movimento que serve para caracterizar o Geist revenant que anima e assombra toda introdução a pretensas superações da metafísica, da Aufhebung hegeliana à Verwindung heideggeriana: "L’esprit n’est ce qu’il est, ne dit ce qu’il veut dire qu’en revenant". Este é, afinal, o teor de circularidade hermenêutica que acompanha inevitavelmente todo trabalho de desconstrução, para além de todos os jogos de significantes e sistemas de lógicas binárias –como uma dívida que não pode ser paga, a saber, a da verdade enquanto metáfora: "je vous dois la vérité". No seu ensaio sobre a "Mitologia Branca", Derrida articula o problema do uso de metáforas no discurso filosófico com a recepção, transposição, tradução e traição de tradições –filosóficas e não-filosóficas. Na medida em que a tarefa da filosofia consiste em "pensar o seu outro" (penser non autre), Derrida observa, todavia, que a Aufhebung hegeliana é conivente com o conceito filosófico de metáfora ao problematizar uma concepção tradicional de linguagem, a qual, desde Platão e Aristóteles, mantém uma correspondência metafísica entre a essência de uma coisa e o seu pensamento, tendo na palavra uma referência a ambas instâncias para "traduzi-las" adequadamente (adaequatio intellectus ad rem).

É assim que Hegel admite, ao classificar sua teoria de signos dentro da psicologia, que está deliberadamente seguindo a teoria aristotélica da interpretação (notavelmente, Peri Psychés e Peri Herméneias). Derrida afirma, de resto, que nem mesmo a "semiologia científica" de Saussure questiona ou desafia o continuum metafísico que liga Aristóteles a Hegel. O que tinha sido estabelecido pela oposição aristotélica entre "palavras faladas" e nossa "experiência mental" das coisas é agora concebido por Hegel em termos da oposição sensível-inteligível. Assim como no triângulo semiológico saussureano a palavra logra articular uma unidade arbitrária entre o significado (signifié) e o significante (Signifiant) com uma referência extra-linguística, o Begriff espiritual da semiologia hegeliana opera a Aufhebung da representação (Vorstellung) que nega, eleva e preserva o signo (Zeichen) exterior da coisa (Ding) em sua interioridade. Para Derrida, a semiologia hegeliana logra superar –relevar-- desse modo as oposições binárias do idealismo clássico, através da operação dialética da Aufhebung que introduz um terceiro termo, negando ao mesmo tempo em que eleva, de forma a sublimar numa interioridade anamnésica (Erinnerung), ao internalizar a diferença na auto-presença.

É precisamente esta interioridade subjetiva que abriga a Aufhebung da imediatez sensível através da representação (Vorstellung) do signo. O signo (Zeichen) opera a mediação entre a percepção sensível da coisa (Ding) e o seu conceito inteligível (Begriff), unindo significante e significado. Assim como se dá a concepção do conceito, Hegel nega qualquer identificação do conceito com um nível idealizado da coisa em si ou segundo um esquematismo transcendental, como o fizera Kant. Todavia, tanto Hegel quanto Saussure ainda privilegiam a fala com relação à escrita nas suas respectivas concepções do signo em sua unidade de significação, reduzindo a escrita a uma representação exteriorizada e traindo, assim, uma teleologia metafísica. Para Derrida, esta é com efeito a traição do Sujeito sistematicamente traduzido pela concepção hegeliana do conceito. A fim de apreender tal "imaculada conceição", Derrida estrategicamente enfoca o problema da tradução da Aufhebung hegeliana como relève: "Se houvesse uma definição de différance, esta seria precisamente o limite, a interrupção, a destruição da relève hegeliana onde quer que ela opere".

Derrida insiste, portanto, que différance não é uma palavra nem é um conceito, mas apenas um motif operacional, um quase-conceito, aquém da impossível concepção espiritual do conceito. A relève da Aufhebung traduz, toujours déjà, o que resulta na Aufhebung hegeliana, "o resto" (le reste) de uma alteridade que não pode ser calculada, incomensurável, assimétrica, tout autre, efeito de différance. Contra a lógica hegeliana do signo, unindo significado e significante pela exteriorização, a desconstrução derridiana da Aufhebung mantém que a oposição dentro-fora já é ela mesma um efeito de différance. A desconstrução da "autoridade do significado" denuncia, portanto, o "significado transcendental" ou telos da história que governa, em última instância, "a história da significação", de Aristóteles até Hegel, Saussure e Husserl. A metafísica do puro e do espiritual é a grande pia fraus que funda a própria Aufhebung da Razão.

Partindo da trivial oposição entre o sentido literal, original, que é transposto pela metáfora num sentido literário, espiritual, Derrida procura esclarecer que nem uma "retórica da filosofia" nem uma "metafilosofia" podem satisfazer a "lei do suplemento", precisamente porque não seriam capazes de desconstruir a partir de um suposto nível de interioridade, o que já trairia em si um ideal de exterioridade. Não se trata portanto de simplesmente inverter a relação entre conceito e metáfora, ou de subverter o significado espiritual pela mera inversão que privilegia o sensível. De resto, a concepção de metaforicidade que Derrida propõe deve ser diferenciada tanto de Ricoeur quanto de Heidegger, na medida em que Derrida reabilita o conceito nietzscheano de verdade como metáfora para além de toda lógica binária. A "exclusão do outro" é, com efeito, um dos temas privilegiados pela desconstrução derridiana por se tratar precisamente de uma metáfora de traição, tradução e tradição da alteridade. A própria mise en scène da "mitologia branca" tematiza essa lógica de exclusão, a partir do exergo (do grego ex ergon, "fora da obra", espaço onde se inscreve uma legenda, numa moeda ou medalha) que anuncia a "metáfora no (dans) texto filosófico", inscrição esta que remonta à polis grega. É nos limites de uma metafórica metafísica que Derrida se propõe a reconstituir uma "história do significante" através de sua desconstrução. Filosofemas tais como a "idéia", por exemplo, cujo uso metafórico trazem ganhos e perdas de Platão a Kant e Hegel, têm muito a nos ensinar sobre tal "arqueologia do significante", não tanto para nos revelar sentidos etimológicos ocultos mas de forma a desvelar "um fardo [charge] tradicional que continua o sistema de Platão no sistema de Hegel." É assim que Derrida chega a propor que a desconstrução seja definida como um programa radical de leituras estratificadas:

Nem etimologia nem origem puras, nem continuum homogêneo nem sincronismo absoluto ou interioridade simples de um sistema a si mesmo. Isso implica que se critique simultaneamente o modelo da história transcendental da filosofia e o das estruturas sistemáticas perfeitamente fechadas sobre a sua disposição técnica sincrônica...

Derrida articula a metafísica com a relève da metáfora de modo que sejam evitadas tanto uma suposta superação da metafísica pela supressão da metáfora no texto filosófico, como o insinua a desmitologização proposta por Anatole France (la mythologie blanche, em sua formulação originária), quanto a sua metaforicidade de inversão conceitual numa poética pós-metafísica, ursprüngliche, de inspiração heideggeriana. Além de assinalar um importante ponto de ruptura com relação à leitura que Heidegger faz de Nietzsche, Derrida introduz Hegel nesta encenação de metáforas, metaforemas e do bom uso da filosofia com o intuito de enfatizar a indecidibilidade de sua metaforicidade, irredutível a uma metaforologia ou a uma metapoética –como o propôs Bachelard. Embora metáfora e metafísica se impliquem mutuamente, Derrida não hesita em afirmar que "o texto filosófico não está menos na metáfora do que esta no texto filosófico". A impossibilidade da metaforologia revela, ao contrário, um tropo de alteridade dissimulado pelas teologias e pelas heliotropias que reintroduzem metáforas em discursos filosóficos: a dominação. Este é, afinal, o saldo negativo que não pode ser calculado pelas lógicas de exclusão da racionalidade eurocêntrica e falogocêntrica. A metaforicidade em Derrida se constitui, assim, em uma dupla mise en abîme do conceito filosófico de metáfora (de uma "metaforologia") e de uma metáfora da metáfora ("metapoética"), de forma a problematizar a própria diferença entre conceito e metáfora em filosofia. A impossibilidade de fundar o conceito do conceito pela Aufhebung hegeliana nos remete desde sempre aos desafios de lógicas de exclusão, incapazes de fazer jus a uma alteridade que resiste totalizações linguísticas e historicizantes. Este foi um legado hegeliano do qual Derrida se apropriou, não somente pela influência direta de pensadores como Georges Bataille e Jean Hyppolite, mas através de seu mais problemático interlocutor e mentor intelectual, Michel Foucault, cujas palavras ainda nos impelem ao pensamento da alteridade:

Mais échapper réellement à Hegel suppose d’apprécier exactement ce qu’il en coûte de se détacher de lui... cela suppose de savoir, dans ce qui nous permet de penser contre Hegel, ce qui est encore hégélien; et de mesurer en quoi notre recours contre lui est encore peut-être une ruse qu’il nous oppose et au terme de laquelle il nous attend, immobile et ailleurs.

II - Desmitologizando Heidegger

Em se tratando de fazer jus a tradições filosóficas a serem desmitologizadas, nada mais justo do que abordar a desconstrução de Hegel e Heidegger à luz de um topos correlato ao do que seria uma fenomenologia da justiça-- na medida em que Derrida textualiza e esteticiza a problemática ético-política, ao desmitologizar a própria leitura desconstrutiva que Heidegger nos oferece de Hegel, notavelmente em Sein und Zeit (§§ 45, 48, 78-79, 82-83). As infindáveis discussões acerca de uma teoria da justiça, seguindo a publicação da obra-prima de John Rawls em 1971 nos remetem, entre outros problemas, à articulação clássica entre teoria e prática. Creio que uma abordagem fenomenológica desta questão poderia contribuir para uma das mais importantes discussões, neste amplo contexto, sobre a concepção de justiça em termos de alteridade, igualdade e liberdade. Ao contrário do que poderiam sugerir leituras apressadas ou simplificadas, não se trata de atribuir um peso maior a uma ou outra concepção enquanto princípio fundante ou idéia diretriz de uma teoria liberal (liberdade) ou comunitarista (igualdade) da justiça. Tratar-se-ia tampouco de privilegiarmos um paradigma ontológico, intersubjetivo ou lingüístico com relação a todos os outros que o precederam até então, de forma a salvaguardar um suposto princípio supremo da alteridade. Minha hipótese de trabalho --aqui e alhures-- é que um dos grandes méritos de uma abordagem fenomenológica consiste precisamente em sobrepor vários paradigmas possíveis --em particular esses três (ontologia, subjetividade e linguagem)—sem necessariamente super< -los num efeito de Aufhebung hegeliana, como o sugerem autores tão distintos quanto Husserl, Heidegger, Foucault, Habermas e Derrida em suas originais contribuições para a questão do método em filosofia. De resto, Derrida procura resgatar uma leitura não-dialética de Heidegger (ao contrário de Marcuse, Kojève e Sartre) que o afasta de Hegel e o aproxima de Nietzsche na própria "questão do método" que predomina a recepção francesa pós-estruturalista da fenomenologia alemã. Naturalmente, "mJ todo" é tomado aqui num sentido filosófico fundamental. Como observou Ernildo Stein, "A filosofia não trata propriamente de conteúdos. Ela importa como caminho, como método. Uma vez que o método prestou seu serviço, torna-se inútil". Assim, diferentes apropriações em fenomenologia e hermenêutica do problema da ética e da filosofia política foram oferecidas no século passado, com novas propostas de método para as pesquisas em ciências sociais: penso em particular nas investigações ético-ontológicas de Max Scheler e Emmanuel Levinas, na filosofia política de Hannah Arendt, na fenomenologia do mundo social de Alfred Schütz, na genealogia da subjetividade de Michel Foucault, na hermenêutica metafórica de Paul Ricoeur, na hermenêutica política de Rainer Schürmann, na ética fenomenológica de Werner Marx e na teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas. Autores norte-americanos como Richard Rorty, Fred Dallmayr, Richard Bernstein e John Caputo têm contribuído para uma reformulação de tais apropriações de forma a responder, por um lado, à constante reserva de filósofos analíticos da linguagem quanto a pseudoproblemas metafísicos e insustentáveis recursos fundacionistas na fenomenologia e hermenêutica, e, por outro lado, levar a cabo uma crítica imanente do pragmatismo pós-kantiano e do niilismo pós-nietzschiano. A fim de situar Demythologizing Heidegger dentro da crítica pós-moderna a uma fenomenologia da justiça, como o faz John Caputo, gostaria de tecer alguns breves comentários sobre o seu projeto original de uma hermenêutica radical.

A obra de Caputo, como um todo, pode ser considerada ela mesma um exercício de "hermenêutica radical" e ser resumida nesta fórmula lapidar: "Esta hermenêutica [radical] nos expõe às rupturas e lacunas, digamos, à textualidade e à diferença que habitam tudo que pensamos, fazemos e esperamos."(RH p. 6) Uma hermenêutica radical pressupõe uma epoché hermenêutica que questiona toda a autoridade do que é "presente", negando o prestígio metafísico de tudo o que é "dado" na medida mesmo em que toda presença é co-constituída. Segundo Caputo, tanto Husserl quanto Heidegger anteciparam a radicalidade da desconstrução que seria levada a cabo por Jacques Derrida. Afinal, o sentido fenomenológico de tal hermenêutica Caputo identifica com a hermenêutica da facticidade do Heidegger dos anos 20. A desmitologização de Heidegger se inspira na leitura que Derrida nos oferece da recorrência heideggeriana a uma metafísica da presença no interior da própria crítica heideggeriana da metafísica: Eigentlichkeit, Ereignis, aletheia e todo o projeto de uma "onto-hermenêutica" acabariam por trair uma rememoração platônica em busca de um sentido mais originário e primordial do Ser. É neste sentido preciso que Caputo equipara a desconstrução a uma hermenêutica radical, contrária às hermenêuticas gadameriana e ricoeuriana, que em última análise se aproximam mais de Hegel, Platão e Aristóteles do que de Heidegger.(RH p. 5) Antes mesmo de ser tomada como contra-movimento que se opõe à sedimentação das grandes tradições (o "" francês equivalendo ao "Ent" alemão, como por exemplo, na "desmitologização", Entmythologisierung, de Bultmann ou no "desformalizado", entformalisiert, de Heidegger, Sein und Zeit § 7 C, p. 35, § 48, p. 241, 7a. edição) a desconstrução é movimento, dinamização, pluralização e disseminação das tradições em constantes reapropriações, releituras e reformulações. Rodolphe Gasché nos lembra que o termo "déconstruction" enquanto estratégia quase-metódica de crítica da subjetividade reflexiva em Derrida nos remete ao "Abbau" ("desmantelamento") do Husserl dos anos 30 (notavelmente, Erfahrung und Urteil, de 1938) e à "Destruktion" ("destruição") do Heidegger dos anos 20 (sobretudo, em Sein und Zeit, 1927). Ao contrário da "destruição mental" (gedankliche Destruktion) do primeiro tomo das Ideen (1913), aludindo a outras formas de redução fenomenológica (eidética e transcendental, époché, "colocar entre parênteses"), Abbau é uma regressão não-reflexiva ao mundo da vida, ao mundo pré-teorético e à experiência antepredicativa --um sentido que é analisado pelo próprio Derrida em sua monumental introdução à sua tradução da Origem da Geometria de Husserl (PUF, 1962). Gasché assinala ainda que Heidegger utiliza o termo que viria a ser registrado por Husserl antes mesmo do seu mestre, nas Vorlesungen de 1927 em Marburg (publicadas na Gesamtausgabe em 1975 como os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, volume 24). A fim de evitarmos o paradigma reflexivo da fenomenologia ortodoxa, Heidegger nos convida a uma construção fenomenológica, inevitavelmente correlata a uma desconstrução crítica (kritischer Abbau) das fontes e conceitos-chave da ontologia tradicional. Um dos grandes méritos da hermenêutica heideggeriana consiste precisamente em operar uma mudança radical de enfoque da subjetividade transcendental --que predomina na metafísica ocidental de Descartes a Husserl-- em direção ao Ser enquanto transcendental ou o que ele denomina uma ontologia fundamental, capaz de desvelar uma concepção não-reflexiva da linguagem, historicizada e inseparável do Dasein. Derrida quer se diferenciar de Heidegger precisamente quanto à diferensa (différance, temporização) implícita na própria diferença ôntico-ontológica de Heidegger, a partir da oposição entre ser (Sein) e ente (Seiende) mas voltando a Nietzsche e Freud pela reabilitação do registro perdido, esquecido, reprimido, precisamente enquanto objeto de um esquecimento epocal, na própria tentativa de pretender haver superado a metafísica a ser desconstruída. Em uma palavra, segundo Derrida, estamos desde sempre em presença da metafísica, na metafísica da presença. "Desmitologização" é, portanto, tomada aqui como "desconstrução", ou seja, radicalização da hermenêutica, correpondendo não apenas à desconstrução do sujeito e da metafísica ocidental, segundo o próprio modelo heideggeriano, mas ainda ao complexo parricídio filosófico que mantém em movimento toda a história da filosofia em suas infindáveis interlocuções e rupturas através de mais de 2500 anos de filosofia ocidental. John Caputo subscreve à leitura nietzschiana que Derrida nos oferece de Heidegger, assumindo os riscos e malentendidos decorrentes de uma postura pós-moderna, tanto em filosofia quanto em teoria literária, estudos culturais e ciências da religião. Caputo endossa, portanto, a fórmula de Mark Taylor, segundo a qual "desconstrução é a hermenêutica da morte de Deus". Com efeito, a desconstrução do conceito filosófico-teológico de Deus, na escrita da filosofia ocidental e na escritura da tradição judaico-cristã, é um ponto de partida estratégico para uma desmitologização do corpus heideggeriano.

É neste contexto que eu gostaria de situar minha leitura do volume Desmitificando Heidegger, cuja tradução em português foi habilmente realizada por Leonor Aguiar e editada pelo Instituto Piaget de Lisboa em 1998. Antes de mais nada, gostaria de tecer três rápidas obervações sobre a versão portuguesa. A primeira, quanto ao título mesmo, que melhor teria sido --creio eu-- Desmitologizando Heidegger, fazendo jus ao termo bultmanniano que inspira o artigo com o mesmo título (a versão original é de 1988, portanto cinco anos antes do livro aparecer em inglês), e que, como o justificou Paul Ricoeur, convém distinguir entre "démythiser" e "démythologiser", na medida em que a desmitificação reconhece o mito para superá-lo e suprimi-lo, enquanto a desmitologização o reconhece como mito a fim de fazer sobressair o seu significado simbólico. Segundo Ricoeur, a desmitologização bultmanniana "consiste num novo uso da hermenêutica, que não é mais o da edificação [da hermenêutica bíblica tradicional], a construção de um sentido espiritual sobre o sentido literal, mas um solapar [forage] sob o próprio sentido literal, uma des-truição [dé-struction], isto é, uma des-construção [dé-construction] da própria letra". A segunda observação diz respeito à tradução de vários termos heideggerianos, o que em si já seria objeto de uma mesa redonda sobre tradução (e traição) da tradição heideggeriana no Brasil e em Portugal. Chamou-me a atenção, por exemplo, a versão dos termos Anwesenheit, Geviert, Gestell, Zuhandenes, Vorhandenes para o português, que Ernildo Stein traduz respectivamente como presentificação, quaternidade, arrazoamento, ente disponível, ente puramente subsistente. Não me pareceu satisfatório que Temporalität e Zeitlichkeit sejam indiscriminadamente traduzidas como "temporalidade" –poderíamos seguir a versão americana e a brasileira de Marcia Sá Cavalcante Schuback, sugerindo temporalidade e temporiedade. Também différance aparece sempre na grafia francesa, quando poderia ser escrita em português como diferensa, com "s", produzindo os mesmos efeitos derridianos (ao contrário das limitações impostas pelo inglês e pelo alemão). Apenas gostaria de assinalar aqui a minha convicção de que uma cultura filosófica exige uma cultura de traduções, traições e tradições, sempre no plural. Este é, de resto, um ponto essencial para compreender o sentido da desconstrução em Heidegger, pelo menos na interpretação que nos oferecem Derrida e Caputo. Finalmente, a tradução dos termos "Jewgreek" e "Greekjew" do Ulysses de James Joyce como, respectivamente, "judaico-grego" e "greco-judaico" trai precisamente um uso não-técnico dos termos, para além da civilização greco-judaica ou de codificações judaico-gregas. Segundo Caputo, "Grego-judeu (Greekjew) significa Auschwitz, e todos os outros nomes de ignomínia e sofrimento, todos os Auschwitzs, as vítimas de todos os Nazismos, onde quer que se encontrem, na África do Sul ou no South Bronx [em Nova York], em El Salvador ou na Irlanda do Norte ou na Margem Ocidental [West Bank, Cisjordânia]." Afinal, ainda segundo John Caputo, "desmitologizar Heidegger significa expor a pureza dos seus Gregos às tensões entre Judeus e Gregos, à impossibilidade de entrar ou sair dos Gregos ou dos Judeus, de permanecer puramente de um lado ou do outro, do lado filosófico ou do bíblico, do lado do ‘mito’ ou da ‘filosofia’." (DH p. 25)

Em Desmitologizando Heidegger, pode-se salientar ao menos uma tese central do livro e creio que ela se encontra bem resumida no prefácio do livro: trata-se de mostrar "que o mito do Ser [em Heidegger] procede de um ato de exclusão massiva de tudo que não é grego, que não é originariamente grego, e que a exclusão, em particular de fontes bíblicas, é um erro fatídico e mesmo fatal". Segundo Caputo, "os últimos e mais sinistros desenvolvimentos do pensamento de Heidegger dos anos 30 são já antecipados quando, mesmo nas primeiras investigações acerca do mundo da vida do Novo Testamento, Heidegger tinha silenciado e excisado as temáticas do kardia em favor de uma ontologia da Kampf da fé. Isto encorajou a transição para o voluntarismo massivo do começo dos anos 30, que forneceu a base ideológica para as suas infernais actividades políticas e os seus deploráveis prejuízos políticos".(DH p. 23) A desmitologização de Heidegger consiste, portanto, na reabilitação dos elementos "greco-judeus" (insisto, "gregojudeus" traduziria melhor o termo joyceano-derridiano greekjew) silenciados e excisados pela suposta purificação do pensamento filosófico ocidental. Segundo Caputo, "o gregojudeu é o estado miscigenado de alguém que não é puramente grego nem puramente judeu, que é demasiadamente filosófico para ser puramente judeu e demasiadamente bíblico para ser puramente grego, que está ligado quer a filósofos quer a profetas. Este é o estatuto que Derrida considera convir ao próprio Levinas, cujo projecto não era suplantar a filosofia, mas sim chocá-la, expoondo-a a algo diferente dela própria. É exatamente desta forma que a desmitologização de Heidegger procura expor o mito do Ser ao choque do mito greco-judeu da justiça, opor um mito greco-judeu e uma imaginação greco-judaica a um mito puramente grego. Desmitologizar Heidegger," continua Caputo, "significa destruir este mito greco-alemão da pureza grega, o mito dos Gregos nativos e incipientes (anfänglich) de Heidegger, dos Gregos privados de Heidegger, que alimentaram as chamas do seu nacional-socialismo privado".(DH p. 24) Não se trata de uma obra de linchamento, pois há também uma leitura positiva do Heidegger desmitologizado, remitologizado. Os 10 capítulos tratam do mesmo tema através de perspectivas diferenciadas que se complementam e produzem um efeito de diferensa—na medida em que diferem (se diferenciam em seus contextos particulares de apropriação de concepções heideggerianas) e diferem (postergam um sentido unificado, conclusivo, sobre tal leitura desconstrutiva de Heidegger). A tese inicial, do primeiro capítulo, que guia os nove capítulos subseqüentes, pode ser assim formulada: "em Ser e Tempo, o que Heidegger entende por ‘significado’ do Ser não pode ter instanciação histórica, porque é uma teoria transcendental sobre a história da metafísica e não uma teoria que assuma um lugar nessa história."(DH p. 29) Segundo Caputo, se Heidegger nos oferece, em Ser e Tempo, uma "descrição transcendental das condições de possibilidade do significado do Ser, isto é, do modo como um ‘significado’ do Ser pode surgir após outro", ele efetivamente não propõe o "último ou melhor ‘significado do Ser’" e não poderia ousar fazê-lo nos seus escritos tardios, como acaba por trair seu projeto radical originário. "O fracasso em evitar a mitificação da aletheia", conclui Caputo, "é o fracasso de todos os fracassos em Heidegger, o fracasso que estabelece as bases para as suas conhecidas tendências políticas. Ele retira o sentido à afirmação de Rorty de que o envolvimento político de Heidegger foi inteiramente fortuito, uma conseqüência infeliz de uma má avaliação política, não tendo rigorosamente nada a ver com o seu pensamento".(DH p. 62) Embora não pretenda abordar aqui a questão da recepção de Heidegger após a publicação do livro de Victor Farias, Heidegger et le nazisme, na França em 1987, lembro que Caputo foi um dos primeiros heideggerianos americanos a comentar e criticar esse texto, respondendo ao desafio tão bem formmulado pelo seu amigo e também estudioso de Heidegger, Thomas Sheehan: constatamos agora que além de ter sido o maior filósofo do século XX, Heidegger também foi um nazista. Segundo Sheehan, neste mesmo artigo que é publicado independente e simultaneamente no mesmo ano em que o artigo de Caputo aparece na Review of Metaphysics, não seria questão de parar de ler Heidegger mas de começar a desmitologizá-lo. Portanto, ninguém melhor do que o próprio Sheehan para situar o trabalho de Caputo dentro da recepção heideggeriana nos EUA. Sheehan distingue dois paradigmas da Heidegger-Forschung nos Estados Unidos, a saber: um primeiro que vai da II Guerra Mundial até os anos 50, caracterizado por uma leitura existencialista, influencida pela recepção de Ser e Tempo e de L'Être et le néant de Sartre, e um segundo que inicia em 1963 com a obra monumental de William Richardson, Heidegger: Through Phenomenology to Thought, onde o corpus heideggeriano conhecido até então estrutura os dois períodos antes e depois da Kehre como uma mudança de paradigma ou de enfoque de Dasein em direção a Sein, estabelecendo um modelo interpretativo que seria também encontrado em Otto Pöggeler (Der Denkweg Martin Heideggers, 1963) e Friedrich-Wilhelm von Herrmann (Die Selbstinterpretation Martin Heideggers, 1964).

Uma questão importante neste paradigma clássico da recepção de Heidegger era de não mais entender o Ser / aletheia como horizonte projetado por Dasein no qual os entes são descobertos como verdadeiros, mas de experienciá-lo como força ativa ou processo próprio de autodesvelamento ao Dasein. Segundo Sheehan, o início da publicação da Gesamtausgabe em 1975 consolidou este paradigma e o estendeu a todas as disciplinas para além da filosofia, permitindo inclusive um grande pluralismo de posicionamentos de interpretação da obra heideggeriana, desde as posições mais ortodoxas até as mais heterodoxas. Sheehan distingue quatro posições principais no esprectro heideggeriano:

  1. Na extrema direita, estão os ultra-orthodoxos que veiculam sua interpretação no periódico Heidegger Studies, na mesma linha dos trabalhos de Friedrich-Wilhelm von Herrmann, da Heidegger Gesellschaft na Alemanha e da escola de Beaufret-Fédier-Vezin na França.
  2. Na extrema esquerda, encontramos uma ala rejeicionista (rejectionist wing), um tanto influenciada pelas revelações escandalosas do envolvimento de Heidegger com o nazismo. É neste grupoo que Sheehan situa a contribuição de John D. Caputo, citando o seu Demythologizing Heidegger como manifesto que extrapola a questão do nacional-socialismo e ataca o cerne da filosofia heideggeriana. Sheehan propõe ainda que não deveríamos rotular tais colegas de "heideggerianos que se detestam" ("self-hating Heideggerians"), talvez melhor fosse chamá-los "heideggerianos contra Heidegger" ("Heideggerians against Heidegger"). No meio desses dois extremos encontramos ainda uma centro-direita e uma centro-esquerda, respectivamente dedicadas a comentar estritamente textos de Heidegger e a fazer interlocução com outros pensadores.
  3. A centro-direita representa a ortodoxia, caracterizada por trabalhos meticulosos e de grande erudição como os de Theodore Kisiel e John Van Buren.
  4. A centro-esquerda está representada por assimilacionistas liberais que aproximam suas leituras de Heidegger de outros autores continentais (como Derrida, Levinas e Lacan) e de outras tradições (Wittgenstein, filosofia analítica, pragmatismo).

Conclusão

Segundo Sheehan, a recepção dos Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) (vol. 65, 1989)– traduzidos para o inglês como Contributions to Philosophy (1999)-- deverá ser um novo divisor de águas, seja para favorecer uma "verdadeira" leitura ultra-ortodoxa seja para radicalizar mais ainda a desmitologização de Heidegger. Gostaria de concluir este breve ensaio com uma questão e um desafio. A questão é a da própria desmitologização que nos propõe Caputo. Qual é, afinal, o significado maior da desconstrução senão o que buscamos desconstruir ao desmitologizar e remitologizar filosofemas heideggerianos? Como observou Caputo, para Heidegger, "a filosofia é um questionamento radical e questionar não é algo que possa abrigar-se de forma segura numa universidade reduzida à formação profissional, à produção de funcionários estatais. Se procurarmos dominar o questionamento filosófico como um ofício e colocá-lo ao nosso serviço, então o que faremos não será filosofia".(DH p. 150) O lugar do filósofo nos limites da polis retoma, portanto, o seu não-lugar, o não-lugar da própria filosofia como tem sido diversamente concebida desde os primeiros filósofos gregos até Heidegger. Ao confrontar a questão do destino de um povo, à luz do daimon heraclítico e do demônio socrático, Caputo recoloca a questão em termos da comunidade destinatária: "O que é um [povo] Volk? No final dos anos 30, em Beiträge, Heidegger responde-nos de forma pertinente: "A essência de um Volk é a sua voz (Stimme)" (GA 65, p. 319) A vocação coletiva do povo alemão mostrou, segundo Caputo, que os membros do partido nacional-socialista tinham na verdade uma maior consciência do impacto da questão heideggeriana que o próprio Heidegger.(DH 164) Por isso mesmo Caputo sustenta em seu livro que "a possibilidade de desmitologizar Heidegger é introduzida no próprio Heidegger" e o "trabalho de desmitologizar Heidegger resulta num Heidegger desmitologizado".(DH 164) Inútil seria, portanto, recorrermos a inúmeros artifícios e elaborações míticas capazes de redimir um pensador, uma nação ou um povo na própria historicidade que o condena, "mesmo que fosse o nome do Ser"—parafraseando a citação de Derrida que abre o livro de Caputo. Não há essência primordial ou missão histórica que possam assegurar a grandeza do Início Grego sem responsabilidade, como num jogo livre de significantes e de configurações epocais (DH 141). Portanto, se contrapomos pensamento e poesia parece que incorremos no mesmo problema denunciado por Caputo ao contrapormos mythos e logos, techne e episteme, arte e ciência. Resta-nos, desde sempre, immer schon, o desafio do que ainda nos resta pensar. O desafio é, na verdade, uma reformulação constante do pensamento do impensado, para além de recepções e interpretações sedimentadas na nossa própria história de formação de uma cultura filosófica. O esteticismo derridiano, apesar de sua periculosidade heideggeriana essencial, nos lembra que toda ética radical e todo projeto político nos remetem inevitavelmente a inscrições e codificações --daí a intertextualidade de significantes num jogo de superfícies que podem ser continuamente apagadas, como palimpsestos, sem trair, contudo, a finitude e efemeridade de suas mais sublimes aspirações. Ao contrário do que se pode inferir, a desconstrução não visaria a superar ou, menos ainda, a aniquilar tradições sedimentadas através de vários séculos de civilizações e seus confrontos. O grande legado reside, antes, em não mais ambicionar um estádio último, como se um novo paradigma interpretativo pudesse efetivamente exaurir todas as problemáticas, codificações e descodificações possíveis. A desconstrução é, neste sentido, uma teoria desmitologizante da recepção, uma crítica permanente das novas interpretações emergentes. Como vaticinou Stein, num texto do final dos anos 70, "A recepção das idéias de Heidegger, sobretudo na América Latina, lamentavelmente se orientou no sentido de compreendê-lo como restaurador de uma filosofia primeira e dos mitos ontológicos ...Heidegger abriu o caminho, mas demasiadamente fiel a si mesmo, não chegou à dimensão crítica, onde tomam forma as interrogações humanas no campo da ciência, da técnica, do processo emancipatório, do humanismo, da práxis, enfim. Boa parte do caminho que aí está-se trilhando foi antecipado in nuce pelo filósofo da Floresta Negra. Mas este não pôde saltar sobre sua sombra. Talvez nesta fidelidade a si mesmo esconda-se a grandeza de Heidegger; nela, porém, abriu ele os maiores flancos para a crítica."


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