Bahia rima com sodomia...
De fato, a documentação comprova que em seus 450 anos de história,
São Salvador da Bahia foi não apenas a cidade de todos os santos,
mas também de todos os sodomitas - aqui vivendo numerosos gays, lésbicas
e travestis, que a despeito de suas vidas clandestinas terem sido preconceituosamente
escondidas ou esquecidas pelos historiadores oficiais - seus nomes e vivência
homoerótica testemunham: não se pode tratar da história
da Bahia e do Brasil, sem mencionar a presença significativa dos homossexuais
desde os primórdios de nossa existência.
A vivência e repressão aos gays, lésbicas e travestis
estão fartamente registradas em diferentes acervos documentais: nos
manuscritos quinhentistas e setecentistas da Inquisição, nos
poemas seiscentistas de Gregório de Matos, nas Teses da Faculdade de
Medicina e nos jornais oitocentistas.
Podemos afirmar sem sombra de dúvida que a presença homossexual
na história da Bahia é anterior inclusive à própria
chegada dos colonizadores, pois ao penetrarem na Terra dos Papagaios, portugueses
e franceses encontraram e registraram, estupefactos, a existência de
numerosos índios e índias praticantes do que a Cristandade chamava
de "abominável e nefando pecado de sodomia".
Gabriel Soares de Sousa (1587), erudito senhor de engenho no Recôncavo,
observou que "os Tupinambá são tão luxuriosos que
não há pecado de luxúria que não cometam... sendo
muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não tem
por afronta; e o que se serve de macho, se tem por valente e contam esta bestialidade
por proeza. E nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm
tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas."(1)
Pero de Magalhães Gandavo (1576) por seu turno, descreve detalhadamente
a presença e subcultura lésbica entre os mesmos ameríndios:
"Índias há que não conhecem homem algum de nenhuma
qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam
todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios,
como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma
maneira que os machos e vão à guerra com seus arcos e flechas
e à caça perseverando sempre na companhia dos homens, e cada
uma tem mulher que a serve, como quem diz que é casada e assim se comunicam
e conversam como marido e mulher." (2)
Tão generalizada era a homossexualidade na terra brasilis, que os Tupinambá
tinham nomes específicos para designar os adeptos desta performance
erótica: aos homossexuais masculinos chamavam de Tibira e às
lésbicas de Çacoaimbeguira.
Portanto, com base no depoimento dos primeiros cronistas - inclusive alguns
fidedignos sacerdotes - somos forçados a concluir que a homossexualidade
na Bahia tem muito mais de 500 anos: é tão antiga quanto a mesma
presença humana no Novo Mundo, beirando quando menos 10 mil anos de
calorosa adesão pelos moradores desta Boa Terra.
Nas primeiras caravelas chegam do Reino alguns praticantes do "amor que
não ousava dizer o nome" - datando de 1547 o registro do primeiro
sodomita português a ser degredado pela Inquisição para
esta novel conquista.(3) Tanto em Portugal quanto aqui na Colônia
os homossexuais masculinos eram popularmente chamados de somítigos
e fanchonos, sendo a homossexualidade considerada crime dos mais hediondos,
cabendo à Justiça Real, ao Bispo e sobretudo ao Tribunal da
Santa Inquisição, a perseguição e condenação
à morte na fogueira dos infelizes sodomitas.
Com as Ordenações Manuelinas (1521) e Filipinas (1606), confirma-se
a pena da fogueira aos somítigos, que passam a ser equiparados aos
criminosos de lesa-majestade e de traição nacional, ficando
por conseguinte seus descendentes inábeis e estigmatizados por três
gerações sucessivas, gratificando-se regiamente a quem delatasse
os praticantes do abominável pecado nefando.(4)
Instalada em Portugal a Inquisição em 1536, foi apenas em 10
de janeiro de 1553 que D. João III concedeu uma Provisão autorizando
os Inquisidores a procederem contra os sodomitas. Provisão que certamente
foi solicitada pela cúpula inquisitorial, posto que desde 1547 já
encontramos cinco sodomitas presos, processados e alguns degredados para o
Brasil - entre eles, um moço-do-rei e um criado do governador.(5)
Quer dizer: o "vício elegante" se alastrava pelos palácios,
do trono à cozinha, inclusive pelos territórios ultramarinos.
Com a chegada ao Brasil dos primeiros escravos da África, onde significativa
documentação comprova igualmente a prática tradicional
e pré-colonial do homoerotismo masculino e feminino, tanto na região
do Congo-Angola, quanto na Costa da Mina, aumenta o contingente de homossexuais,
incluindo a partir de então também os quimbandas e adés
da raça negra. Eis um interessante relato seiscentista comprobatório
do quão institucionalizada era entre os negros o que os europeus insistiam
em chamar de amor grego e vício italiano: "Há entre o gentio
de Angola muita sodomia, tendo uns com os outros suas imundícies e
sujidades, vestindo como mulheres. Eles chamam pelo nome da terra: quimbandas,
os quais, no distrito ou terras onde os há, têm comunicação
uns com os outros. E alguns deles são finos feiticeiros para terem
tudo mau e todo o mais gentio os respeita e os não ofendem em coisa
alguma. Andam sempre de barba raspada, que parecem capões, vestindo
como mulheres."(6) Em 1591, na primeira Visitação
do Santo Ofício às partes do Brasil, foi denunciada a presença
de um autêntico "quimbanda" em plena Salvador: o escravo Francisco
Manicongo recusava-se vestir as roupas de homem que lhe dava seu senhor, "recusando-se
trazer o vestido de homem que lhe dava seu senhor" - é o primeiro
travesti que se tem notícia na história pátria.(7)
Portanto, a homossexualidade, com presença marcante nas tradições
das três raças formadoras de nossa nacionalidade, encontrará
terreno fértil no Novo Mundo, onde a nudez dos índios e negros,
o relaxamento sexual inerente ao escravismo, a frouxidão moral do próprio
clero, as longas distâncias e isolamento dos núcleos habitacionais,
as matas e sertões despovoados, tornaram realidade o ditado popular:
"ultra equinotialem non pecari" - o nosso conhecido e cantado refrão
"não existe pecado abaixo do Equador!"
Mais correto seria dizer: abrandou-se nos trópicos a noção
de pecado, desviando-se os cristãos da rígida moral-sexual pontificada
pelo catecismo tridentino, de tal sorte que a repressão tornou-se aqui
mais frouxa do que no Reino.(8) Tal relaxamento explica o alastramento e desenvoltura
como os fanchonos e sodomitas, tibiras e çacoaimbeguiras, adés
e quimbandas praticaram seus desejos mais ternos e profundos, suas sinas e
tendências mais recônditas: o amor igual.
Amor que malgrado ser rotulado pelos teólogos de "mau pecado",
pelos Inquisidores de "abominável e nefando", equiparado
pelas justiças del Rei ao crime de lesa-majestade, não obstante
tantos anátemas e a ameaça da pena vil dos açoutes públicos,
do seqüestro dos bens, do degredo nas galés de Sua Majestade,
e a temida morte na fogueira - o amor homossexual foi mais forte que a morte!
Desafiou o chicote, a fogueira, a prisão perpétua: e a prova
desta ousada busca da felicidade e de realização existencial
é que dispomos de uma fantástica e inédita lista de 202
moradores da Bahia, entre o século XVI e XIX, que praticaram ou foram
infamados de praticar o "amor que não ousava dizer o nome".
Lista que inclui 178 homens e 24 mulheres; brancos, índios, negros
e mestiços; livres e escravos; cristãos-novos e velhos; artesãos
e nobres; muitos padres; professores e estudantes - e dois importantes governadores
da primeira capital do Brasil - Diogo Botelho e Câmara Coutinho, além
do mais célebre revolucionário baiano do Império, o Dr.
Sabino Álvares, corifeu da Sabinada.
Tal é a distribuição destes 202 baianos ou moradores
da Bahia praticantes ou infamados de praticar o homoerotismo ao longo dos
séculos:
Sodomia na Bahia - Século XVI-XIX
Século XVI 39 (19%)
Século XVII 84 (42%)
Século XVIII 23 (11%)
Século XIX 56 (28%)
Total 202 (100%)
No século XVII é quando a Inquisição
Portuguesa mais perseguiu os sodomitas, seja no Reino, seja no Novo Mundo,
daí a existência de maior volume de registros seiscentistas sobre
esta população heterodoxa em matéria de amor. A partir
do Século XIX a documentação escasseia, cabendo aos médicos,
jornalistas e aos agentes da segurança pública a repressão
e registro de ocorrências envolvendo tal segmento populacional.
A maior parte dos documentos relativos aos homossexuais nos três primeiros
séculos de nossa história foram produzidos pelo Tribunal do
Santo Ofício: são denúncias, sumários e processos
conservados no principal arquivo lusitano, a avoenga Torre do Tombo. O estilo
dos rabugentos inquisidores é conciso e formal, descrevendo friamente
a morfologia dos atos homoeróticos entre "agentes" e "pacientes".
A preocupação destes padres-juizes era desvendar se houve a
consumação da "sodomia perfeita", isto é, "penetração
do membro viril desonesto no vaso traseiro com derramamento de semente",
a única performance homoerótica considera crime capaz de levar
o réu à fogueira. Tomemos como exemplo a denúncia contra
Diogo Botelho, 8o Governador e Capitão Mor da Bahia (1602-1607), 1o
Governador e Capitão General do Estado do Brasil, iniciador da construção
do Forte de Nossa Senhora do Pópulo (Forte de São Marcelo),
também chamado Forte do Mar.
"Aos 12 de setembro de 1618, nesta cidade do Salvador da Bahia, na Igreja
do Colégio de Jesus, estando em audiência da tarde no tempo da
graça o Senhor Visitador Marcos Teixeira, perante ele compareceu sem
ser chamado Fernão Rois de Souza, cristão velho, natural de
Vila Galega, 25 anos, cavaleiro fidalgo nos livros de Sua Majestade, casado
e morador na Freguesia de Nossa Senhora do Socorro, 7 ou 8 léguas desta
cidade, e sendo presente para em tudo dizer verdade e ter segredo lhe foi
dado juramento dos Santos Evangelhos em que pôs a mão sob cargo
do qual assim prometeu. E disse que haverá 14 anos, pouco mais ou menos,
que nesta cidade, servindo ele confitente de pagem a Diogo Botelho, Governador,
que então era destas partes do Brasil, depois de per algum tempo o
dito Diogo Botelho o tratar com muitos mimos e favores, o fez deitar consigo
na cama e veio a dormir com ele carnalmente, pela parte traseira, efetuando
o pecado nefando de sodomia, a primeira noite uma vez somente per força
e contra vontade dele, confitente e com medo de o dito cúmplice o matar,
não se atreveu a gritar. E depois, por espaço de dez anos continuou
em cometer o dito pecado nefando com ele, assim nesta cidade em duas moradas
de casas onde morara, uma das quais está no Terreiro deste Colégio,
a onde mora ao presente Diogo Barcho, escrivão da Alfândega,
e nas casas que são del Rei, a onde agora se faz a Relação,
assim como na cidade de Lisboa, em casas de sua Quinta que tinha ao Chafariz
de Arroios. E declarou ele confitente que no decurso do dito tempo, dormira
carnalmente com o dito Digo Botelho pela parte traseira, 15 ou 20 vezes, efetuando
o dito pecado de sodomia, por o cúmplice o provocar e forçar
a isso."
"E assim disse que se acusava que no dito tempo que tem dito, servindo
ao dito Governador, cometera ele confitente o mesmo pecado nefando de sodomia
com Diogo da Silva, sendo ele confitente paciente."
Confessou mais, ter cometido diversos atos sodomíticos com Antônio
Galvão, natural desta cidade, então com 14 anos, pelo espaço
de oito anos, sendo ambos serviçais de Diogo Botelho, o qual os "provocava
e os fazia cometer o dito pecado em sua presença para se provocar e
incitar ao mesmo. O que também usava quando ele confitente e o dito
Diogo da Silva cometiam o mesmo pecado, igualmente com João de tal,
filho de uma portuguesa e um tudesco(9) da Guarda, que também
era criado de Diogo Botelho. E mandado e provocado por ele, tentou cometer
o pecado nefando em sua presença com ele confitente, 15 ou 20 vezes
nesta cidade e no Reino e por ele resistir, nunca acabou de efetuar o dito
pecado. O que também quis o dito Diogo Botelho usar nesta cidade da
Bahia com um flamengo(10) por nome Anrique, que teria 25 anos, e hoje
dizem que está casado no Porto Calvo, [Alagoas], distrito de Pernambuco,
o qual flamengo por mandado e provação do Governador, e em sua
presença, por três ou quatro vezes, tentou cometer o dito pecado
com ele, confitente, e por lhe resistir, o não efetuou", o mesmo
ocorrendo com Agostinho Ferreira, natural de Lisboa, filho de um tabelião.
"E que era verdade e que sabia pelo ver que Diogo Botelho cometera o
pecado nefando de sodomia com os sobreditos, umas vezes paciente, outras agente
e também com Nicolau Soares, ora num engenho em Jaguaribe, ao qual
ele, confitente o viu entrar e sair muitas vezes em camisa e ceroulas da câmara(11)
do dito Diogo Botelho depois de meia noite".
Disse mais que "a fora as vezes que fora constrangido a cometer o dito
pecado nefando, as outras vezes , que foram muitas, o cometera por sua vontade
e po-la fazer ao dito Governador que lho pedia e o provocava a isso, do que
tudo disse, se acusava e pedia perdão e misericórdia."
Perguntado se havia testemunhas e se houve escândalo provocado por estes
atos? Respondeu que "os criados de casa davam a entender que suspeitavam
e havia entre eles escândalo disso e que pelos muitos mimos e favores
que Diogo Botelho fazia a ele confitente, não faltaria gente de fora
que o suspeitasse, maiormente tendo o dito Governador fama disso; e que de
noite e de dia aconteceram tais casos, de dia quando havia ocasião
e de noite quando Diogo Botelho chamava a ele para sua cama e algum dos outros
cúmplices, e na sua cama estando o dito Governador também lançado
na cama, aí cometiam todos os três o dito pecado. E que de dia
pela maior parte era depois do jantar e de noite, depois da ceia, quando estavam
recolhidos para dormir. Disse que entendia por pecado de sodomia "meter
sua natura pela parte traseira do cúmplice e derramar dentro em seu
corpo a semente genital ou consentir fazer-lhe o cúmplice o mesmo."
Tal confissão e denúncia fizera Fernão Rois de Souza
estando presentes na Mesa do Santo Ofício pessoas honestas e religiosos,
Padres Jesuítas do Colégio da Bahia, que consultados após
a retirada do confessante, disseram que "se lhes parecia dizer a verdade
e que se lhe havia de dar crédito."(12)
Dentre as denúncias, confissões e processos de sodomitas residentes
na Bahia Colonial, a processo de Luiz Delgado é dos mais bem documentados
e interessantes, por revelar detalhes cruciais do dia a dia e da geografia
soteropolitana na mesma época em que deambulava por esta cidade o Boca
do Inferno, o príncipe de nossos poetas, Gregório de Matos.
Luiz Delgado era violeiro e estanqueiro(13) de fumo, natural de Évora,
casado com Florença Dias Pereira, sabia ler e escrever, filho de Luiz
Delgado e Joana Machado, alto de corpo, alvarinho, magro de cara, tinha 40
anos quando foi preso pelo Santo Ofício, no fatídico ano do
Senhor de l689.
Na Torre do Tombo encontram-se dois grossos processos contra este colono:
sua fama de sodomita começara décadas antes, na cadeia de Évora,
em 1665. Tinha então 24 anos e estava preso junto com um seu irmão,
ambos acusados de um furto. Por receber freqüentes visitas de um seu
cunhadinho de 12 anos, Brás, os demais presos acusaram-no junto ao
Santo Ofício de Évora, após ter ouvido à noite,
ruídos e gemidos indicativos que praticavam o abominável pecado
de sodomia. Apesar do jovem cúmplice ter negado, Luiz Delgado assumiu
ter cometido tão somente "punheta" e "coxeta"(14)
, não chegando à sodomia perfeita (penetração
com ejaculação), matéria prima indispensável para
caracterizar os atos homoeróticos como crime. Levado à casa
de tormentos, "chamando por Nosso Senhora e pedindo misericórdia",
Luiz Delgado foi torturado na polé(15) , sem acrescentar nada
à confissão anterior. Também Brás foi torturado,
sendo ambos degredados para fora do termo de Évora pelo período
de três anos.
Em 1669 Luiz Delgado encontra-se preso no principal cárcere de Lisboa,
o Limoeiro - causando também aí murmuração de
que era amante de um moço por nome André, ladrão degredado
para o Maranhão. Nos primeiros anos da década de 70, Luiz Delgado
encontra-se na Bahia - e de violeiro torna-se "estanqueiro de fumo",
tendo loja onde comprava e vendia tabaco no atacado e varejo.
Em 1675 espalha-se "a fama geral entre brancos e pretos que Luiz Delgado
era fanchono e sodomita", e em duas Visitas Pastorais realizadas nas
freguesias de São Pedro e Nossa Senhora do Desterro, de onde era freguês,
é acusado por meia dúzia de paroquianos de ser praticante do
abominável pecado de sodomia. Audacioso, o fanchono não temia
seduzir pessoas de diferentes condições sociais, inclusive serviçais:
a um criado de quatorze anos, perguntou em segredo: "Miguel, quero saber:
tendes três polegadas(16) de pica ? Façamos uma aposta:
entrai para dentro de minha casa. Aposto uma ou duas patacas se tiver as três
polegadas!"
Provocaram maior escândalo e murmuração, do que suas solicitações
esporádicas a escravos e rapazes sem eira nem beira, os "casos"
amorosos mantidos com quatro moços na Bahia: o soldado José
Nunes, a quem Luiz Delgado presenteou com um anel de ouro; Manoel de Sousa
Figueiredo, "de rosto e jeito afeminado e bem afigurado"; José
Gonçalves, de quem "fazia tanto caso como se fosse seu filho"
e com o qual o estanqueiro praticou mais de 80 atos homoeróticos; e
Doroteu Antunes, 16 anos, seu derradeiro romance, "bem parecido e trigueiro,
tinha cara como uma dona" - tão efeminado que se travestia de
mulher em comédias públicas.
Mesmo sendo casado, aliás como a grande parte dos sodomitas do passado
- e do presente! - Luiz Delgado se excedia em demonstrar publicamente a paixão
que nutria por seus sucessivos amantes, beijando-os na frente de outras pessoas,
regalando-os com presentes e fino trato, andando juntos pela rua, de baixo
de um grande guarda-sol, para escândalo e escárnio de seus inimigos.
Sabendo-se denunciado perante o Juízo Eclesiástico de Salvador,
foge para o Rio de Janeiro, onde persuade o adolescente Doroteu Antunes a
abandonar a casa paterna, retornando com seu ganimedes para a Bahia.
Constrói uma choupana no sítio Jacumirim, de propriedade dos
Jesuítas, a 11 léguas de Salvador, onde permanece em idílica
lua de mel com seu "menino do Rio". A 5 de fevereiro de 1689, por
ordem do Comissário do Santo Ofício da Bahia, os dois amantes
são presos e algemados - o mais velho trancafiado na cela forte do
Convento do Carmo, e o mais novo no Convento de São Francisco.
Remetidos para Lisboa, na travessia Luiz Delgado foi vítima de penosas
humilhações físicas e morais. Nos cárceres secretos
dos Santo Ofício o reincidente sodomita permanece por 3 longos invernos.
Era sua oitava prisão desde que rapazote fora encarcerado em Évora
pela primeira vez. Tenta convencer os Inquisidores que tudo não passara
de maquiavélica intriga de sua mulher e de seu primeiro criado, enumerando
243 contraditas(17) tentando argumentar sua inocência. As confissões
de seus cúmplices e a sua própria - a três décadas
passadas, no Tribunal de Évora, não deixam dúvidas que
Luiz Delgado tergiversava.
Pela segunda vez, o azarado fanchono é levado ao tormento. "Chamando
por Jesus do céu e pedindo misericórdia" foi colocado no
potro(18) onde teve seus braços e pernas amarrados com oito
correias de couro, que apertadas com o torniquete, provocavam insuportáveis
hematomas e inchações nos membros do infeliz.
De mais de quinhentos processos de sodomitas presos por nós examinados,
este fanchono luso-baiano foi o único a ser torturado duas vezes. Foi
condenado a dez anos de degredo para Angola - lá chegando na mesma
quadra em que o poeta baiano Gregório de Matos cumpria sua deportação.
Luiz Delgado é de todos os sodomitas da Bahia, o mais pertinaz e com
a biografia homoerótica mais documentada. Um gay incorrigível
e apaixonado! (19)
Com a extinção em 1821 deste Mostrum Horribilem - a Santa Inquisição
- e a descriminalização da sodomia a partir da Independência
do Brasil, livram-se felizmente nossos antepassados homossexuais da fogueira,
mas perdem os historiadores sua principal fonte documental, tanto que avança
o Século das Luzes, menos fontes há para se recuperar a biografia
e a vivência das chamadas "minorias sexuais". A partir dos
meados do século XIX os sodomitas, agora rotulados de pederastas, uranistas
e androfilistas, passam a ser noticiados nos jornais locais e estudados e
tratados pela Medicina - e para gáudio dos historiadores, alguns esculápios
da Faculdade de Medicina da Bahia dedicaram suas teses a esta buliçosa
população.
Eis curioso relato, publicado sob a forma de diálogo jocoso, encontrado
na imprensa baiana na segunda metade do século XIX:
"Capitão, estou aterrado!
O que foi qeu o pôs nesse estado?
Um fato do mais execrando sacrilégio que o delírio humano pode
por em prática.
Conte-me o que há.
Na rua do Colégio, uma mulher conhecida por Bella, vive em íntima
camaradagem com uma outra. No domingo beberam muito; à noite, Bella,
embriagada dos sentidos pelo vinho e da alma pelo vício, querendo entregar-se
a excessos de seu incontinente gênio, convidou para isso sua companheira,
dizendo que não estava disposta.
Primeiro usou de palavras brandas e afetuosas carícias e afagos para
conseguir o que desejava; mas não o alcançando, Bella, no auge
da alucinação, igual a besta-fera que se vê contrariada
em seus brutais apetites, dá de mão a uma navalha para coagir
sua companheira e compartilhar de seu sensual deboche. Depois de estrepitosa
assuada que despertou a atenção de quem passava, houve entre
as duas amigas esta troca de palavras: 'Bella, por aquela Senhora (e apontou
para a imagem da Conceição) me deixe.
Por esta! ( e da boca da réproba, saiu a mais horrorosa imprecação
contra a imagem) não te deixo!'
E ato contínuo, lançou mão da imagem da Santíssima
Virgem, e com ela fez tiro a face da outra! Meu Deus, isto é horrendo!
Só por um vertiginoso desvario. Mas como sabe você, cousas que
se passam de portas a dentro? O fato foi quase público porque a vozeria
fez que se reunisse gente e quase toda a vizinhança presenciou."(20)
No século XIX, quando era de se esperar menor intolerância por
parte dos doutores, predomina no discurso científico exacerbada e pudibunda
indignação - passando os médicos, a partir de então,
a desempenhar o papel de cães de guarda da moral dominante. Não
há como não se chocar com a homofobia dos médicos da
Bahia novecentista, com suas interpretações pseudo-científicas
da gênese e cura da pederastia. O linguajar dos jornalistas da época
reflete a mesma reprovação moral, cobrando da polícia
a repressão aos machos-fêmeas que pululavam pela velha São
Salvador.
Devemos sobretudo ao jovem doutor Domingos Firmino Pinheiro, natural de Alagoas,
autor da tese O Androfilismo, apresentada em 1898 à Faculdade de Medicina
e de Farmácia da Bahia, o maior acervo de informações
sobre os praticantes do amor que não ousava dizer o nome. São
curtos relatos dos antecedentes familiares, pequena biografia e descrição
das práticas homoeróticas de 32 "androfilistas" e
"pedandrorastas"(21) Que o leitor constate, pessoalmente,
a iracunda indignação moral reinante no meio médico à
época vitoriana, no mesmo período em que na Inglaterra o célebre
Oscar Wilde era condenado a dois anos de prisão, com trabalho forçado,
pelo crime de sodomia. Eis alguns exemplos extraídos da referida dissertação
doutoral:
"T.O. (1898): Monge beneditino, branco, de grande erudição
intelectual, verdadeira glória do clero brasileiro, que no púlpito
sobretudo, firmou as bases do seu levantado talento, colhendo imarcescíveis
louros de triunfo. Hoje, até certo ponto, a velhice o obriga a viver
de recordações dos belos tempos que não voltam mais.
Neste doente, o vício degenerou em verdadeira moléstia e imenso
acentuou-se nas campanhas do Paraguai, por forma a não respeitar nem
elevadas patentes militares em suas carreiras impudicas.
Todavia, ainda hoje, conta-se, que poucos não são os bambinos
e ragazzos que no altar de sua atividade lúbrica, prestam-se reverentes
em obediência aos enleios de estremecimentos estáticos aspergidos
com o orvalho da volúpia.
Este doente é irritável, neurastênico e tem alguma coisa
de impulsivo. Seus pais, diz-se, foram tipos bem equilibrados."(22)
Eis outro caso estudado pelo Dr.Domingos Firmino Pinheiro:
R.O. (1898), Jurisconsulto, 50 anos de idade, branco, casado, de compleição
forte, temperamento nervoso, de faculdades intelectuais.
"Vítima do androfilismo passivo. Jurisconsulto eminente que cargos
de grande responsabilidade com proficiência ocupou, este doente tinha
para saciedade de seus nefandos desejos um gabinete luxuosamente preparado,
onde com amantes sem distinção de estirpe, a gama de representações
da Ars erotica entregava-se. Por ocasião da libido contra naturalis
anum odoribus imbuebat e com suas próprias mãos membrum commilitionis
oleo infricat ut facile in anum penetret.(23) Indizível prazer
experimentava quando, consumado o ato libidinoso affabilitate amantis penem
lavabat. (24)
E entretanto este indivíduo era um funcionário público,
de muita reputação, de caráter honrado; inexcedível
na extrema delicadeza do trato, de grande consideração e respeito
entre amigos políticos e mesmo adversários, que nele encontraram
firmeza de idéias, sinceridade e caráter." (25)
Um derradeiro caso estudado em 1898 pelo autor de O Androfilismo: "O.S.
30 anos, célebre pela sua individualização física
em excesso efeminada, pardo, solteiro, constituição regular,
temperamento genital, sem cultura intelectual. Este tipo com uma naturalidade
que espanta, discorre sobre os gozos de sua vita sexualis e põe em
superioridade, procurando persuadir, a quem quer que dele se aproxime, que
o coitus vulgaris nom tantam voluptatem offert quantuam immissio membri in
anum.(26)
É de tal sorte o estado mental deste androfilista, que longe de trajar
como os homens normais, não despreza sobretudo aos domingos e dias
santificados um xale ao ombro e uma flor no cabelo, e não raras vezes
uma camisa feminina com calça branca.
Uma comunicação por [um] sinal impudico é bastante para
vê-lo nos quebrantados de sua marcha, de mãos às cadeiras,
sacudido pressuroso aproximar-se. De comportamento exemplar, sempre estimado
pelos vizinhos, apesar de sua desvairada libertinagem, este infeliz nas correrias
lúbricas dá lugar de honra aos indivíduos que possui
membrum virile permagnum. " (27)
Reunimos todas estas informações - um total de 202 biografias
de gays e lésbicas praticantes ou infamados de praticar o homoerotismo,
alguns acrescidos da prática do travestismo, formando o acervo da obra
DICIONÁRIO BIOGRÁFICO DOS HOMOSSEXUAIS DA BAHIA DO SÉCULO
XVI AO XIX.
Duplo é nosso objetivo com a publicação deste volume:
resgatar a história recôndita de duas centenas de gays, lésbicas
e travestis da Bahia antiga, vítimas do preconceito e discriminação,
cuja existência e reconhecimento fora até então negado,
e estimular a outros pesquisadores a aprofundar as pistas aqui apenas esboçadas
- colaborando assim para a consolidação de uma Gaia Ciência,
alicerce de uma nova sociedade que todos aspiramos, onde se cumpra o vaticínio
do poeta Fernando Pessoa:
"O amor que é essencial
o sexo um acidente:
pode ser igual,
pode ser diferente...!
NOTAS:
1. Sousa, Gabriel Soares, Tratado Descritivo do Brasil,
S.Paulo, Companhia Editora Nacional, 1971, p.308/334.
2. Gandavo, Pero de Magalhães, História da Província
Santa Cruz e Tratado da Terra do Brasil. S.Paulo, Editora Obelisco, 1964,
p.57/91; Cf. Fernandes, Florestan, Organização Social dos Tupinambá.
S.Paulo, Difusão Européia do Livro, l963.
3 . Mott, Luiz. "A Homossexualidade no Brasil: Bibliografia", Latin
American Masses and Minorities, Madison, Princeton University, l987 ; "Pagode
português: a subcultura gay em Portugal nos tempos inquisitoriais".
Ciência e Cultura, fevereiro l988, 40(2)120-139
4.A.A. Aguiar - "Crimes e delitos sexuais em Portugal na época
das Ordenações." Arquivo de Medicina Legal, vol. III, março-junho,
1930. Anônimo - História de Portugal. Oficina da Academia Real
das Ciências, Lisboa, 1788, tomo III, p. 161
5.Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa,
Processos n. 4170; 6614; 352; 3112; 4030.
6.Cadornega, Antônio de Oliveira. História Geral das Guerras
Angolanas. Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1942, p.259.
7.Mott, Luiz, O Sexo Proibido, Campinas, Papirus, 1988; "Relações
raciais entre homossexuais no Brasil Colonial", Revista de Antropologia,
USP, 1992, v.35, p.169-190
8.Vainfas, Ronaldo, Trópico dos Pecados. Moral, Sexualidade e Inquisição
no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Campus, l989.
9.Tudesco ou tedesco, o mesmo que alemão.
10.Flamengo: natural de Flandres (Bélgica/Holanda)
11.Câmara ou câmera: compartimento ou aposento de uma casa e,
em especial, o quarto de dormir.
12.Segunda Visitação do Santo Ofício às Partes
do Brasil, pelo Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira, Livro
das Confissões e Ratificações da Bahia: 1618-1620."
Anais do Museu Paulista, Tomo XVII, S.Paulo, 1963, p.380-384)
13.Estanqueiro: proprietário de um estanco, estabelecimento onde se
vendem cigarros, charutos, tabaco e objetos de fumantes.
14.Coxeta: expressão popular para designar a cópula inter femura,
i.e., entre as coxas, prática homoerótica bastante comum na
época inquisitorial, evitando-se assim cometer o crime de sodomia perfeita
- a cópula anal.
15.Polé: Antigo instrumento de tortura utilizado pela Inquisição,
que consistia em pendurar o réu, com uma corda grossa de cânhamo,
pelos pulsos e pelas mãos, levantando-o até o teto, de onde
era despencado, sofrendo um puxavão antes de tocar no solo.
16.Polegada: antiga medida de unidade de comprimento, equivalente a 2,75 cm.
17.Contradita: alegação forense dum pleiteante contra outro.
18.Potro: tormento utilizado pelo Santo Ofício que consistia em deitar
o réu numa espécie de estrado de madeira, onde tinha seus braços
e pernas amarrados com 8 correias de couro, que eram fortemente apertadas,
variando o número de voltas de acordo com a gravidade das denúncias
confrontadas com as omissões do confessante.
19.Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa,
Processo 4769; Inquisição de Évora, Processo 4995; Mott,
O Sexo proibido: Gays, Virgens e Escravos nas garras da Inquisição.
Campinas, Editora Papirus, 1989, p. 75-129
20.O Alabama, 8-3-1870, apud Teles dos Santos, Jocélio. "Incorrigíveis,
afeminados, desenfreiados: Indumentária e Travestismo na Bahia do século
XIX". Revista de Antropologia, USP, volume 40, n.2, 1997, p. p.160-161.
21.Termos utilizados pelo Dr. Domingos Firmino Pinheiro como sinônimos
de homossexual e pedófilo, respectivamente.
22.(Pinheiro, 1898, p. 83)
23.Membrum commilitionis oleo infricat ut facile in anum penetre: esfrega
com óleo o membro do parceiro para facilitar a penetração
anal.
24.Affabilitate amantis penem lavabat: lavava com afabilidade o pênis
do amante.
(Pinheiro, 1898, p. 77)
25.Coitus vulgaris nom tantam voluptatem offert quantuam immissio membri in
anum: o coito vulgar não oferece tanta voluptuosidade quanto a penetração
do membro no anus.
26.Membrum virile permagnum: membro viril muito grande. (Pinheiro, 1898, p.
77)
BIBLIOGRAFIA
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das Ordenações." Arquivo de Medicina Legal, vol. III, março-junho,
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S.Paulo, Difusão Européia do Livro, l963.
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S.Paulo, Editora Obelisco, 1964.
Mott, Luiz. "A Homossexualidade no Brasil: Bibliografia", Latin
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do Brasil, pelo Inquisidor e Visitador o Licenciado Marcos Teixeira, Livro
das Confissões e Ratificações da Bahia: 1618-1620."
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Sousa, Gabriel Soares. Tratado Descritivo do Brasil. S.Paulo, Companhia Editora
Nacional, l971
Teles dos Santos, Jocélio. "Incorrigíveis, afeminados,
desenfreados: Indumentária e Travestismo na Bahia do século
XIX". Revista de Antropologia, USP, volume 40, n.2, 1997, p. p.160-161.
Pinheiro, Domingos Firmino. O Androfilismo. Salvador, Tese defendida na Faculdade
de Medicina da Bahia, 1898
Vainfas, Ronaldo, Trópico dos Pecados. Moral, Sexualidade e Inquisição
no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Campus, l989.