METÁLICOS - A TRIBO PORTUGUESA

This is part of an article that was published in Público Magazine over nine years ago. I left it in Portuguese with no alterations except for a few spelling errors and stuff, mainly in bands’ names. Time fucking flies. For those of you who were there, and for those who wish they had been, here’s a little trip down nostalgia lane.


O "BOOM" DO "DEATH METAL"
in Público Magazine n.º 226, 3 Jul 1994
Texto: Nuno Ferreira e David Pontes


É meia-noite no Bar Lusitano, em pleno Cais do Sodré. Lá fora, iluminados pelo néon ofuscante dos "night-clubs", marinheiros e prostitutas deambulam abraçados em busca do primeiro táxi. À entrada do bar-discoteca, apenas a presença de três rapazes com "t-shirts" metálicas a controlar a entrada, nos indica que ali a clientela é diferente. Lá dentro, a atmosfera não podia ser mais decadente. Três velhos empregados observam o Jogo do Ganso na televisão, sob o som tonitruante de bandas metálicas. Na sala, uma discoteca que parece ter sido decorada há uns 20 anos, nem vivalma, as mesas vermelhas e os sofás pretos, de napa, vazios.

Meia hora mais tarde, dá-se a transformação. Aos poucos, rapazes e raparigas com "t-shirts" dos Napalm Death e dos Cannibal Corpse vão-se espalhando pela sala. Alguns, vieram directamente do Gingão, uma antiga taberna do Bairro Alto onde se concentram antes de descer até ao Cais do Sodré. Sob a luz de uma solitária bola de espelhos, um rapaz de blusão de ganga agita a cabeleira acompanhado por um grandalhão de braços tatuados.

"Isto era um bar de putas", explica Carlos, aliás "Pantera", o "disc-jockey", blusão de cabedal com franjas;calças de ganga rasgadas. "Aí há uns quatro anos, eu costumava vir para aqui com uns colegas. Passavam aqui faixas dos Iron Maiden. Depois, o DJ foi embora e eu falei com os homens, se eles aceitavam este som. O pessoal começou a vir para aqui."

No prato do gira-discos roda já "Morbid Visions" dos Sepultura. Dezenas de metálicos acompanhados pelas suas acólitas, todos de negro e cabelos compridos, enchem os lugares sentados. O grandalhão dos braços tatuados ora simula tocar uma guitarra ora se abraça a uma das metálicas presentes. Ao som dos Kreator, alguém vem à velha cabina de madeira coberta de "grafitti" saudar o "Pantera" com o dedo polegar espetado para cima.

"Eu estou a ver se arranjo duas pessoas da escola de Belas-Artes para fazerem aí uns 'grafitti' nas paredes, era porreiro ", explica o "Pantera", que reconhece que aquele design dos anos 70 não está de acordo com a clientela.

Às duas da manhã, a pista é palco de uma estranha celebração, com dezenas de metálicos fazendo a cabeça ir abaixo e acima, repetidas vezes. À nossa frente, uma jovem com um camisola dos Cannibal Corpse que parece escorrer sangue, beija desenfreadamente um rapaz com uma "t-shirt" dos Obituary. A batida torna-se desenfreada e os rugidos do vocalista dizem-nos que só pode tratar-se de "death metal".

Duas e meia da manhã. Há mais de uma hora que um jovem de cabelos a passar dos ombros, está especado junto à porta de entrada, num torpor do qual as entradas e saídas de metálicos não conseguem fazê-lo despertar. A rapariga dos Cannibal Corpse encolhe-se toda no banco junto ao balcão e vomita, ajudada por uma amiga. É altura de batermos em retirada.

O que se passa nas noites das sextas e sábados no Bar Lusitano passa-se com cada vez mais regularidade em concertos de "heavy metal". A face mais radical e violenta desse género musical, já de si ruidoso, que é o "heavy metal" atrai cada vez mais adolescentes portugueses.

Tanto os nomes das bandas como os títulos dos álbuns, bem como as letras dos grupos de "death metal", remetem para violência gratuita e canibalismo. Nos concertos, mal se consegue distinguir aquilo que é cantado. O som caracteriza-se por "riffs" cortantes de guitarra, pela voz cavernosa e tonitruante, semelhante a um trovão, do vocalista e pelos duplos bombos em velocidade acelerada.

Alguns títulos pretendem ser arrepiantes.Veja-se os de discos da banda Carcass: "Reek of putrefaction", "Symphonies of sickness" ou "Necroticism - Descanting the insalubrious ". As editoras são as primeiras a descrever as bandas que editam como as mais brutais, as mais macabras, as mais mórbidas. A norte-americana Nuclear Blast descreve o grupo Macabre, que actuou em Almada, como o trio mais mórbido da música actual. As suas letras dedicam-se a contar as façanhas de alguns dos "serial killers" mais famosos de sempre. "Os Macabre exploram os extremismos do comportamento humano, tal como canibalismo, vampirismo, abuso infantil, vampirismo, terrorismo, necrotismo e assassínio em massa."

As capas dos discos exibem pedaços de carne ensanguentada ou desenhos de cadáveres. As letras, incitam à violência. Na canção "Rape - Pagar con la misma moneda", do seu último álbum, "Club Mondo Bizarre", os Pungent Stench - que tocaram na Incrível Almadense - contam a história de uma rapariga que jazia no solo de casa com sangue entre as pernas. Foi violada e reconheceu o violador, o empregado de uma loja de bebidas; a polícia não acreditou na sua história, por isso ela e uma amiga espancaram o violador e prenderam-no inconsciente a uma cama; quando ele voltou a si, pôde ver as raparigas a cortarem-lhe os órgãos genitais e a meterem-lhos na boca; elas assistiram à morte por sufocação do violador: "Todas as mulheres violadas deviam vingar-se", cantam os Pungent Stench.

Noutra canção do mesmo disco, "Practise suicide", a letra convida a pessoa a atirar-se do telhado de casa, a estampar-se com o próprio carro ou a matar-se com remédios. "Sim, é certo que é uma música pró-suicídio", comenta Zé, aliás JPA, guitarrista da banda portuguesa Decayed, "mas não passa de uma letra. Se um puto se suicida por ouvir essa música, é porque é parvo, tem mente fraca. Gente fraca não é precisa à face da Terra. Aliás, eu fui ao concerto dos Pungent Stench e não me pareceu que aqueles gajos fossem violentos e apelassem a que estoirássemos os miolos."

Ele próprio, JPA, já escreveu uma letra em que desejava a morte de alguém. "Mas isso era dedicado a uma pessoa. Se ela gosta, ri-se; se não gosta ignora; se se mata, é porque é estúpida. É como dizer que a pornografia propicia as violações."

Os fãs portugueses do "death metal" não divergem muito dos seus congéneres estrangeiros. Provêm dos subúrbios, bebem muita cerveja, fumam haxixe, adoram o "mosh" nos concertos, bem como abanar furiosamente a cabeleira. Têm pouco dinheiro e gastam-no em garrafas de litro de cerveja e em discos dos Cannibal Corpse, dos Obituary, dos Carcass ou dos Napalm Death, por exemplo. Usam quase sempre calças de ganga velhas e rasgadas, "t-shirts" negras, com motivos de grupos metálicos, e ténis baratos. Os cintos com pregos, os blusões de cabedal e as pulseiras com pregos, ainda se usam, mas com menos frequência do que no passado. Trazem o cabelo muito comprido e, alguns, tatuagens nos braços. Nos concertos, empurram e dão pontapés, saltam freneticamente, erguem os dedos em cornos
como saudação satânica, lançam-se sobre as cabeças da plateia e gostam de poder saltar do palco em voo sobre os outros.

Uma das características dos concertos são precisamente esses já famosos "stage-dives", saltos dos metálicos para e do palco. "Gosto de estar rodeado de pessoal", disse recentemente Mitch Harris, guitarrista dos Napalm Death a António Freitas, do "Blitz". "Até acho a situação bem divertida, desde que ninguém se magoe."

Os locais de encontro são os concertos que ocorrem com crescente frequência e os bares como o Gingão, no Bairro Alto, ou o Bar Lusitano, no Cais do Sodré, em Lisboa. No Porto, os metálicos encontram-se no Não! Rock Bar, no Centro Comercial Dallas, cujas noites de quinta-feira são dedicadas ao "heavy metal".

Os fãs lisboetas do som metálico compram os discos em lojas da especialidade como a Torpedo ou a Xaranga, no Centro Comercial Terminal, em Lisboa, e "t-shirts" dos grupos preferidos em lojas da especialidade. Aos sábados de manhã, frequentam a Feira da Ladra, onde compram discos, ouvem as demos uns dos outros e trocam roupa.

No Porto, os metálicos frequentam a Halloween, no segundo andar do Centro Comercial Stop. A loja, que vende tudo o que é possível imaginar para os fãs do "heavy metal", é propriedade do vocalista dos Web, uma banda formada por "roadies" dos veteranos Tarântula.

Dantes, quem quisesse uma tatuagem tinha de a fazer no estrangeiro. Agora, já se fazem tatuagens no El Diablo Tattoo, na Avenida Almirante Reis, e no Bad Bones, em Alcântara, ambos em Lisboa.

Os fanzines, policopiados e em inglês, para serem trocados, pelo correio, com fanzines estrangeiros, proliferam por todo o país. O "Bahamut", de Lisboa, o "Hallucination", do Barreiro, o "Rotting", da Amadora ou o "Metal Preachers", de Tomar, são dos mais lidos. Em geral, seguem todos mais ou menos o mesmo modelo. Os autores dos fanzines enviam por carta questionários a bandas nacionais e estrangeiras e pedem-lhes uma foto do grupo. Depois, publicam as respostas. Um fanzine chega a ter 50 entrevistas com 50 bandas diferentes.

"Eu até sou dos que mandam poucas cartas", explica Ricardo, aliás Rick Thor, que edita o fanzine "Bahamut". "Por mês, mando umas 50 para o estrangeiro, para editoras e bandas, que me mandam material para criticar." Rick Thor correspondia-se com Euronymous, o guitarrista do grupo de "black metal" norueguês Mayhem, que liderava na Noruega um grupo de satânicos e que foi assassinado no Verão passado pelo líder de outra banda, Burzum, que agora está na cadeia.

Revistas, só as internacionais. A "Rock Power" portuguesa, gerida por António Sérgio, terminou em Dezembro de 1992. Assim, os metálicos compram a "Kerrang", a "Terrorizer" e a "Metal Hammer". Quando o dinheiro não chega, lêem a coluna "Arame Farpado" no "Blitz" ou os artigos sobre "heavy metal" dos jornais diários, do "Sete" e de "A Capital".

Na televisão, devoram o Headbangers Ball, de Vanessa Warwick, programa de "heavy metal" da MTV. Das rádios, ouvem, entre outros, o Metal Radical, de Gustavo Vidal, na Rádio Energia, Hipertensão, de António Freitas, na Antena 3, e o veterano Lança Chamas, de António Sérgio, na Rádio Energia.

O circuito "underground" é feito de pequenas editoras independentes, como a Dark Records, do Barreiro, que vai editar um CD do grupo Evisceration, descrita como a "mais brutal banda de 'grind' portuguesa". "Tudo o que fazemos é underground", explica Pedro Cruz, da Dark Records. "Tens de ir ter com a banda, ir à fábrica, fazer tudo. O pouco dinheiro que entra é para investir na próxima cena."

A "cena" do "heavy metal", como gostam de lhe chamar os metálicos, nunca esteve tão dividida como agora. Novas bandas, muito mais público, vários estilos. "Dantes," recorda com alguma melancolia João Pedro, baixista dos Moonspell, "gravava-se uma 'demo tape' e era uma sorte. Agora, há bandas com seis meses de existência que gravam CD."

À existência de maior número de bandas, correspondem também mais estilos. "A cena dantes era mais unida, não havia tantos estilos musicais. Agora, os fãs cada vez se distanciam mais uns dos outros, uns só gostam de 'black', outros de 'death', outros de ‘grind’", explica Rick Thor.

As bandas também gostam de se fazer distinguir e é considerado um escândalo chamar "death metal" ou "grind core" a uma banda de "black metal". "É completamente diferente", explica Belathauzer, vocalista do grupo Filii Nigrantium Infernalium. "O 'black metal' utiliza simbologia pagã, mística, falando do lado obscuro do homem, da maldade. Nós somos anticristãos, negamos completamente a moralidade tradicional."

E o "grindcore"? "O 'grind' tem letras muito contundentes, é de crítica social, é o estilo musical mais brutal e agressivo que existe; e o 'death metal' deixa-se ficar pela morte e pelo mórbido. Nenhum desses estilo explora o satânico como o 'black metal'."

Belathauzer explica que o "black metal" procura manter em palco uma imagem agressiva, com cabedal preto, pregos, correntes. "Utilizamos fogo, se for preciso, ou sangue. Quem vai a um concerto não vai só para ouvir, mas para ver também. Nós temos, normalmente, o palco cheio de velas."

Porque é que se chama Belathauzer? "É uma característica do 'black metal' utilizar nomes de demónios ou divindades pagãs. Não vou dizer o meu outro nome. Se pudesse mudar o nome no bilhete de identidade, mudava. Infelizmente, é cristão."

Tal como os Filii Nigrantium Infernalium, os Moonspell, da Brandoa, ou os Decayed, da linha do Estoril, aproximam-se do "black metal". Outros, como os Incarnated, de Odivelas, os Grog, do Estoril, os Exomortis, de Leiria, ou os Disgorged, Genocide, Gangrena, Candle Serenade, Shattered e Raising Fear, todos do Porto, são tidos como bandas de "death metal".

Os Moonspell gostam, no entanto, que lhes chamem "banda de metal gótico". As letras das suas canções são poéticas e "filosóficas" e os concertos são acompanhados por coreografias.

"Ainda nos fotografamos com velas", explica João Pedro, aliás Tetragrammaton, baixista da banda, "mas não praticamos rituais satânicos. O que eu posso dizer é que sou pagão e simpatizo com o satanismo. O satanismo apresenta soluções para a sociedade ocidental, defende que sigamos a lei da Natureza, a sobrevivência dos mais fortes. O satanismo apela a que sejamos mais donos de nós próprios, a que as pessoas lutem por aquilo a que têm direito. Hoje em dia, não existem homens, existem ‘robots’."

António Melão, 39 anos, que todos conhecem por Cameraman Metálico, acompanha a cena do "heavy metal" nacional há muito tempo e fotografa praticamente todos os concertos. "O primeiro concerto de 'heavy metal' que eu vi, foi o dos Iron Maiden, em 1986, e saí a meio, porque achei que era muito barulhento. Em 88, já gostei e comecei a fotografar tudo."

No fim dos anos 80, ainda não existiam as divisões que existem hoje entre "black metal" e "death metal", por exemplo. "As pessoas, só de falar em 'heavy metal', já ficavam com os cabelos arrepiados. Era impensável juntar 60 mil pessoas num estádio como fizeram os Metallica."

Hoje, o Cameraman Metálico vê os mais novos serem atraídos pelo "death metal", "O que atrai os putos mais militantes é o 'death metal'. Acho que tem a ver com a educação. A maioria são miúdos dos subúrbios que ouvem 'death metal' para estar contra a sociedade. São muito influenciados pelo 'heavy metal' que vêem na MTV e pelos programas na rádio. Quase todas as rádios têm programas de ‘metal’."

JPA, 22 anos, guitarrista dos Decayed, insurge-se contra a moda. "Os miúdos não percebem nada. O que passa na MTV é o que compram. Eles nem o primeiro álbum dos Sepultura conhecem. Simplesmente, está na moda ser-se mau, ouvir música brutal e andar-se vestido de preto com cruzes invertidas ao peito."

Muitos dos jovens mais novos não conhecem as origens. "Eu comecei a ouvir Iron Maiden", explica Rick Thor, "depois passei para os Megadeth... Agora vejo putos de 12 e 13 anos com 't-shirts' dos Cannihal Corpse que subitamente querem ser metálicos." João Pedro, dos Moonspell, é da mesma opinião. "Começámos a ouvir Rainbow, Ozzy Ozbourne, Judas Priest, AC/DC, Manowar. Muitos dos putos que andam aí com as 'carpetes' dos Sepultura nunca ouviram falar em Judas Priest."

Todos concordam que a moda do "heavy metal" mais radical não vai passar tão depressa. "Os Sepultura e os Pantera chegaram a lugares de topo no 'top' nacional. "Esta moda não passa", comenta JPA. "Isto é uma bola de neve que não pára", afirma o Cameraman Metálico, "e, já que me meti desde o princípio, quero ver no que isto vai dar."
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